O STF e as Biografias – Uma Decisão Histórica

Neste mês de junho, o Supremo Tribunal Federal, em histórica decisão, julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4815, para dar interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung von Gesetzen) aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto.

Tratou-se de importante caso, com intensos debates sobre a liberdade de expressão em confronto com o direito à privacidade, em especial no tocante a biografias.

O artigo 20 do Código Civil diz que “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Esse artigo, em especial, tem sido usado com muita frequência para impedir, no Poder Judiciário, fazendo as vezes de censor, a publicação de biografias não-autorizadas, como no famoso episódio envolvendo o Rei Roberto Carlos e sua biografia intitulada “Roberto Carlos em Detalhes“, de autoria de Paulo Cesar de Araújo, o que culminou, inclusive, na criação do grupo denominado “Procure Saber”, liderado na época por Paula Lavigne, e que contou com a surpreendente adesão de artistas que, em triste passado não tão distante assim, lutaram em favor da liberdade de expressão contra a repressão da ditadura, com destaque para Chico Buarque e Caetano Veloso, entre outros. Curiosamente, essa tese chegou a contar também com o apoio do Deputado Federal Jair Bosolnaro, o que revela muito do seu desacerto.

Nesse contexto, tem-se que são confrontadas duas garantias constitucionais: a liberdade de expressão e o direito à privacidade.

Contudo, o direito à privacidade, relativamente a pessoas públicas – por óbvio, justamente sobre as quais potencialmente pode recair o interesse nas biografias -, sofre mitigações; é dizer, ele não é tão intenso quanto nas pessoas comuns. A título de exemplo, fotografar e noticiar uma pessoa comum, sem sua autorização, pode eventualmente violar sua privacidade e ensejar reparação; entretanto, quando se trata de uma pessoa pública, como o Rei Roberto Carlos ou a Presidente da República, tal fato ganha contornos de interesse social, e pode (até mesmo deve) ser noticiado.

Isso ocorre em relação às pessoas públicas, que não são “públicas” apenas quando o desejam, para divulgar um novo trabalho, por exemplo. São públicas sempre. Não quero dizer, com isso, que não gozem de nenhum direito à privacidade. Não se autoriza, exemplificativamente, o desrespeito a intimidade do domicílio para a obtenção de fotos não-autorizadas. Ou seja, gozam de direito à intimidade, mas de forma mitigada e não tão intensa como as pessoas comuns. Essa mitigação foi reconhecida no voto no Ministro Luiz Fux, que consignou que, na medida em que cresce a notoriedade, reduz-se a esfera da privacidade da pessoa.

Essas ponderações são verdadeiras também com relação às biografias. As personalidades públicas atraem para si o interesse em se conhecer sua biografia, não podendo impedir sua publicação simplesmente porque haveria um fato de seu passado que gostariam de omitir.

As pessoas públicas não são donas de sua própria história. Nesse sentido, até mesmo o direito ao esquecimento, que tanto tem sido discutido atualmente, deve ser visto com reservas e temperamentos em relação às pessoas públicas.

Esse fato foi lembrado recentemente por biógrafos, notando que a história da ditadura poderia ficar nas mãos dos próprios torturadores, impedindo que se escreva a seu respeito sem sua autorização. Mas o debate não deve ficar restrito a políticos. Também os artistas não são donos da própria história. O célebre escritor alemão Günter Grass, ganhador do prêmio Nobel da Literatura em 1999, com muita frequência, é objeto de escritos sobre sua juventude no partido nazista, ainda que tal fato tenha vindo à tona em uma autobiografia sua, tendo tido uma vida de reconciliação com seu passado. Mesmo assim, não pode apagá-lo.

Desse modo, não pode haver qualquer restrição prévia à publicação de biografias, que somente no caso concreto, quando diante de efetivos abusos (inverdades maliciosamente contadas com intuito de denegrir o biografado, por exemplo), é que seus autores devem ser civilmente responsabilizados, como muito bem restou consignado no voto da relatora, a Ministra Cármen Lúcia. Esse é modelo jurídico adotado em diversas democracias, como Canadá, Espanha, Estados Unidos, França e Reino Unido.

Thiago Rodovalho

Thiago Rodovalho

Thiago Rodovalho

Advogado em SP. Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Professor-Assistente na PUC/SP e Professor na ESA/SP. Membro do IASP, do IDP, do IBDP e do IBDFAM. Autor de diversas publicações no Brasil e no exterior.

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