O PLC 30/2015, antigo PL 4330, que pretende regulamentar a terceirização, é apenas um dos atos do Poder Público, em sua fúria precarizante. O projeto amplia as hipóteses de terceirização e desprotege ainda mais um trabalhador que já é mal remunerado e precário, pois sequer tem direito à motivação da despedida. A discussão no Congresso Nacional, inclusive através de audiências públicas como a que foi realizada esta semana no Senado, mal esconde um outro movimento, tão ou mais devastador, engendrado pelo STF. Enquanto a lei sobre a terceirização mobiliza entidades e movimentos sindicais, o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro vem chancelando a presença de atravessadores na relação de trabalho, de forma silenciosa. O primeiro golpe, em período mais recente, foi dado pela decisão proferida na ADC 16, em que o STF declarou constitucional o art. 71 da Lei de Licitações, para o efeito de compreender que o administrador público não responde pelo simples fato de terceirizar. Ao contrário, só responde como tomador dos serviços se houver prova de que agiu com culpa. A decisão, que provocou a imediata alteração de itens da súmula 331 do TST, atinge um número expressivo de trabalhadores, já que a administração pública, infelizmente, é quem mais terceiriza no país.
Agora, no mês de abril, o STF proferiu outra decisão assustadora, autorizando a contratação de pessoal para a área da saúde, educação, lazer, meio ambiente e cultura, por intermédio de contratações com Organizações Sociais, entidades de direito privado. A ADI 1923 foi proposta em 1998 e até hoje não havia sido julgada. Estava parada desde outubro de 2013, quando o Ministro Marco Aurélio pediu vista dos autos. A devolução ocorreu em 10 de fevereiro de 2015 e o processo foi incluído em pauta de votação com uma agilidade recorde, já em 15 de abril. A decisão refere a possibilidade de contratação de pessoal especializado, inclusive professores e médicos, por regime de CLT, para atuarem junto a órgãos e instituições públicas, praticamente terminando com o dever de realização de concurso público, previsto no art. 37 da Constituição. Dever que é a condição para o respeito às noções de moralidade, transparência e impessoalidade, que deve(riam) nortear o agir administrativo. É interessante apontar, também, que essa agilidade demonstrada pelo STF não se verifica em outras demandas, tais como a ADI 1625, que contesta a denúncia unilateral da Convenção 158 da OIT, pelo Decreto 2100/96, do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A Convenção 158 da OIT garante o direito à motivação da despedida, nos mesmos moldes da regra já inserta no art. 7º, inciso I, da Constituição, que insistimos em ignorar. Essa Convenção, assinada pelo Brasil em 1982 e ratificada através do trâmite previsto em nossa Constituição, passou a valer no ordenamento jurídico interno em janeiro de 1996. No mesmo ano, porém, foi denunciada, sem que houvesse a chancela do Congresso Nacional. Daí a razão da interposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade dessa denúncia. Além de não promover a discussão e o julgamento dessa ADI, o STF proferiu, nesse mês de maio, decisão nos autos do RE 590415, em que chancela cláusula normativa que prevê quitação geral do contrato por empregado que adere a plano de demissão voluntária. Ou seja, ao aderir ao plano e receber uma indenização pela perda do emprego, o empregado ganha, como “prêmio”, a impossibilidade de exercer seu direito constitucional de ação, em razão de uma cláusula manifestamente abusiva, pela qual haveria outorgado à empresa quitação genérica. A decisão é tão grave, que há inclusive referência à possibilidade de renúncia a direitos trabalhistas, em âmbito coletivo. Com isso, afronta diretamente o art. 100 da Constituição e a toda a ordem jurídica trabalhista.
Em outra decisão, desta vez proferida em Ação Cautelar 3669, que pede “efeito suspensivo aos embargos de declaração” opostos no RE 589998, o STF, por voto do Relator Ministro Luís Roberto Barroso, determinou o sobrestamento, pelo TST, de todos os recursos extraordinários que tratem de dispensas imotivadas em empresas públicas. No mencionado Recurso Extraordinário, foi reconhecido o dever de motivação da despedida pela ECT e por empresas públicas e sociedades de economia mista. É importante observar que a Constituição, no art. 93, estabelece expressamente que todos os atos judiciais e administrativos devem ser motivados. O art. 7º, I, por sua vez, garante o direito à motivação da despedida a todos os trabalhadores, na medida em que estabelece o direito a uma relação de emprego protegida contra despedida arbitrária. Além disso, a Lei 9962/2000 fixa expressamente os motivos para a despedida de empregado público (art. 3º). Por fim, o art. 50 da Lei 9784 de 1999 refere que os atos administrativos devem ser motivados. Toda essa legislação, porém, não foi suficiente para que o Judiciário Trabalhista, e agora o STF, reconhecessem algo básico: se o administrador público contrata mediante concurso, deve despedir de forma motivada, sob pena de receber uma outorga para a burla sistemática da própria regra de seleção. Vale dizer: se não há dever de motivação para a despedida, basta ao administrador promover as dispensas até que o candidato por ele escolhido assuma a vaga. E voilá, está anulado o critério da impessoalidade.
As decisões proferidas nos últimos dias, pelo STF, têm revelado uma ânsia flexibilizadora e o desconhecimento do princípio que justifica a existência mesma do direito do trabalho: a noção de proteção a quem trabalha. Uma noção construída historicamente com o suor e o sangue dos trabalhadores, mas que serve também ao capital. Nos dois últimos séculos, multiplicam-se exemplos de crises, em que o Estado foi chamado a regular a relação de trabalho, criando regras de proteção ao trabalhador, para viabilizar a continuidade do sistema. Basta ver o momento de criação da OIT, em 1919, ao final da primeira guerra mundial, ou o New Deal nos EUA, após quebra da bolsa de NY, em 1929. Essa tradição que está sendo quebrada pelo Poder Judiciário terá certamente um custo histórico tremendo. E nós todos iremos pagar essa conta. É hora, portanto, de exigir da mais alta corte jurisdicional que atue em respeito à Constituição, cuja premissa fundamental (art. 170) é a de que a ordem econômica se sujeite aos ditames da justiça social.
Valdete Severo – Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (UDELAR), Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutoranda em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS