O que a feição atual da hipoteca nos ensina sobre o estudo e a aplicação do Direito?

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Foto: Pixabay

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Eficácia erga omnes

A hipoteca é uma garantia real e, antes disso, é um direito real, ostentando, portanto, eficácia erga omnes, ou seja, sendo oponível não apenas entre as partes envolvidas no negócio originário, mas, também, a terceiros, ou seja, dotando-se o direito de eficácia erga omnes. Isso é básico e de conhecimento relativamente amplo.

Entretanto – e aqui reside o cerne de nossa breve exposição – há pelo menos um caso no qual a hipoteca não é oponível aos terceiros, a saber, aquele da hipoteca contraída para o financiamento de empreendimento imobiliário junto à instituição financeira que emprestou o dinheiro para a realização da construção.

A discussão sobre o tema já está praticamente sedimentada, mas ainda há ações judiciais nas quais emerge tal debate.

O consumidor contrata a aquisição do imóvel, na planta ou não, paga o quanto deve, mas o imóvel continua gravado com hipoteca, vez que a construtora ainda permanece em débito com a instituição financeira que financiou o empreendimento. Diante de tal situação, a jurisprudência é pacífica no sentido da proteção do consumidor que honrou seu pacto, excetuando, assim, a eficácia erga omnes da garantia real. Nesse sentido, veja-se a súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça:

“A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.”

Note-se que a redação do verbete sumular é claro a respeito da ausência de importância a respeito da constituição da garantia ser anterior ou posterior ao contrato protagonizado pelo consumidor. Portanto, nem mesmo interessa saber se a hipoteca foi constituída antes ou depois da contratação da aquisição do imóvel.

Até aí, tudo bem, estando a questão justamente decidida e já estando consolidado o entendimento jurisprudencial favorável ao adquirente. Certamente a indicação do problema e da resposta dos tribunais, especialmente do entendimento assentado pelo STJ, não se constitui em grande novidade ao leitor.

Foto: Agência Brasil

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O busílis da questão

Por outro lado – e aqui reside o busílis da questão – o tema remete-nos a uma outra discussão importante, qual seja, a de mostrar como um instituto tradicional do Direito, como a hipoteca, recebe uma releitura na atualidade diante de um cenário novo, diverso daquele existente ao tempo de sua conceituação tal como conhecemos. Quem bem observou isso foi Flávio Tartuce[1] ao observar como a o princípio da boa-fé objetiva e a proteção ao consumidor acabaram por excepcionar o caráter erga omnes da hipoteca.

Sem dúvida alguma a questão prática exposta inicialmente é da maior importância, mas igualmente importante é compreender como um instituto bem assentado como a hipoteca pode receber uma nova leitura, mais adequada com as necessidades atuais e com os valores prestigiados e que devem ser promovidos na nossa sociedade. A partir daí, algum incauto, quem sabe vendo um bom modo de justificar seu desinteresse por um estudo mais aprofundado do Direito e consequentemente de sua história, pode alegar que seria por este tipo de situação que a análise do passado, da trajetória jurídica, não tem valor, apenas importando o presente – e não se impressionem se tal tipo de pessoa investir-se da condição de “prático” e reclamar uma abordagem “objetiva” dos fenômenos. Entretanto, quem não sabe de onde vem não pode bem decidir para onde vai, pois nosso passado é revelador de nossa condição atual, somos, sempre, no tempo – e nunca fora dele.

Por outro lado, aqueles apegados ao estudo histórico-conceitual dos institutos, advogarão o erro da posição jurisprudencial, sustentando seu caráter casuísta e pouco técnico, descurando, assim, da modificação inerente ao fluxo do tempo e da necessidade da adaptação dos termos abstratos à concretude cotidiana. De grande sabedoria, como sói ocorrer, a passagem de Miguel Reale[2] quando faz a seguinte observação:

“O reajustamento permanente das leis aos fatos e às exigências da justiça é um dever dos que legislam, mas não é dever menor por parte daqueles que têm a missão de interpretar as leis para mantê-las em vida autêntica.”

Por isso, nenhum dos dois radicais está com a razão, justificando-se sim a análise da trajetória dos institutos para bem compreendê-los e cotejá-los com as condições reais de sua aplicabilidade, mudando-se sua feição, caso necessário, ou, até mesmo, descartando-os no caso de inviabilidade de sua concreção hoje.

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Inaplicabilidade

Note-se, ainda, que ao lado da revisão histórica do instituto, existe a questão da inaplicabilidade dos conceitos por mera subsunção, como se existisse como premissa maior a hipoteca e suas caraterísticas e, enquanto premissa menor, o caso concreto, do conjunto de premissas emergindo a conclusão da oponibilidade da garantia real ao adquirente. Esse tipo de raciocínio reducionista é causa de muito mal, escondendo por meio de uma suposta técnica um modo conhecido de fazer injustiça. Aliás,  como bem apontado por Miguel Reale[3]:

“É por isso que dizemos que uma sentença nunca é um silogismo, uma conclusão lógica de duas premissas, embora possa ou deva apresentar-se em veste silogística. Toda sentença é antes a vivência normativa de um problema, uma experiência axiológica, na qual o juiz se serve da lei e do fato, mas coteja tais elementos com uma multiplicidade de fatores, iluminados por elementos intrínsecos, como sejam o valor da norma e o valor dos interesses em conflito.”

E por isso, não raramente, pessoas com pouco conhecimento técnico-jurídico (no seu sentido meramente conceitual) são capazes de promover mais justiça, dada a subsistência da capacidade de olhar o resultado absurdo que seria o consumidor pagar o imóvel e não ficar com a propriedade livre do mesmo. De igual modo, dependendo do tipo de estudo que o sujeito faça, ele acaba sendo mais injusto do que era antes, fazendo injustiça e escamoteando-a por meio do uso de termos mais sofisticados.

Daí a necessidade de pensar-se a técnica sempre dentro da realidade concreta e diante da complexidade fáctica e normativa, reconhecendo-se as tensões inerentes ao mundo e sentindo-se o drama existencial de cada conflito. Isso não pode resultar, entretanto, em mero emotivismo, vez que a justificação racional, pública e intersubjetiva é condição de legitimidade da interpretação jurídica.

Referências

[1] TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 106 e 107.
[2] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 611.
[3] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 610.

 

Tiago Bitencourt de David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL.
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