O Provimento n. 68 do CNJ e o espaço de cada um

Coluna Valdete Souto Severo

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Exercício dos poderes de estado

Talvez seja apenas o natural efeito do esgotamento de uma fórmula de organização social que, por haver sido instituída há mais de dois séculos, pode mesmo ter se tornado inadequada. A ideia de tripartição de poderes foi concebida como um modo de organizar o poder público sem permitir que a concentração de todas as possibilidades de ingerência sobre os âmbitos público e privado seguissem concentradas nas mãos de um único sujeito. Essa conquista de modernidade, porém, dá claros sinais de esgotamento.

Há um desajuste acerca das funções que devam ser exercidas por cada um dos poderes de estado. As súmulas são ótimos exemplos disso. De resultado da reiterada posição de um tribunal sobre determinada matéria, a fim de evitar o dever de seguir dizendo a mesma coisa, em processos similares, as súmulas passaram a constituir fórmula mágica para que o Poder Judiciário produza suas próprias regras, inclusive, por vezes, descoladas do que dispõe o ordenamento jurídico. Basta ver o simbólico exemplo da Súmula 331 do TST, que “legislou” sobre terceirização quando lei alguma no país autorizava a prática da intermediação de força de trabalho, senão em hipóteses bastante específicas, como a do vigilante.

A Emenda Constitucional n. 45 criou mais um agente de poder: o Conselho Nacional de Justiça. Órgão do Poder Judiciário (art. 92 da CF/88), pelos termos do art. 103-B, o Conselho Nacional de Justiça é presidido pelo Presidente do STF; os demais membros são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Sua função é controlar a “atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário” e o “cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”; “zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura”, inclusive conhecendo das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário ou revendo processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano. Em seu site na internet, consta como função do CNJ “aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual” (www.cnj.jus.br). Sua missão é “desenvolver políticas judiciárias que promovam a efetividade e a unidade do Poder Judiciário, orientadas para os valores de justiça e paz social”.

O Provimento n. 68

Foto: Gil Ferreira/Agência CNJ

Foto: Gil Ferreira/Agência CNJ

No dia 03/5/2018, o CNJ expediu o Provimento n. 68, que “dispõe sobre a uniformização dos procedimentos referentes ao levantamento de depósitos judiciais e ao bloqueio de valores”, estabelecendo que “as decisões, monocráticas e colegiadas, que deferem pedido de levantamento de depósito condicionam-se necessariamente à intimação da parte contrária para, querendo, apresentar impugnação ou recurso”. E que (art. 2º) “o levantamento somente poderá ser efetivado 2 (dois) dias úteis após o esgotamento do prazo para recurso”.

Há regulação estatal específica acerca da possibilidade e das circunstâncias que cercam a liberação de dinheiro relativo a depósito judicial. Na CLT, por exemplo, o artigo 899, parágrafo primeiro, textualmente refere que havendo depósito recursal, “transitada em julgado a decisão recorrida, ordenar-se-á o levantamento imediato da importância de depósito, em favor da parte vencedora, por simples despacho do juiz”. Não há determinação de intimação da parte contrária. Nem há previsão de recurso.

O CPC, quando trata da liberação de dinheiro em execução provisória, nos artigos 520 e 521, dispõe expressamente que “o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos” (art. 520, IV) e que “a caução prevista no inciso IV do art. 520 poderá ser dispensada nos casos em que: I – o crédito for de natureza alimentar, independentemente de sua origem; II – o credor demonstrar situação de necessidade” (Art. 521). Novamente aqui não há previsão legal para que a parte contrária seja intimada ou mesmo para que o juiz aguarde dois dias úteis após o prazo do recurso para então liberar os valores. Aliás, nem há previsão de recurso específico. Quando trata da execução definitiva, o art. 905 do CPC determina que o juiz autorizará o levantamento do dinheiro, novamente sem estabelecer a necessidade de intimação do executado.

A Constituição fixa como de competência privativa da União, através do Poder Legislativo, “legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho” (Art. 22) e o CPC atribui aos tribunais a função de uniformizar interpretações acerca da extensão do texto legal.

Resta então a dúvida acerca da possibilidade de que procedimentos especificamente previstos no ordenamento jurídico sejam alterados por atos do Poder Judiciário ou do Executivo, sem passarem pelo filtro da aprovação pelo Parlamento. Trata-se de uma discussão importante, que inclusive já foi provocada pela ABRAT – Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas, em solicitação protocolada no dia 08/5/2018, para que o CNJ reconsidere a edição do Provimento n. 68 ou, em caso de não reconsideração, o revogue.

A consequência prática de uma tal exigência também merece atenção. Ao ser intimada acerca da decisão de liberação de um depósito que já está à disposição do juízo, o que dirá a executada? E qual será o recurso de que poderá dispor, se se tratar, por exemplo, de decisão interlocutória em processo do trabalho? Ou se tiver esgotado todas as possibilidades de recurso em uma execução definitiva? A espera de dois dias úteis para que haja o levantamento do valor terá qual finalidade?

Em ambientes nos quais se discutem créditos de natureza alimentar, como ocorre no processo do trabalho, o tempo pode se tornar algoz, pois como já dizia Russomano, em obra publicada em 1956, “a fome não respeita prazos processuais”.

 

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Valdete Souto Severo é Articulista do Estado de Direito – Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.
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