Artigo publicado na 43ª edição do Jornal Estado de Direito
O PROBLEMA DA CORRUPÇÃO: ALGUMAS REFLEXÕES
O problema da corrupção é, sem sombra de dúvidas, um grande desafio a ser enfrentado pelas nações. A compreensão desse fenômeno intriga estudiosos e leigos. Muitas vezes não se compreende, por exemplo, como é que gente abastada financeiramente ou mesmo pessoas com elevado grau de instrução acaba, por vezes, se envolvendo nesse tipo de atividades ilícitas.
A explicação tradicional para os atos de corrupção busca identificar alguma sorte de defeito no caráter de pessoas envolvidas em tais atos.
Por outro lado, a solução protagonista para debelar essas práticas tem nas alterações legislativas a sua principal força gravitacional.
Em nossa opinião, entretanto, as causas e soluções geralmente oferecidas sofrem de uma compreensão equivocada de tal fenômeno.
A ideia de corrupção como defeito de caráter é tributária de uma visão subjetivista tipicamente kantiana, em a ética era extraída da lei moral interna do indivíduo. Essa visão é expressada pela bela e conhecida passagem de Kant: “Duas coisas me enchem o ânimo de admiração e respeito: (…) o céu estrelado acima de mim e a lei moral que está em mim”.
Já a solução proposta para o problema da corrupção centrada no aprimoramento legislativo, decorre do fetiche juspositivista – que ainda goza de grande prestígio entre nós – de crer que a lei constitui, por si só, instrumento privilegiado de alteração da realidade social.
De tal maneira, é possível afirmar que o subjetivismo kantiano e o positivismo jurídico vêm servindo de fundamento filosófico em cima dos quais têm sido construídas as soluções tradicionais para o problema da corrupção e que, em nossa opinião, têm se mostrado incapazes de reagir frente a esse fenômeno.
Diante disso, pretendemos aqui propor um cambio de perspectiva, para que a compreensão do tema seja iluminada pelo paradigma da filosofia da linguagem, notadamente daquela fundada por Ludwig Wittgenstein, a partir de sua obra Investigações Filosóficas.
Uma concepção central do pensamento de Wittgenstein gira em torno da ideia de formas de vida (lebensform).
Para WITTGENSTEIN a vida social humana não é pautada exclusivamente por predileções individuais da pessoa, mas sim é guiada, fundamentalmente, por regras, não necessariamente jurídicas, que nos permitem reconhecer o certo e o errado, criando um hábito intersubjetivo capaz de indicar um horizonte de ação a ser seguido pelo sujeito.
São essas práticas que nos guiam, nos orientam como devemos nos comportar e pautam, em nosso dia-a-dia, como de fato nos comportamos.
Tais normas práticas são construídas intersubjetivamente, por meio da linguagem, do ensinamento e da aprendizagem que temos ao longo da vida, de acordo com o contexto de nossa cultura, tradição e sociedade.
Assim, o agir ético de uma pessoa não decorre, como defendia KANT, de uma obrigação moral universal de atuar justamente.
São as formas de vida, costuradas intersubjetivamente, que apresentam os caminhos éticos que cada indivíduo, mergulhado nesse contexto de regras e praticas sociais, irá trilhar.
O agir ético não vem do individuo, mas daquilo que ele aprendeu em sua família, em seus círculos de amizade e de trabalho, em sua comunidade e na sociedade em que vive.
Assim, partindo da ideia de que as formas de vida têm grande influência na prática ou não de atos de corrupção, passamos a ser capazes de desenvolver uma nova trilha de vida, para que se identifique com aquilo que nossa Constituição, republicana e democrática, tem como a adequada.
Os caminhos para tal desenvolvimento, é importante deixar bem claro, não podem ser traçados metafisicamente. Não há um método universal de superação da corrupção.
A propósito, é importante, também, esclarecer que o próprio emprego da palavra corrupção não é universal, uma vez que são tão variadas e distintas as formas de corrupção que seria uma ilusão pensar que se possa colocar todas essas modalidades sob um superconceito de corrupção.
O emprego unificado da expressão corrupção neste texto, portanto, tem muito mais uma função didática, que propriamente conceitual.
Dito isso, nos parece claro que uma das saídas para alterar as formas de vida amigáveis à corrupção – que, não há dúvida, são encontradas em muitas repartições públicas e privadas – passa necessariamente pela linguagem.
A comunicação de boas razões, dotadas argumentação racional ou mesmo de persuasão, no sentido de convencer o cidadão, o funcionário público, o empresário, a seguir as normas de integridade, constituem o mais poderoso instrumento para a transformação das formas de vida.
Essa comunicação de boas razões, pode ser promovida por meio das mais variadas maneiras.
A título de contribuição meramente ilustrativa, é possível indicar alguns caminhos promissores, como por exemplo: i) a adoção de práticas exemplares pelos agentes públicos e privados que ostentem posição de destaque ou hierarquicamente superior, criando um hábito de integridade no ambiente de trabalho; ii) a realização de capacitação dos funcionários em matéria de integridade, transmitindo, por meio da aprendizagem, boas razões para um agir ético; iii) a implementação de um tratamento legítimo com relação aos funcionários, potencializando a criação de vínculos de lealdade, entre os agentes e as normas de integridade; iv) a promoção de um tratamento íntegro e impessoal pelo Estado em relação às pessoas físicas e jurídicas com quem mantém contato, sinalizando claramente que, por exemplo, para se obter contratos ou serviços, vale a pena ser honesto, uma vez que haverá critérios justos para a satisfação de pretensões junto aos órgãos estatais, exigindo-se, também, reciprocidade nessa forma de tratamento.
Ademais, e agora já falando em um plano mais macrocósmico, é fundamental que o Estado, a sociedade e a família efetivem agir ético, fomentando, assim, um sentimento de orgulho e reconhecimento nas práticas íntegras e valorizando as práticas solidárias, em detrimento das egoístas.
Para encerrar, é de se reconhecer a complexidade dos problemas e a dificuldade de se mudar velhos hábitos. Isso, porém, – e sempre correndo o risco de parecer ingênuo – não deve inibir a incansável tentativa de mudança.
Afinal, o problema da corrupção não é um problema dos outros, ele é nosso.
Ademais, não é um problema teórico, é prático, uma vez que somente com uma efetiva alteração de nossos hábitos, será possível viver em uma sociedade que promove a ética e reprova a corrupção.
Rodrigo Leite Ferreira Cabral
Doutorando pela Universidad Pablo de Olavide
Promotor de Justiça no Estado do Paraná