O novo papel político da Guarda Municipal

Coluna Democracia e Política

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Foto: Ederson Nunes/CMPA

Foto: Ederson Nunes/CMPA

Quem é vândalo, cara pálida?

A aprovação, pela Câmara Municipal de Porto Alegre, na última quarta-feira (20), da “Lei Antivandalismo” é um presente de natal de grego para os porto-alegrenses. A lei prevê multas de até R$ 395 mil para quem “embaraçar ou impedir, por qualquer meio, o livre trânsito de pedestres ou veículos nos logradouros públicos”. A lei fere o direito de livre manifestação garantido pela Constituição Federal, mas mesmo assim, foi aprovada pelos vereadores no PLC 06/17, na alteração das atribuições da Guarda Municipal. Sequer a Guarda Municipal está satisfeita, pois foram ampliadas suas atribuições sem respectivo aumento de vencimento.

Na defesa do Projeto, o Prefeito Nelson Marchezan Jr defende a necessidade de “coibir retrocessos na conduta dos cidadãos”. O problema é quem a Lei escolhe como “inimigo de estado”: a lei é um manual de instruções para o exercício da violência sobre os movimentos sociais. Espécie de atualização do AI-5, qual é o seu maior mecanismo de violência? O monetário. A chave da repressão política deixa de ser a prisão e a consequente tortura para assumir a face da multa, eis-nos diante de outra expressão da lógica neoliberal. Agora, multas que não passavam de 100 reais podem chegar a 395 mil. O Prefeito descobriu uma forma de exercer a violência: basta para isso criminalizar a ocupação do espaço público. E botar um preço caro nisso.

A lei também abusa de mecanismos típicos do nazismo. A proposta é o denuncismo, já que multas podem ser emitidas a partir de denúncias de qualquer cidadão, por internet ou telefone. Você é servidor público, está com salário parcelado e vai as ruas protestar. Agora, sua vizinha, uma liberal eleitora de Bolsonaro, pode denunciar você por perturbação do espaço público. Ora, o espaço público deve ser fruído, gozado, para tudo, inclusive para a política. Mas essa não parece ser a concepção do Prefeito em meu entendimento, que revela uma concepção asséptica de uso do espaço público. Nesse sentido, a lei só poderia ser editada mediante alteração das funções da Guarda Municipal, que amplia suas funções de órgão repressor.

A estratégia denuncista

A lei assegura à guarda o direito de garantir o acesso universal ao uso dos espaços públicos, disciplina o dever do Poder Público e da população de conservação dos espaços públicos em boas condições de uso e fruição e ainda promove a responsabilização dos infratores pelos danos causados à fruição do espaço público, ao patrimônio e ao meio ambiente, tudo em nome do  (sic) “fomento ao comércio da capital e o empreendedorismo”. A passeata atrapalha o comercio: proíba-se a passeata e multem-se seus participantes, equivalente do “cortem-lhe as cabeças” da Rainha, personagem de Alice no País das Maravilhas.

Vereadores contra o projeto, como a líder da oposição Fernanda Melchionna (PSOL), acusaram o governo de usar a Guarda Municipal como pretexto para definir um inimigo, o manifestante que ocupa o espaço público. Ora, isso é justamente o jogo de linguagem moral, isto é que carrega não só a reprovação de militantes políticos, mas manifestações de escolas de samba ou qualquer outro em luta por direitos, todos são condenados de imediato.

Foto: Joel Vargas/PMPA

Foto: Joel Vargas/PMPA

O novo inimigo de estado 

Nas minha interpretação, o que a lei faz é descrever aquele que ocupa o espaço público como inimigo da ordem e da paz, o que cria a possibilidade de punição que “deve” ser levada a cabo pelo Prefeito. Observe que o termo “inimigo” não é usado, mas é como se fosse, pois, os punidos tem as mesmas características performativas dos criminosos em geral.Mas a questão é que servidores em manifestações não são criminosos, são vítimas!

Horácio Luján Martinez em “Carl Schmitt e a ressignificação de seu conceito de “inimigo” pelo terrorismo de estado argentino (1974-1983)”, capítulo do livro  Terrorismo de Estado, organizado por Guilherme Castelo Branco (Editora Autentica, 2013), lembra que “no começo foi a decisão”, frase famosa da Teologia Política de Carl Schmitt que define o soberano como aquele que decide o estado de exceção. Esse é o lugar ocupado por Marchezan com seu projeto de lei, ele simplesmente se auto justifica pela sua enunciação, é a palavra divina do prefeito que se sobrepõe a qualquer outra definição de espaço público. O Prefeito decidiu que é assim e os vereadores aceitaram. Ponto Final.

Não é incrível que os nomes que sinalizavam, nos termos de Martinez, a ditadura argentina sejam semelhantes aos usados pelo Prefeito? Lá tratava-se de justificar a necessidade de implementar um “processo de reorganização nacional”; aqui trata-se de “redimensionar as sanções por infrações ao convívio e posturas públicas, assim como prever novos tipos infracionais e procedimentos para sua aplicação”; lá, tratava-se de prevenir a “guerra suja”, aqui trata-se de “de manter-se a limpeza e ordem na cidade”.

O cidadão porto-alegrense como inimigo interno

O que é semelhante nos dois casos? Em ambos, o Estado – aqui a Prefeitura – se descobre como responsável pela reorganização de seu espaço através de seu aparato repressivo como se preparasse para uma guerra: na Argentina, de fato, capitaneada pelas forças armadas; em Porto Alegre, de direito, capitaneada pela ampliação do papel repressivo da Guarda Municipal.  Ambos compartilham da ideia de “inimigo interno”, que opera com meios não convencionais, pela ocupação dos espaços públicos sem …autorização! Mas o espaço é público e o direito de ocupa-lo é dado pela Constituição! Eis o ponto de Carl Schmitt: “quem nomeia, legisla”. O fato de que a guerra de Marchezan, nessa interpretação, é feita contra o cidadão que ocupam o espaço público torna o exercício do poder repressivo da Prefeitura necessário. Diz Martinez: “A violência de estado schmittiana fundamenta-se num ato originário: o de definir (nomear) quem é o inimigo” (p.109).

Como é possível ao Prefeito eleito definir o manifestante no espaço público como inimigo? No texto O conceito do político, Carl Schmitt desenvolve o binômio “amigo/inimigo” para lembrar o fundamento da guerra na política, ideia central ao pensamento de Clausewitz. Para este último, a guerra tem suas leis específicas, “mas a política permanece como o seu cérebro”. Para mim, a lógica própria da guerra proposta por Marchezan é tirada dos conceitos schmittianos de “amigo e inimigo”, pois ver o povo nas ruas como inimigo funda sua visão de controle social. Aqui, na lei aprovada, inimigo da prefeitura é aquele que ocupa o espaço público, que recusa a defender as ideias do estado-que-está-aí, e por isso, fornece a esse mesmo estado a medida de sua decisão. O Prefeito não está preocupado com os conteúdos das manifestações, mas definir um critério que abranja as manifestações que em seu íntimo, em minha interpretação, quer reprimir.

Marchezan como novo soberano

Foto: Joel Vargas/PMPA

Foto: Joel Vargas/PMPA

Por isso, no raciocínio de Carl Schmitt, onde o soberano é o que decide o estado de exceção, é reproduzido por Marchezan, que assim está ao mesmo tempo dentro e fora da justiça, ao mesmo tempo falando o que está dentro e fora da legalidade – mesmo contrariando leis maiores que já dizem o que é justo e injusto. E assim, da mesma forma que Martinez lembra que essa prática era comum para impérios justificarem sua violenta expansão territorial, num tom retórico que quer nos persuadir da autencidade e necessidade da violência de estado, Marchezan, em sua justificativa, que nos persuadir da autencidade e da necessidade da violência de estado contra quem quer que pertube o espaço público, e daí, como efeito, perpetuar sua ação sobre as manifestações populares. Ora, a lei só faz o trabalho “político” de tornar inimigo da Prefeitura quem ocupa espaços públicos, mas ao fazer isso, despreza toda e qualquer justificativa moral de sua ocupação, porque decidiu em primeiro lugar.

Esse movimento é possível para Marchezan pela magia que existe entre as noções de “povo” e ”Estado”, identificados entre si e que permite a passagem em direção ao uso da violência, e nesse sentido, se aproximam ao que Martinez afirma como base lá da violência da ditadura argentina, que expulsa “povos originários” para criar uma nova ordem: aqui, povos originários são cidadãos em busca de seus direitos, expulsos do espaço público para criar que ordem? Para mim, uma ordem favorável aos desejos do capital, projeto que, na minha interpretação, é defendido pelo Prefeito. Ora, essa ação impune da violência é da mesma natureza do gesto paternal que ocorre quando uma criança vê o coito paternal, violência que diz da mesma forma pelo Estado aos cidadãos para que não tentem averiguar o que o estado teve de fazer para “manter a casa em ordem”.

Direito a aniquilação do inimigo?

A visão de Carl Schmitt de que o Estado vê a si mesmo com o direito de aniquilar o inimigo, usa esse argumento para justificar para si sua sobrevivência. Mas essa forma abstrata de ver o estado é longe de parâmetros morais, mantém a unidade da cidade pela violência e se o faz assim, negará, logo ali adiante, o reconhecimento de suas ações de repressão pura e simples como “terrorismo de estado”, incapaz de reconhecer seus próprios excessos.

Esses ”excessos” já estão presentes desde o início, quando o próprio líder do Governo, o vereador Moisés Barboza (PSDB), admitiu o aumento das competências da Guarda. Ainda que como governo, afirme que se trata de “combater o comércio irregular no Centro da Capital”, o temor dos movimentos sociais é que a lei autorize a repressão pura e simples de qualquer movimento social.

A Lei Antivandalismo como  retorno ao passado

Estaríamos retrocedendo, com esta lei, as condições da política do início do século? Claudia Mauch, em “Dizendo-se autoridade: polícia e policiais em Porto Alegre, 1896-1929” (Editora Unisinos, 2017) mostra as práticas de policiamento em suas tensões com a realidade das ruas no início do século. O “dizendo-se autoridade” do título remonta a expressão utilizada num caso de violência perpetrado por um policial, Pompilio, contra um popular, Izolino, no Beco da Centena, na Rua São Manoel, em casebres populares. A expressão, usada por um policial assassino, condensa os sentidos da violência de estado: como policial, podia legitimamente reclamar para si a autoridade da corporação para o uso da violência. Mauch lembra o detalhe: quando o ato violento foi feito, o policial estava em casa, de folga e sem farda. Mauch identificou duas concepções de autoridade no caso: uma de homens pobres investidos em poder de polícia, e outra, que via extrapolação na ação ilegítima.

Porque a abordagem de Mauch é importante? Ela mostrar as persistências, na polícia local, do passado como do presente: estamos investindo policiais de poder. Mais poder. E isso repercute em concepções de poder, de representação sobre classes subalternas, do papel do policial na sociedade. Mauch explora as significações de ser policial sob novas ordens: não é possível também se questionar o que ocorrerá com a corporação, e a repetição das mesmas lutas por membros da corporação, seja por sobrevivência, alinhamento a ordem, mesmo que o custo de obediência as suas regras sejam caro. Já podemos imaginar cenas de municipários, mais uma vez, sendo reprimidos por outros municipários ou populares, vítimas do governo estadual e municipal, com seus salários parcelados, sendo reprimidos por trabalhadores… também parcelados!

Uma estratégia: agir pela restrição 

Uma coisa é certa: mesmo com uma nova legislação, ainda assim, autoridades serão chamadas para explicar suas atitudes, porque realizaram ações de pressão, etc. Ao contrário de amplia o poder da Guarda Municipal, entendo que o principal legado da doutrina dos Direitos Humanos é que devemos agir no sentido contrário, de sua restrição. Para isso, agora que a lei foi aprovada, é preciso fortalecer o papel dos inquéritos administrativos no município, para que a fala dos guardas municipais em situações de confronto possa ser contraposta as de suas vítimas. Como no passado, mais uma vez, a polícia tem um papel político, não se trata de desarmar a população, mas determinar o que pode ser incluído na garantia da ordem pública.

Com isso, o governo atual, como o do passado, visa a arregimentar eleitores conservadores, mas a conduta de um partido nesta posição também importa. Tanto no presente como no passado, é a função de vigilância e controle sobre a desordem no espaço público, com a diferença de que agora, prostitutas e vadios cedem espaço a militantes de partidos, líderes de movimentos sociais. No presente como no passado, trata-se de mais uma vez “fichar”, isto é, identificar, criminalizar, construindo atores que se tornam alvos de vigilância especial da guarda, as “novas classes perigosas”.  Mauch fala da polícia administrativa, antecessora da Guarda Municipal, e surpreende que ainda possam ser passados quase cem anos, tamanhas similitudes entre as duas.

 

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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