O GOLPE NEOLIBERAL NO BRASIL
O presente estudo será publicado em três partes. 1ª Parte – O Neoliberalismo No Brasil E Os Antecedentes Históricos Do Golpe
Autor Marcelo José Fernandes da Silva, Procurador do Trabalho e mestrando em Filosofia pela UFRJ
Muito se tem dito sobre o dia 8 de janeiro de 2023. Pelo menos, entre os democratas, não há qualquer dúvida de que foi uma tentativa de golpe, que envolveria parte significativa das Forças Armadas e que os acampados ao redor dos quartéis esperaram até o limite da “esperança”, que uma resposta saísse com os tanques nas ruas.
É inegável que o Supremo Tribunal Federal, principalmente, por meio de inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes, assim como o Tribunal Superior Eleitoral têm tido um papel de imensa relevância na manutenção das instituições e do respeito à democracia construída em nosso país.
Olhando por outro prisma, entretanto, há uma percepção, mormente entre os trabalhadores, aposentados, operadores do Direito do Trabalho e do Direito Previdenciário, de que há um processo de sedição contra a Constituição Federal de 1988, que se manifesta, expressa e propaga de dentro das próprias instituições democráticas.
Portanto, não obstante o golpe militaresco tenha fracassado, há que se reconhecer que está em andamento, um golpe de outra natureza, de índole fascista e neoliberal.
E, embora, ocultado pela roupagem da toga, esse golpe, em andamento, tem como principal articulador para conclusão o Supremo Tribunal Federal e dele, paradoxalmente (apenas na aparência), o ministro Alexandre de Moraes faz parte.
Para saber de que golpe estamos falando, precisamos retornar ao final dos anos 1980. Em 1989, três candidatos disputavam de forma competitiva o primeiro turno das primeiras eleições diretas desde a queda de João Goulart em 1º de abril de 1964. Lula ganharia a presença no segundo turno do também histórico trabalhista Leonel Brizola.
Em primeiro lugar, Collor de Mello com um discurso que apontava diversos inimigos internos da nação brasileira, que, segundo ele, impediriam o desenvolvimento do país. Essa é a primeira lógica do final do século passado até os nossos dias: as campanhas precisavam apontar inimigos, esses inimigos deveriam ser pessoas que morassem no mesmo bairro, na mesma cidade e país.
Não se tratava de uma análise histórica da luta de classes, mas de que as classes tivessem inimigos comuns, como outrora foram judeus, pessoas com deficiência, negros, homossexuais e feministas, que rompiam com a hierarquia social.
Inimigos de carne e osso, que estivessem lado a lado, e esse movimento só poderia ser acionado mexendo com os sentimentos mais primitivos do ser humano, entre eles o medo e o ódio.
O caçador de marajás enxugaria a máquina pública, reduzindo o número e o salário dos servidores, abriria a economia, venderia empresas públicas e entregaria ao mercado a capacidade de gerar riqueza e dividi-las.
No início da década de 90, já estavam presentes características necessárias para a implementação dessas diretrizes, incluindo um líder carismático, saído das Alagoas. Essas diretrizes, entretanto, não eram produto de uma escolha de uma política eleita por cidadãos esclarecidos e completamente livres. O Brasil encerrava o ciclo de transição de um país massivamente rural para um país amplamente urbano.
O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, naquela época, a partir de iniciativas de economistas como John Williamson, redigiram documentos que estabeleciam políticas econômicas que deveriam ser aplicadas em países em desenvolvimento, diretrizes que ficaram conhecidas como Consenso de Washington e que se espraiaram, pelas razões que serão abaixo alinhadas, para os países europeus, conforme explana Wendy Brown em Nas ruínas do neoliberalismo (2019): “O que começou no Hemisfério Sul logo fluiu para o Norte (…)”.
Como é cediço, lembremos que com as duas grandes guerras na primeira metade do século XX, o pensamento econômico se dividia entre os keynesianos, que defendiam a intervenção estatal com estímulos à economia, inspirador do Plano Marshal para reconstrução do mundo pós-guerra, e entre os discípulos do economista austríaco Friedrich August von Hayek, que defendia exatamente o contrário, ou seja, um estado mínimo e a entrega da economia ao mercado, conhecidos como neoliberais.
Entretanto, no início da década de 1970, ainda de acordo com Wendy Brown, os teóricos neomarxistas interpretavam o neoliberalismo como um ataque aos estados de bem-estar social:
Tais eram precisamente as políticas impostas ao Chile por Augusto Pinochet e seus assessores, os ‘Chicago Boys’, em 1973 e logo depois levadas ao Fundo Monetário Internacional, na forma de mandatos de ‘ajuste estrutural’, vinculadas à reestruturação dos empréstimos e da dívida (…). Esta análise talhada por uma abordagem neomarxista, concebe o neoliberalismo como um ataque oportunista dos capitalistas e seus lacaios políticos aos Estados de Bem-estar social Keynesianos, às sociais-democracias e ao socialismo de Estado. (BROWN, 2021, p.29).
Interpretação adotada neste artigo, pois ao final da década de 1980, com a queda do Muro de Berlin, os economistas que estudaram em Chicago, capitaneados pelo Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial passaram, portanto, a apostar no neoliberalismo para as economias em desenvolvimento. Ou seja, a partir daquele momento, já sem a União Soviética como polo da guerra fria e os comunistas em descrédito, o neoliberalismo passou a ter outros inimigos: os países em desenvolvimento e suas economias fechadas, mas também e, mais tarde, aqueles estados que construíram fortes estruturas sociais como forma de minorar os efeitos deletérios do liberalismo econômico e para afastarem os movimentos revolucionários comunistas.
Essa perseguição incansável sobre os restos da esquerda e sobre os estados de bem-estar social, que se manifestou pela Guerra Fria, pela ampliação da OTAN, foi bem notada pelo professor de História da Universidade da Califórnia, Jacoby Russel, em seu livro O Fim da Utopia (2001), que é uma resposta crítica ao O Fim da História e Último Homem (1992), de Francis Fukuyama.
Esse ponto é fundamental no pensamento de Jacoby, que, citando diversos autores, entre eles André Gorz, no sentido de que com a queda do stalinismo, “não é apenas um tipo de socialismo que entra em colapso (…) Desmorona também a concepção de socialismo (ou comunismo) “autentico”. E continua transcrevendo Robinn Blackburn: “A derrocada do stalinismo levou de roldão o comunismo reformista, sem beneficiar o trotskismo, a social democracia ou qualquer corrente socialista”. (JACOBY, 2001, p. 29, grifo nosso).
E, nessa luta contra os estados de bem-estar social, quem os representa, como inimigos reais são os servidores públicos, os aposentados e os empregados de empresas públicas.
Pelo discurso dos economistas neoliberais, como tudo seria resolvido pelo mercado, o neoliberalismo é marcadamente destruidor desses “privilégios”, aplicando reformas administrativas, previdenciárias e solapando todas as conquistas trabalhistas.
No Brasil, Collor foi afastado, criou-se o real e, com base no sentimento do medo, mais uma vez o candidato Lula foi derrotado por Fernando Henrique Cardoso, que acabou ganhando o direito à reeleição e um segundo mandato também baseado no medo de que a esquerda sustaria as políticas neoliberais.
Note-se, ainda, que, como o neoliberalismo se apoia na prevalência do mercado e sua autorregulamentação, o empreendedorismo é sua propaganda para os trabalhadores, que por sua vez são dispensados, recebem planos de demissão voluntária, investem em pequenos negócios, são derrotados pela competição liberal e a eles dizem os políticos e economistas: “você trabalha como motorista de taxi e, recentemente, como motorista de Uber, porque não é um empreendedor”. Impondo-lhes a derrota como pessoal. Para os neoliberais, a incompetência está na pessoa, da mesma forma que o charlatão coloca a culpa da não-cura na falta de fé do crente.
Os neoliberais também têm outros arsenais de desculpas, como dizer que a economia não melhorou, porque as reformas não foram suficientes e precisam ser cada vez mais radicais.
Com a expansão das diretrizes neoliberais para todo o mundo ocidental,
a própria esquerda teve que se moldar ao neoliberalismo, porque entendeu que o mercado tem poder de derrubar governos.
A saída foi: perder os anéis e salvar alguns dedos.
Mas a esquerda não entregou tudo o que o mercado exigia: privatizações amplas, reformas administrativas mais severas e retirada total dos direitos previdenciários.
Embora mais resistente a ceder a mudanças tão radicais nos direitos dos trabalhadores, essa cooptação da esquerda pelos neoliberais, custou-lhe muito, inclusive a perda de apoio da sua base histórica (servidores, empregados públicos, aposentados e da classe trabalhadora privada).