Um dos tantos reflexos da modernidade é justamente a centralidade do indivíduo. O homem passa a buscar as verdades em si mesmo. E como perde suas referências incontestáveis, pois não está mais atrelado à vontade de Deus e da natureza, precisa ser um sujeito autorreferente. Daí toda a construção teórica moderna acerca da autonomia como capacidade para negociação. Aliás, é esse conceito de autonomia, denunciado como falacioso por autores como Marx, Nietzsche ou Freud, que confere ao homem a liberdade para exercer sua vontade sobre o outro, sobre o mundo e sobre a natureza. É também ele que permite a mágica pela qual um ser humano consegue, pretensamente preservando sua autonomia, ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de um contrato. É o que ocorre na relação de emprego: quem trabalha é sujeito, porque contrata “livremente”, mas também é objeto, porque a troca se dá justamente entre remuneração e força de trabalho (que não se desgruda do trabalhador). Essa é a autonomia moderna: liberdade para vender tempo de vida e saúde (basta pensar nas hipóteses de trabalho insalubre); liberdade para assumir as consequências do próprio fracasso.
O que tudo isso tem a ver com a expressão que ganhou espaço no discurso trabalhista da década de 1990, no mesmo período em que se pretendeu a extinção da Justiça do Trabalho, e que retorna agora com vigor e dá título a esse breve ensaio?
O “negociado sobre o legislado” representa a tentativa neoliberal de eliminar a proteção das normas fundamentais trabalhistas. Esteve em alta no governo FHC, com a proposta de alteração do art. 618 da CLT, que acabou arquivado por pressão social. Agora, retorna à cena em um “enxerto” inserido na MP 680, que institui o Plano de Proteção ao Emprego. O artigo, incorporado ao projeto que pretende converter em lei essa famigerada MP, altera a redação do 611 da CLT, para acrescentar parágrafos que autorizam a prevalência de condições estabelecidas em normas coletivas, em detrimento dos direitos mínimos contidos na CLT. Trata-se de nova e idêntica tentativa de afastar a aplicação da CLT aos trabalhadores. Agora, porém, diante de um cenário político hostil e predatório, que não tem hesitado em aprovar retrocessos sociais.
O discurso de reforço à autonomia coletiva das vontades não é novo, nem necessariamente falso. Tem servido, porém, para desviar o foco e, concretamente, suprimir qualquer possibilidade de pressão do trabalho sobre o capital. A própria denominação incorporada ao vocabulário trabalhista, de “negociação” coletiva, conduz à ideia de troca recíproca, quando em realidade as normas coletivas são fruto da organização e da pressão dos trabalhadores por condições de trabalho melhores do que as que possuem. Trata-se de um fato social incorporado pelo Estado, que o precede e supera. Capital e trabalho não negociam, travam embates para fixar limites a essa troca objetivamente desigual. E nesse embate, o trabalho está em desvantagem, razão da necessidade de organização coletiva. Sem essa organização, dificilmente há melhoria real das condições de vida dos trabalhadores. Basta olhar a história. Daí porque é indiscutível a importância de valorizar e garantir condições reais de pressão aos sindicatos. Para isso, porém, não é necessário dar às normas coletivas força maior do que detém a legislação social. Ao contrário, ter a CLT, ao lado da Constituição e das normas internacionais de proteção ao trabalho, como parâmetro mínimo civilizatório, é a condição para que os sindicatos não sofram pressão inversa e acabem por chancelar a perda de direitos. Então, se o objetivo realmente é o de valorizar a autonomia coletiva, basta reconhecer eficácia ao inciso I do artigo 7º da Constituição, que garante proteção contra a despedida. Algo, aliás, já reconhecido em Convenções como a 87 e a 98 da OIT, em relação a todos aqueles que exercem atividade sindical e que tem sido sistematicamente desrespeitado no Brasil. Se o objetivo é valorizar a autonomia coletiva, basta reconhecer (de verdade) ultratividade às normas mais benéficas, incorporando-as aos contratos de trabalho. Mas é aí que a ideologia da autonomia moderna entra em ação. A ideia de que somos livres para negociar, especialmente quando representados por um sindicato, anestesia a realidade de que em um contexto capitalista essa liberdade, quando efetivamente exercida, enfrenta severas restrições.
A sedução do discurso da autonomia coletiva das vontades não resiste, pois, a qualquer exame concreto. Recentemente, os servidores públicos federais, detentores de garantia de emprego e devidamente representados pelo sindicato, foram compelidos a dar fim ao movimento paredista, após a notícia de que teriam seus salários cortados. Em Porto Alegre, trabalhadores militantes da CARRIS, foram despedidos sob alegação de falta grave após intensa atuação sindical em defesa da categoria. Pois bem, se mesmo a garantia contra a despedida não impede a pressão do capital sobre o trabalho, será mesmo coerente crer que a autonomia coletiva possa ser exercida em uma realidade ainda mais precária, pela ausência dessa garantia, como é a da grande maioria das categorias de trabalhadores brasileiros? Será mesmo razoável entender que colocar a norma coletiva acima dos direitos mínimos previstos na CLT poderá constituir, sob qualquer perspectiva, algo benéfico aos trabalhadores?
O que se pretende então, sob o discurso de fortalecer os sindicatos dando-lhes autonomia, é retirar dos trabalhadores os direitos mínimos que foram arduamente conquistados ao longo de mais de um século. E, com isso, retirar dos sindicatos os parâmetros de luta, submetendo-os a uma “negociação” sem limites com o capital.
É preciso perceber com clareza: nada na atuação dos entes coletivos se perde ou minimiza, em razão da proteção legal. Ao contrário, o parâmetro mínimo estabelecido na legislação trabalhista é o ponto de partida para qualquer espécie de “negociação”. A proposta, portanto, é de desmanche da legislação social. Nada de novo, em um quadro de franco e agressivo retrocesso, como o que estamos enfrentando neste ano de 2015.
Hoje é um dia de luto para o direito do trabalho. O projeto que pretende a instauração do “negociado sobre o legislado” foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Segue agora para o plenário. É preciso mobilização, sobretudo das entidades de classe que representam os trabalhadores brasileiros, para que o projeto seja definitivamente rejeitado. Estamos, uma vez mais, a um passo da institucionalização da barbárie.
Valdete Souto Severo – Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Européia de Roma – UER (Itália), Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (UDELAR), Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS