O Mito da Polícia Pacificadora

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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O acúmulo sócio-espacial da violência policial na Cidade do Rio de Janeiro.

Os problemas reais são bem graves e complexos para serem resolvidos por generalizações ultra simplificadoras e grandiloquentes, que jamais conseguiram explicar o que quer que seja”.

Nicos Poulantzas

No início de 2016, foi publicada uma Resolução no Diário Oficial da União abolindo nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais os termos ‘autos de resistência’ e ‘resistência seguida de morte’. A partir desta resolução, os chefes de órgãos policiais terão que registrar as mortes cometidas por policiais como ‘lesão corporal decorrentes de oposição à intervenção policial’ ou ‘homicídio decorrente de oposição à intervenção policial’.

Tal resolução, fruto da pressão de movimentos sociais de Defesa dos Direitos Humanos, infelizmente, não ultrapassa as margens do papel em que foi impressa, preservando as motivações da violência policial. As forças policiais brasileiras foram construídas como um aparato de defesa do Estado e dos grupos hegemônicos, relegando para as camadas hegemonizadas a posição de objeto de suas ações. Sua história revela seus atuais princípios normativos e operacionais.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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A formação da Polícia Brasileira

A polícia como instituição surgiu no Brasil em 1808, com a chegada de Dom João VI e da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro. A presença da Corte Portuguesa alterou os mecanismos de controle e disciplinarização da população, bem como toda a lógica de ordenamento territorial. As novas camadas urbanas buscavam implantar um processo de modernização da cidade, capaz de garantir o bem-estar das elites e a manutenção dos seus privilégios.

Ao passo que se buscava a modernização da cidade, as mazelas da ex-colônia aumentavam assustadoramente. A presença da Corte fez com que houvesse um salto populacional sem precedentes na história do Brasil, de um dia para o outro o número total de moradores da Cidade do Rio de Janeiro saltou de 50 mil para 100 mil habitantes. Muitos dos novos moradores eram imigrantes, não necessariamente portugueses, mas franceses, espanhóis e ingleses que vinham para a nova capital buscando enriquecimento rápido e emprego nas novas atividades comerciais e administrativas que proliferavam. A importância política que a cidade ganhou, contrastava com seus aspectos geográficos, uma vez que a cidade era marcada pela falta de moradias, sujeira e falta de segurança.

O descontentamento por parte das elites era evidente. O medo de revoltas por parte dos escravos e a necessidade de controlar e criar mecanismos de ordenamento do espaço, levou, em 10 de maio de 1808, a criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, órgão responsável pela limpeza da Cidade, pela implantação de obras públicas e, sobretudo, pelo policiamento e ordenamento do espaço urbano. Um ano mais tarde, em vista da insuficiência de recursos para a contratação de pessoal, pela diversidade de atividades confiadas à Intendência de Polícia e pela importância conferida a atividade policial, é criada a Guarda Real de Polícia – GRP, corpo encarregado especificamente pela segurança e implantação da ordem urbana na Cidade do Rio de Janeiro.

 A Praça dos Curros, como era chamado o Campo de Santana entre 1817 e 1822, onde ficava a Intendência de Polícia Fonte: multirio.rio.rj.gov.br


A Praça dos Curros, como era chamado o Campo de Santana entre 1817 e 1822, onde ficava a Intendência Geral de Polícia
Fonte: multirio.rio.rj.gov.br

O controle dos corpos negros

A GRP estabeleceu medidas bem definidas de disciplinarização e controle, objetivando preferencialmente os escravos e negros libertos, sendo a truculência e a violência marcas fundamentais de tratamento e operacionalização dos seus objetivos. Curiosamente, mesmo que a violência representasse uma estratégia de controle, a vida dos transgressores deveria ser preservada. A ‘morte de negros’ não era uma medida aceitável. Tal fato não se alinhava a uma visão valorativa da ‘vida dos escravos’, mas pelos interesses econômicos, pois a mão-de-obra negra representava uma das principais engrenagens da economia colonial. A crueldade da escravidão não permitia que estes recebessem penas capitais.

Materializava-se no Rio de Janeiro algo semelhante aos Suplícios descritos por Foucault (1987). Entretanto, existia uma diferença fundamental, pois a análise de Foucault baseava-se nos suplícios realizados sobre pessoas livres que haviam cometido algum delito, enquanto no Brasil, a aplicação de suplícios não representava um delito cometido, mas o simbolismo de que se estava lidando com uma mercadoria, um objeto, pois qualquer ato de indisciplina era motivo para o açoite.

Neste cenário, a interiorização de mecanismos de controle e disciplinarização pelo cidadão comum, tinham pouca sustentação. Em uma sociedade composta em sua maioria por escravos e senhores, as regras e normas estabelecidas pelo Estado deveriam ser cumpridas, mas, na maioria das vezes, elas só valiam para os negros livres ou libertos. O interesse era controlar o corpo do escravo, impedindo desordens e rebeliões que colocassem em risco a ordem urbana e consequentemente a própria elite. A lógica do ordenamento da Cidade implementada pela Intendência Geral de Polícia baseava-se em um meticuloso controle das ruas, pelo toque de recolher e pela aplicação de castigos físicos.

Com o passar dos anos, diversas transformações ocorreram na vida econômica, política e social do país. Paulatinamente, a escravidão foi sendo substituída pelo trabalho assalariado. Tal fato produziu mudanças no olhar policial que, gradativamente, substituiu o seu objeto central de atenção. Se durante o período colonial e a maior parte do Império o olhar policial estava voltado para os escravos e negros libertos, com a abolição da escravidão e implantação do modelo republicano, o olhar policial passou a centrar-se nos trabalhadores pobres e ex-escravos.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O extermínio dos indesejados como estratégia de segurança publica

Apesar das grandes mudanças ocorridas na vida política e econômica brasileira, o ‘modus operandi’ policial permaneceu quase que intocado, a manutenção da ordem continuou sendo realizada através da violência institucionalizada contra o corpo das pessoas. A truculência no tratamento das camadas mais pobres prosseguiu, sendo aceita e utilizada como estratégia de controle. Porém, a morte e o extermínio continuavam sendo práticas inaceitáveis por parte das autoridades.

Nos anos de 1930, com Getúlio Vargas no poder, esse quadro se modifica. Vargas, buscando efetivar seu domínio político, institui no seio das forças policiais um corpo encarregado não apenas por controlar, mas aniquilar os ‘inimigos do Estado’. Pela primeira vez na história do Brasil se instituiu como prática policial a possibilidade de exterminar os ‘transgressores da ordem’, que, neste momento, representavam os inimigos políticos de Vargas, especialmente, os integrantes do Partido Comunista.

Algum tempo depois, mais precisamente na década de 1950, Juscelino Kubitschek, um dos presidentes brasileiros mais incensados pela mídia atual, preocupado com o crescimento da violência na Cidade do Rio de Janeiro, então capital brasileira, passa a utilizar como forma de redução da dinâmica criminal os antigos métodos de aniquilamento. É com anuência de Juscelino Kubitschek que se inaugura o famigerado ‘esquadrão da morte’, responsável nos anos seguintes pelo assassinato de inúmeros cidadãos brasileiros.

Posteriormente, muitos dos integrantes dessa legião foram utilizados pelo aparato repressivo da Ditadura Militar, assumindo postos importantes em organismos como o DOI-CODI e o SNI4. Entretanto, diferentemente do que se atribui ao período militar, a violência policial contra os cidadãos comuns não foi tecida em seus aparatos repressivos, suas origens remontam a um governo que se identificava com a democracia e que apresentava amplo respaldo social.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A permanência da violência policial

A violência policial que assola cotidianamente a população do Rio de Janeiro não é resultado de ações reativas da polícia, mas o resultado de um processo forjado em 200 anos de história institucional. Mesmo em um período histórico marcado pela democracia, como o que vivemos, a polícia continua atuando como no passado. A violência contra o corpo dos pobres e negros continua viva no seio das forças policiais. Da mesma forma, o extermínio dos indesejados, mesmo que não aceito por lei, continua sendo uma prática corriqueira e largamente utilizada pelas forças policiais como estratégia de controle e de ordenamento do território.

Neste sentido, podemos afirmar que no Rio de Janeiro, Cidade marcada pela recente construção de uma polícia nomeadamente pacificadora, nunca existiu uma polícia de fato vinculada com valores socialmente construídos. Pelo contrário, a polícia no Rio de Janeiro sempre se apoiou na violência contra os grupos considerados como indesejados e sempre serviu como instrumento a serviço dos grupos hegemônicos.

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. 262p.
MARINO, Leonardo Freire. O Estado Territorial e a lógica da exceção permanente: uma análise sobre as manifestações contemporâneas da violência. Niterói: Programa de Pós-Graduação em Geografia – UFF  2010. 228p. (Tese de Doutorado).
__________. Vidas Indesejadas: o que a morte de jovens das periferias nos revela. In. Jornal Estado de Direito. http://estadodedireito.com.br/vidas-indesejadas/
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 272p.
VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da Lei [Uma Prática Ideológica do Direito Penal]. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996. 155p.
 Leonardo MarinoLeonardo Freire Marino é Articulista do Estado de Direito – Mestre e Doutor em Geografia. Professor Adjunto da UERJ  e Pesquisador do Grupo intitulado Geografia Brasileira: História e Política, localizado no Instituto de Geografia desta mesma Universidade. Tem experiência em diversos níveis de ensino e linhas de pesquisa, merecendo destaque os estudos que envolvem temas ligados as dinâmicas de ordenamento territorial urbano, os conflitos sociais emanados da violência e a promoção de Direitos Humanos.
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