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A busca de soluções para a desigualdade social e a defesa da ação afirmativa
Em 2003, ainda na faculdade de direito, montamos um grupo de estudos em ações afirmativas [1], no qual tínhamos como principal objetivo a discussão e a busca de soluções para um quadro de desigualdade social que foi, em grande parte, resultado de um processo secular de escravidão de seres humanos.
Acreditávamos que o direito não deveria mais ficar alheio à efetivação do reconhecimento da diversidade humana na formação brasileira. Nosso objetivo naqueles anos foi a defesa da ação afirmativa nas universidades brasileiras. A ação afirmativa, como política de discriminação positiva ou discriminação inversa[2], apresenta-se como a mais elaborada tentativa de engenharia social, com um plano de suprimir desigualdades profundas no cenário social brasileiro, e de acordo com as tentativas de proteção das diversidades multiculturais[3].
Mudanças de paradigma
Ao falarmos de ação afirmativa, precisamos lembrar que a mesma ganhou força dentro de um panorama constitucional, em que novos paradigmas e categorias de interpretação (mutação constitucional) foram sendo construídos pelos doutrinadores e pelos tribunais. Segundo Barroso, ocorreram três mudanças de paradigma que abalaram a interpretação constitucional tradicional. A primeira das mudanças diz respeito à superação do formalismo jurídico. É no pensamento clássico que se encontram as justificações do formalismo jurídico, segundo Barroso “expressavam o interesse ideológico dos setores hegemônicos”[4]. Uma primeira justificação desse formalismo estava na ideia “de que o direito era a expressão da razão, de uma justiça imanente”[5]; a segunda justificação abraça-se à ideia “de que o direito se realizava, se interpretava, se concretizava mediante uma operação lógica e dedutiva, em que o juiz fazia a subsunção dos fatos à norma, meramente pronunciando a consequência jurídica que ela já continha”[6].
Para superação dessas duas justificações, deu-se a partir do século XX a criação de duas novas abordagens para o exercício da interpretação constitucional. Barroso apresenta como a primeira abordagem inovadora a ideia de que “o direito é, frequentemente, não a expressão de uma justiça imanente, mas de interesses que se tornam dominantes em um dado momento e lugar”[7]. A segunda abordagem está na ideia de que “em grande quantidade de situações, a solução para os problemas jurídicos não se encontrará pré-pronta no ordenamento jurídico”. Para o autor, esta precisará ser construída de maneira argumentativa pelo intérprete ou pelos intérpretes, se for adotada a concepção defendida por Häberle[8].
Uma segunda mudança é a que se deu com o advento de uma cultura pós-positivista, nas palavras de Barroso, “para achar a resposta que norma não fornece, o direito precisa se aproximar da filosofia moral – em busca da justiça e de outros valores”[9]. Com efeito, a estratégia dessa abordagem é tratar de problemas jurídicos desconsiderando ou elevando os limites das normas, no sentido de ver a norma como não mais a única fonte de solução de problemas jurídicos.
Por fim, a terceira e última mudança de paradigma foi a que ocorreu na ascensão do direito público com a centralidade e supremacia da Constituição. Segundo Barroso, “toda interpretação jurídica deve ser feita à luz da Constituição, dos seus valores e dos seus princípios. Como consequência, reitera-se, toda interpretação jurídica é, direta ou indiretamente, interpretação constitucional”[10]. O essencial é que os casos difíceis, em especial, o programa de ação afirmativa, na sua modalidade cotas raciais, passa a ter um terreno constitucional fértil para sua efetivação. “A nova interpretação constitucional surge para atender às demandas de uma sociedade que se tornou bem mais complexa e plural”, conclui Barroso[11].
Os programas de ação afirmativa
Diante desse quadro favorável, o Brasil passou a adotar há alguns anos, os programas de ação afirmativa. Não é de se supor que isso tenha ocorrido sem percalços. Atualmente, estamos passando por um processo de retrocesso das políticas de promoção da igualdade social. Temos um exemplo bem claro com a notícia de que o Conselho Universitário da UFRGS (Consun) irá, provavelmente, aprovar a proibição da migração de candidatos cotistas para o sistema universal, vem, caso aprovado, deixar claro a manobra que está ocorrendo para o desvirtuamento da Lei de Costas na UFRGS. Ao proibir a migração, a UFRGS acaba por definir uma reserva máxima para os cotistas, indo de encontro ao que determina a lei 12.711/2012. A lei determina em seu art.1º, o percentual mínimo de 50% para candidatos que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. O que a UFRGS está buscando fazer é estabelecer a reserva com teto máximo, o que, por certo, acaba violando a lei em seus aspectos interpretativos, ou seja, viola a finalidade da lei de promover a diversidade dentro da universidade.
Há, ao que tudo indica, a capitulação do programa de ações afirmativas –escolas públicas por um viés de favorecimento das escolas particulares. Nessa linha, os argumentos apresentados pelo Consun como, por exemplo, a melhora na transparência do processo de chamamento, não evidencia como a solução mais adequada à fixação de proibição de migração de cotistas para o sistema universal. Há problemas extrínsecos à situação dos cotistas, no qual, vislumbramos como insuficientes para a alteração do atual modelo de chamamento de candidatos aprovados na UFRGS.
É preciso lembrar que as cotas raciais no Brasil, desde o ano de 2012, têm status constitucional reconhecido pelo STF. Já a Suprema Corte dos Estados Unidos, em uma decisão histórica, Fisher v. University of Texas at Austin, ocorrida em junho deste ano, decidiu que a cota racial para admissão de novos alunos nas universidades não viola o princípio de igualdade perante a lei.
Dados fornecidos (ZH/Ensino Superior) dão conta que, neste ano 420 alunos cotistas de escolas públicas entraram pelo acesso universal. A UFRGS através do seu Conselho Universitário deve analisar seriamente a decisão, que por si, mostra-se temerária diante das possíveis ações na justiça para fazer valer a lei de cotas nas universidades.
Referências:
[1] Fazíamos parte do Núcleo de Ações Afirmativas. Entre os integrantes estavam, Marcelo Sgarbossa, Carla Letícia Pereira Nunes, Gleidson, Valter, Lisandro, Pietra, Pérola Sampaio, Taís e tantos outros importantes integrantes. Para se ter uma ideia da importância do núcleo, fizemos uma manifestação no vestibular de 2004, exigindo da UFRGS a implementação do programa de ações afirmativas.
[2] Dworkin conceitua discriminação inversa no capítulo mais importante sobre o tema da ação afirmativa na obra, já mencionada, “Uma Questão de Princípio”, capítulo XIV.
[3] Sobre a abordagem sobre o multiculturalismo, trabalho e consumo, ver: JUNIOR, José Alcebíades de Oliveira (Org.). Direitos Fundamentais e Contemporâneos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. Especialmente os artigos de Vanessa Del Rio Szupszynski, sobre o reconhecimento nas modernas relações sociais de trabalho, e de Ardyllis Alves Soares, sobre o multiculturalismo nas relações de consumo.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 333-334.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem.
[7] Ibidem.
[8] Häberle assume o desafio de defender a ampla participação dos interessados nos temas constitucionais. Segundo o autor, “uma teoria constitucional que se concebe como ciência da experiência deve estar em condições de, decisivamente, explicitar os grupos concretos de pessoas e os fatores que formam o espaço público, o tipo de realidade de que se cuida, a forma como ela atua no tempo, as possibilidades e necessidades existentes. A pergunta em relação aos participantes da interpretação constitucional deve ser formulada no sentido puramente sociológico da ciência da experiência. Deve-se indagar, realisticamente, que interpretação foi adotada, a forma ou a maneira como ela se desenvolveu e que contribuição da ciência influenciou decisivamente o juiz constitucional no seu afazer hermenêutico. Essa questão configura um enriquecimento e uma complementação da teoria da Constituição, que indaga sobre os objetivos e os métodos. Ela desempenha uma função auxiliar de informação ou de mediação”. (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para interpretação pluralista e procedimental da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris Editor, 2002, p. 19-20)
[9] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 333.
[10] Ibidem.
[11] Ibidem.