Política Porto Alegrense
Parece com um episódio de House of Cards mas está acontecendo na Câmara Municipal de Porto Alegre. No seriado, Frank Underwood é o político que assume a presidência mas que só tem inteligência para atacar seus inimigos e tem dificuldades imensas para se defender. Auxiliado pela vilã em menor grau, Claire, ambos terminam ao longo dos episódios por não perceberem coisas debaixo de seu nariz e perderem completamente o tato social. Alguma coisa parecida ocorreu nestes dez primeiros meses no legislativo de Porto Alegre. Tudo começou quando seu presidente, Vereador Mauro Pinheiro, do Partido dos Trabalhadores (PT), resolveu marcar o seu mandato pela moralização do legislativo e escolheu o ponto eletrônico como instrumento. Sempre assessorado por um funcionário da Cia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre, Procempa, já denunciada por casos de corrupção, iniciou com a empresa um processo de contratação de serviços para o parlamento. Apesar dos alertas de seus subordinados para o fato de que etapas legais importantes não terem sido cumpridas, conforme se observa no Processo 1604/2015, o contratou a aquisição do registro eletrônico chegou a cerca de R$ 360.000,00 para 5 relógios para 1.000 funcionários. Novos contratos foram editados, valores sofreram pequenas alterações, mas problemas continuam sendo analisados pelo Ministério Público em inquérito Civil. Audiência foi marcada para o dia 3/11, mesmo dia em que iniciam o controle ponto dos servidores do legislativos. Retomando a história, o processo iniciou quando o Sindicato dos funcionários da Câmara Municipal foi atrás dos custos do processo na Assembleia Legislativa e registrou em sua página (www.sindicamara.com.br) porque a Assembleia não contratou a Cia de Processamento de Dados do Rio Grande do Sul – PROCERGS empresa congênere para o mesmo serviço. Na Licitação da Assembleia, os preços das demais empresas variaram entre R$ 54.850,00 a R$ 66.599,49, 15% do valor da PROCEMPA. O Sindicato perguntou:
Porque a Câmara pagará pela solução da sua empresa “parceira” 6 vezes mais do que o valor de mercado? Porquê a pressa?
A denúncia chegou à imprensa local, sendo divulgada por Zero Hora, Sul 21, entre outros veículos. Internamente, os funcionários reivindicavam a regulamentação do ponto, uma verdadeira incógnita. Quando a regulamentação enfim saiu, confirmaram-se as suspeitas dos servidores: um regulamento feito às pressas sem atender as sugestões da área só poderia ter problemas. Dito e feito. Para mim, o caso é a ponta de um iceberg de desmandos, posturas autoritárias e recuo de direitos, que mostram que, pelo menos no Rio Grande do Sul, o Partido dos Trabalhadores está se transformando num partido conservador. E a Câmara Municipal, é o lócus privilegiado dessa transformação.
Mauro Pinheiro
Mauro Pinheiro foi eleito pelo Partido dos Trabalhadores em 2012 com 5.984 votos. Começou na política em 2000, participando das campanhas de 2002 do PT ao governo do estado e em 2004, conquistou a quarta suplência na Câmara Municipal, assumindo algumas vezes o mandato. Chegou para seu primeiro mandato em 2008 e reelegeu-se em 2012. Empresário, proprietário de um mercado no bairro Jardim Leopoldina na zona norte da capital, fundou a Associação dos Minimercados de Porto Alegre. Pinheiro é o nono vereador do Partido dos Trabalhadores que chegou a Presidência do Legislativo da capital. Essa trajetória só tem sentido quando comparada com a trajetória do PT em Porto Alegre e na Câmara. Depois de ocupar a Prefeitura por 16 anos, o PT perdeu o governo para José Fogaça (PMDB) em 2004. Já na Câmara Municipal de Porto Alegre, a trajetória do Partido dos Trabalhadores na Câmara Municipal foi contínua e remonta a 1981, quando assumiu a Presidência do Vereador Antônio Hohlfeldt. Ele foi seguido por Clóvis Ingenfritz (1997), João Motta (2000), José Fortunati (2002), Margareth Moraes (2004), Maria Celeste (2007) e Sofia Cavedon (2012). Quer dizer, o PT que perdeu a capital refugiou-se no Legislativo.
A Origem do Social do PT
Segundo Leôncio Martins Rodrigues, em seu estudo “A Composição Social dos Políticos do PT”, a principal característica do PT é o fato de ter sido criado “de baixo para cima”, porque foi uma criação dos movimentos sociais e do movimento sindical. Ainda que os próprios estudiosos estejam divididos quanto a origem social do partido, domina a ideia de que a classe média e sindicatos são sua base social.
Não é o que observamos na trajetória de Pinheiro. Como empresário dono de um mercado na zona norte da capital, seu perfil sugere estar mais associado à elite das camadas comerciais de Porto Alegre do que o proletariado ou movimento sindical.
Ao contrário, os demais presidentes do PT sempre estiveram ligados as classes de origem do partido: professores (Antonio Hohfeldt, Margareth Moraes, Maria Celeste, Clovis Ingelfritz e Sofia Cavedon) sindicais (José Fortunati) e advogados (João Motta) foram presidentes do Legislativo pelo PT. Considerando que professores e advogados podem ser incluídos, nos termos de Rodrigues, na classe média local, apenas Mauro Pinheiro destoa do perfil dos vereadores do Partido dos Trabalhadores na Câmara Municipal que ocuparam a Presidência. Quer dizer, nossa hipótese é que o Partido dos Trabalhadores, ao menos no Rio Grande do Sul, a medida em que incorporou em seus quadros militantes de outras camadas sociais não identificados diretamente com sua base social, possibilitou a emergência de uma agenda conservadora petista no sul do pais. Como isso foi possível? É que o projeto de gestão petista de Mauro Pinheiro foi diferente das anteriores. Em primeiro lugar, sua gestão não é conservadora por uma preocupação com as coisas do passado, mas por uma característica clara no pensamento conservador, a saber, o seu desejo de viver integralmente o presente, no caso, o seu curto mandato de um ano na presidência do legislativo, ao contrário do pensamento progressista, sempre voltado para o futuro.
Enquanto a gestão de João Motta (PT) organizou um concurso público legando a Casa recursos humanos para o futuro, as vereadoras Margareth Moraes e Sofia Cavedon (PT) investiram suas gestões no aprimoramento da ação cultura e educativa do legislativo, apoiando inclusive a formação de servidores e o uso de espaços culturais, os Vereador Clóvis Ingelfritz e José Fortunati (PT) tiveram uma relação com servidores baseada na transparência e no respeito. Todos os presidentes do PT sempre acrescentaram ao parlamento avanços porque sua preocupação era com o futuro da instituição.. Em minha opinião, não é o que acontece na gestão Mauro Pinheiro: o que o Presidente não quer revelar é que sua preocupação central é com com sua carreira politica. Isto é, toma a Presidência como uma alavanca de carreira.
Porque a gestão de Mauro Pinheiro (PT) é conservadora?
Há ainda outras caracteristicas. Para mim a primeira característica conservadora que se sobressai em sua gestão é a defesa intransigente da obediência de seus servidores. É característico da mentalidade política conservadora o ceticismo em relação às reinvidicações feitas em nome dos indivíduos, afirma o filósofo Roger Scruton em sua obra “O que é Conservadorismo?” (Scruton, p. 75) caso elas entrem em conflito com a obediência necessária para implementar programas e projetos. É o que ocorreu com a decisão da primeira medida a ser adotada, a implantação do relógio ponto. Apesar dos servidores (www.sindicamara.com.br) questionarem a ausência do regulamento e da discussão da sua implantação, Mauro Pinheiro (PT) vem reiterando que é uma decisão irrevogável e que sua elaboração é competência de “instâncias superiores”, atitude bem diversa da tomada pela ex-vereadora Maria Celeste (PT), que no primeiro dia de seu mandato como Presidente do Legislativo de Porto Alegre procurou visitar todos os setores formular seu projeto de gestão compartilhada com os servidores. Afirma com razão o Sindicato que, sem regulamentação, sem respeito a tradição e sem respeito aos horários dos servidores – há aqueles que trabalham no horário noturno por causa do plenário – o que se tem é uma prática autoritária estranha a tradição petista. Convocado para uma explicação ao Partido, Mauro Pinheiro não compareceu. Guardadas as diferenças, entendo que o conservadorismo petista em “estado nascente” na Câmara Municipal de Porto Alegre é tão liberal quanto o implementado pelo partido conservador na Inglaterra. Como se sabe, o modelo de organização para o serviço público feito pelos conservadores é o mercado, daí a fé que deposita na moralização administrativa através de instrumentos como o ponto eletrônico e a recusa do investimento em educação e cultura – quem não lembra a medida de Tatcher tirando o leite das crianças?
Controle do tempo
Iniciou-se no Parlamento da capital uma guerra da informação: enquanto que o seu Presidente afirma que são os servidores que recusam o controle, o seu sindicato afirma que os funcionários nunca o rejeitaram, só desejam que fosse colocado democraticamente as regras de seu uso, o que não ocorre. Ora, como se sabe, o controle do tempo é a premissa fundamental do processo de trabalho no liberalismo clássico, mas o que distingue o conservadorismo deste PT local do conservadorismo tradicional é que até os próprios conservadores sempre garantiram que mudanças fosse feitas de forma espontânea, orgânica, sedimentada, prudente, nunca de forma radical como pretende o atual presidente. Por isto, neste sentido, Mauro Pinheiro (PT) é, numa palavra, hiperconservador. Por outro lado, manifestações do Presidente Mauro Pinheiro (PT) e de seus diretores pelos corredores do legislativo, referindo-se a seus servidores como “inúteis” e “vagabundos” e rejeitando a crítica dos servidores a sua politica de pessoal, revela a relação que constrói no cotidiano do legislativo é de desprezo pelos seus trabalhadores.
O Servidor Público
Para o servidor, a individualidade é um artefato, é uma conquista que exige respeito. O fato de que os servidores, sejam homens ou mulheres, definirem como valor o seu trabalho no parlamento, tornou a participação do servidor uma etapa necessária de qualquer gestão. Por esta razão, no Dia do Servidor Público, inúmeras homenagens eram feitas a estes funcionários pelas administrações petistas, o que não ocorreu na atual gestão, ao contrário: foi nesta data que a administração entregou os crachás do ponto dos servidores, forma sutil e irônica de reafirmar simbolicamente seu poder sobre eles em sua data. O dia do servidor, que ocorria com tranquilidade porque todos os servidores se sentiam participantes de uma comunidade, a Câmara Municipal, que todos reconhecem como seu “lar”, foi uma data que serviu para administração reafirmar não o servidor, mas seu plano de gestão.
A este sentimento de pertencimento, agora em erosão, Michel Maffesoli deu o nome de “proxemia”, paixão pelo lugar.
A entrega dos crachás foi sentida como uma ofensa aos servidores: Mauro Pinheiro (PT) não se deu conta do fato de que nas instituições, a autoridade sempre deve manter diálogo com os servidores. Por isso devem nascer sempre de mãos dadas, desde o inicio da gestão, com Presidentes procurando seus servidores, criando empatia, buscando trocar e negociar, exatamente como funciona a politica, por que a função de um Presidente é respeitar a natureza do legislativo, o exatamente o que, no meu entendimento, não está ocorrendo na gestão petista sobre sua autoridade. Se os servidores são conservadores porque entendem que uma mudança radical é maléfica à administração, o PT que dirige a Câmara Municipal é conservador por outra razão, por defender no legislativo que não é sua obrigação proteger seus servidores. Por isso a zombaria e a falta de respeito que os indignam.
Revogação da Resolução de Mesa nº 471
Outra medida adotada que revela o conservadorismo da gestão petista no legislativo de Porto Alegre foi a revogação recente da Resolução de Mesa nº 471, que regulou o afastamento dos servidores matriculados em cursos superior. Por esta razão, no neste semestre, três servidores da Câmara Municipal de Porto Alegre não foram autorizados a frequentar cursos em que estavam matriculados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A razão é que o Estatuto dos Servidores prevê no Art.90, Inc. III a liberação do funcionário em até 1/3 de sua carga horária para estudar, contrapartida do dever estabelecido pelo Art. 196, item XI, que diz que o funcionário deve “freqüentar cursos legalmente instituídos para seu aperfeiçoamento e especialização.”
Facilitar o acesso a educação nunca foi um favor: o servidor devolve o investimento na qualidade do seu trabalho. Quanto mais alto é o nível de escolaridade do servidor, mais qualificada é a prestação de seus serviços e maior é a economia do setor público.
Deixar os funcionários públicos estudarem só traz benefícios para os cidadãos que usufruem de politicas públicas. Mas o Estatuto dos Funcionários de Porto Alegre tem um problema: o parágrafo primeiro do art. 90 estabelece que a existência de curso equivalente em horário diverso do trabalho excluí o funcionário deste direito. Nunca houve consenso na Câmara sobre o que significa “equivalente”: é em relação ao curso ou à universidade? Desde o governo de Antonio Hohfeldt (PT), as sucessivas gestões, principalmente de Margareth Moraes e Sofia Cavedon (PT), sempre deram atenção ao aluno estudante, valorizando sua iniciativa, apoiando. Margareth Moraes (PT), inclusive, apoiou o pagamento de estudos de pós-graduação de servidores porque acreditava que a qualificação era um valor agregado para o serviço. A Resolução 471 havia resolvido a questão e garantido os direitos dos servidores, mas agora, com a decisão de Mauro Pinheiro (PT) de anular a Resolução, a Câmara passará a obrigar os funcionários matriculados em universidades públicas a se transferirem para universidades privadas. A Prefeitura de Porto Alegre já se adequou ao problema do Estatuto há muito tempo e a Resolução 471 tinha solucionado o impasse na Câmara. Revogar a Resolução significa um retrocesso nos direitos funcionais. Outro fato que caracteriza a Presidência de Mauro Pinheiro (PT) como conservadora é a recusa dos contratos implícitos selados pelas administrações anteriores petistas, não apenas quanto aos horários de seus servidores, mas também com relação a seus direitos. É que os presidentes antecessores do Partido dos Trabalhadores na Câmara tinham feito, em algum ponto, uma escolha e deliberado sobre as consequências dos direitos concedidos a seus servidores nas gerações seguintes de Presidentes, fazendo que se constituísse uma troca de promessas (Scruton, p. 69).
Servidores tratados como um fim ou como um meio?
Tais acordos tácitos foram respeitados inclusive por Presidentes não petistas. A ideia de que deve haver em todo o governo petista no legislativo um respeito ao servidor, a ideia de que “deve haver” no âmago dos integrantes do partido respeito por acordos feitos entre as presidências anteriores, servidores e cargos em comissão sobre os mais diversos aspectos da vida do legislativo, algo que surgiu antes que Mauro Pinheiro (PT) assumiu e que ele deveria respeitar mas que ele não o faz, é prova do padrão de pensamento como conservador, mais uma vez, centrado apenas em si mesmo.
Por esta atitude, mais do que nenhuma outra, mostra que, nos termos da expressão kantiana, Mauro Pinheiro (PT) desrespeitou a regra básica de que todos devem ser submetidos à regra da justiça, o que quer dizer, que devem ser tratados como um fim e não um meio.
Porque os servidores sentem que são tratados como um fim e não como um meio? É que eles percebem que o que deseja Mauro Pinheiro(PT) com estas ações é tornar-se em evidência no Partido como possível candidato à Vice-Prefeito numa candidatura à Prefeitura de Porto Alegre. Entendem que, para o Presidente, nunca esteve em primeiro lugar o parlamento e a comunidade que ele representa, mas sim sua carreira politica individual. O conflito no Legislativo de Porto Alegre, entre seus servidores e seu presidente petista, mostra que também o Partido dos Trabalhadores, ao menos no Rio Grande do Sul, já está tratando seus servidores como um fim e não como meio, o que significa, desrespeitando sua liberdade, descumprindo contratos, usurpando direitos sem dar nada em troca. Isso é extremamente conservador. O fato de que o Presidente do legislativo de Porto Alegre se revelar um politico conservador significa que o próprio PT está se transformando, também ele, num partido conservador, simplesmente porque o conservadorismo não precisa de qualquer partido, basta que políticos professem em suas práticas suas crenças. Cabe aos Diretórios do PT do Rio Grande do Sul e aos demais vereadores petistas da Câmara Municipal de Porto Alegre mostrar que estou errado. Com a palavra, o Presidente da Câmara.
REFERÊNCIAS
RODRIGUES, LM. A composição social das lideranças do PT.IN: Partidos e sindicatos: escritos de sociologia política [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009. pp. 1-26. ISBN: 978-85-7982-026-7. Available from SciELO Books http://books.scielo.org
SCRUTON, Roger. O que é conservadorismo. São Paulo, É realizações, 2015.
Sites:
www.sindicamara.com.br: Notícias da Paritária I – Já pro castigo! In: http://www.sindicamara.com.br/?p=2568: Quem conta um conto aumenta uns contos: in: http://www.sindicamara.com.br/?p=2554
http://www.sul21.com.br/jornal/em-meio-a-polemica-sindicato-questiona-instalacao-de-ponto-eletronico-na-camara-de-porto-alegre/
Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito – Historiador, Mestre e Doutor em Educação, autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014)