Imaginem um pai, morador do interior, obrigado a caminhar quilômetros para registrar seu filho por falta de cartório de registro civil na sua cidade. A situação escancara o disparate. Mas, além disso, cria oportunidade para uma verdadeira armadilha para a Democracia.
No interior de todos os estados do Brasil existem pequenos cartórios cujo rendimento desmotiva os candidatos aprovados em concurso público a assumir a delegação. Todavia, isso não quer dizer que esses cartórios serão extintos, o que só se pode fazer por lei e não por penada do Presidente do Tribunal de Justiça, além do que apenas por iniciativa deste último é que a lei pode ser criada. Normalmente, esses serviços são entregues a interinos que capitanearão o serviço enquanto não haja delegado concursado disposto a assumir o posto. É dizer, o pai pobre continuará a registrar seu filho em sua cidade. O estado de São Paulo, por sua vez, garante o mínimo de 13 salários mínimos como pagamento para aqueles que assumirem serventias deficitárias, fomentando que só concursados estejam a frente de cartórios extrajudiciais.
Mesmo assim, há pelo Brasil pessoas que estão à frente de cartórios extrajudiciais, grandes e de muito rendimento, sem concurso e que viram na estória do pai pobre a possibilidade de construir o cavalo de Troia tupiniquim para ali permanecerem.
A concessão da delegação das serventias extrajudiciais pelo processo transparente do concurso público foi a Tróia construída pela Constituição Federal; a muralha legítima da Democradia. Só assume a delegação daquele serviço público quem for concursado. Construída pela Constituição Federal porque estamos apenas a falar da legislação atual, que é o que a falta de espaço nos permite. Do contrário, deveríamos remontar ao Decreto 3.322 de 14 de julho de 1887 que já previa que “Serão providos nas Províncias pelos respectivos Presidentes, mediante concurso, segundo a legislação em vigor mas restringidos os prazos à metade, os officios.” Se assim fosse, contaríamos mais de 128 anos de história de exigência de concurso público para a entrega da delegação registral e notarial.
Pois bem. O problema para os não concursados é que aqueles que são estão tomando o lugar dos que foram investidos na atividade por indicação, durante período que o concurso público não foi exigido pela lei. Desde então, essas pessoas inventam os mais absurdos estratagemas para não deixar a frente as serventias, não precisar passar pelo concurso e continuar a recolher os polpudos emolumentos que elas rendem.
Travestida de interesse pelas serventias sem provimento e por outros adornos, surgiu a Proposta de Emenda Constitucional número 471/05 que ajeita a situação dos apadrinhados. Alterando o parágrafo 3º do artigo 236 da Constituição Federal, tal Proposta prevê que a situação dos atuais responsáveis e substitutos, investidos sem concurso público, será regularizada por outorga da delegação de que trata o caput do artigo.
Existem estados da federação que até hoje não cumpriram a exigência constitucional de colocar os cartórios extrajudiciais em concurso público o que indica que há grandes cartórios, rentabilíssimos, que ainda estão nas mãos de sujeitos não concursados. Deste modo, os apaniguados do poder paralelo acabariam regularizando suas situações transversas por um novo passe de mágica legislativo. Mesmo os interinos que assumiram a serventias depois da Constituição de 1988 seriam beneficiados junto àqueles que assumiram antes da Carta Magna, mesmo porque esses últimos já foram efetivados com o advento dela.
Tampouco calha pensar que os interinos que até hoje prestaram seus serviços ficariam sem aposentadoria, mesmo porque a contribuição previdenciária durante todo o período lhes garantiria tal direito, como garantido a todo trabalhador brasileiro
No último dia 26 de agosto a Câmara dos Deputados aprovou em primeiro turno a Proposta de Emenda Constitucional. O passe de mágica legislativo já cintilou seu primeiro ato. A permanecer a estocada, a democracia sofrerá forte revés.
Leonardo Grecco
Juiz de Direito no Estado de São Paulo. Especialista em Bioética pela USP e em Direito Notarial e Registral pela Escola Paulista de Magistratura. Professor de Direito em Santos.