O caso da semeadeira: dupla venda e atribuição da posse e da propriedade

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Dupla venda de coisa móvel

O escrito desta semana versa sobre o problema da dupla venda de coisa móvel e baseia-se, em linhas gerais e bastante resumidas, em um caso real aqui abordado apenas à guisa de ilustração.

No caso sob exame, teria ocorrido a venda de determinado implemento agrícola a dois adquirentes, havendo a tradição para quem teria comprado posteriormente o bem à vista, enquanto o adquirente precedente teria concluído o negócio, mas não teria tomado a posse do bem que permaneceu no pátio da loja, pois ainda finalizava o financiamento bancário e constituía alienação fiduciária em garantia, bem como aguardava a chegada de acessórios para o melhor funcionamento do bem. Pendente a finalização do negócio pelo primeiro interessado, ocorreu a entrega ao segundo comprador que se apropriou da coisa e passou a utilizar a semeadeira na lavoura.

Houve intensa discussão judicial, sendo deferida a liminar em ação cautelar de busca e apreensão, tendo ocorrido a suspensão e posterior reforma da decisão em sede recursal. Diferentemente da decisão de primeira instância que deferiu a busca e apreensão, fundado no critério da anterioridade da contratação, a fundamentação da decisão que determinou a devolução do implemento agrícola ao demandado ancorou-se na existência de título aquisitivo por ambas partes, mas apenas o requerido tinha posse e propriedade sobre a coisa, adquirindo a res mediante a tradição. O voto-condutor do julgamento aduziu que se ambas partes tinham o título aquisitivo, o modo de aquisição somente realizou-se quando da entrega da coisa ao demandado. Do julgado sob comento, colho:

“Há que se observar, antes de tudo, o art. 620 do Código Civil: ‘O domínio das coisas não se transfere pelos contratos antes da tradição.’ (verbis). Este, pois, é o modus adquirendi da propriedade móvel, assim como o é a transcrição (rectius: registro imobiliário) para os bens imóveis. No caso, tem os autores da cautelar apenas o titulus adquirendi, consubstanciado na compra e venda estampada nas respectivas notas fiscais. Já o impetrante possui o mesmo título, mais o modo de aquisição, que é a tradição. E esta, repito, nos termos do artigo retro citado, é o que transfere a propriedade imobiliária.” (TARS, MS 191146968, Rel. Juiz Jauro Duarte Gehlen, julgado em 1º/11/1991)

Assentou-se, assim, o entendimento de que o contratante que se sentiu lesado teria pretensão pessoal – e não real – decorrente da relação obrigacional, negando-se a existência de pretensão reipersecutória a assegurar-se a coisa em si. Predominou o critério da tradição sobre a anterioridade do pedido do implemento.

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Debate jurídico complexo

O caso tem diversas nuances que o tornam muito rico, dentre as quais a consistente na polêmica sobre a (in)fungibilidade da coisa, pois a individualização invocada para alegação de que se vendeu a mesma semeadeira fundava-se na série de produção (o que por definição abarca diversas unidades). De igual modo intrigante foi o fato do adquirente que reclamava a coisa ter adquirido 5 (cinco) implementos agrícolas, mas apenas 1 (um), coincidentemente o vendido para outrem, não teria sido imediatamente entregue – o que, aventou-se no feito à época, poderia ter sido uma manobra apenas para que se conseguisse obtenção de empréstimo para capital de giro, simulando-se uma aquisição para viabilizar um financiamento. Enfim, são muitos aspectos interessantes que permeiam o caso e tornam o debate jurídico mais complexo e instigante.

Diversos aspectos processuais foram debatidos, cumprindo aqui ter em conta apenas o de que a busca e apreensão e a ação reivindicatória acabaram extintas sem resolução de mérito, vez que os autores não tinham nem posse e nem propriedade a opor ao possuidor e senhor da coisa. O reconhecimento de pretensão de natureza pessoal e dirigida em face do alienante – e não do outro comprador – acabaram determinando a sorte das demandas, impedindo que se reconhecesse a adequação das vias eleitas – o que por via transversa implicava em uma cognição de mérito ao admitir-se que a tradição determinava a posse e a propriedade sobre a coisa, obstando, na prática, a rediscussão da causa, ainda que por meio de outra ação judicial.

Agradeço aqui, por fim e publicamente, o envio das cópias pelo Advogado Francisco Lemos que combativa e vitoriosamente atuou no feito em uma época na qual se interpunha agravo de instrumento na 1ª instância e impetrava-se mandado de segurança para obter-se efeito suspensivo.

 

Tiago Bitencourt De David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL.
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