Publicado na 44ª edição do Jornal Estado de Direito.
* Roger Raupp Rios Juiz Federal, Doutor em Direito (UFRGS)
As narrativas midiáticas sobre homofobia mostram que é preciso ir além do senso comum conservador. Os dados levantados em pesquisa de que participei (“Notícias de homofobia no Brasil”, disponível no site do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania (DEDIHC) do Governo do Estado do Paraná, registram as narrativas textuais e imagens sobre violência homofóbica, destacando-se dentre as fontes as narrativas policiais, onde vítimas e seus próximos (parentes e amigos) são tomados fora do contexto maior de discriminação.
Elas são fundadas muitas vezes nas vozes da polícia e trazem a condição das vítimas de modo parcial e fragmentado. Há silêncio não só sobre o contexto e as raízes do heterossexismo, como também falta questionamento sobre as políticas públicas (e sua ausência). Desde uma abordagem desrespeitosa das identidades das vítimas, beirando quase sua responsabilização pelo que sofrem, até a desconsideração do pouco caso diante da homofobia. Há também passividade da mídia, fenômeno que não se reduz à mera reprodução da homofobia disseminada socialmente.
Um olhar atento para esses dados revela o predomínio nítido de certas abordagens sobre expressões, identidades e orientações sexuais. Se nas narrativas sobre violência predominam registros policiais, naquelas sobre direitos (união estável, casamento, previdência, por exemplo) predomina uma visão homonormativa.
Ao utilizar esse termo refiro-me a narrativas onde a diversidade sexual representada é a que se deixa assimilar, que toma como modelo o que se associa à heterossexualidade. Suas características são uma conjugalidade romântica bem-comportada, um assumir acriticamente como modo de vida prescritivo os tradicionais “deveres conjugais” listados na lei, na moral e nos “bons costumes”.
Não por é acaso, portanto, que as narrativas invoquem a homoafetividade. É um termo que “higieniza” e “domestica” a sexualidade da esfera pública e política, onde a discriminação e a injustiça são praticadas. Ele é o “Cavalo de Tróia” da conjugalidade romântica heterossexista. Essas abordagens subrepresentam, quando não anulam, expressões e identidades discriminadas por aquilo que não enunciam: o sexo como prática e a sexualidade como esfera da realidade.
O que fazer quando não há conjugalidade, nem afetividade, com práticas sexuais estigmatizadas, como o sadomasoquismo ou o trabalho sexual, sem falar na liberdade artística?Este mecanismo higienizador e assimilacionista pode ser aplicado a outras hipóteses. No racismo, as diferenças são racializadas para produzir hierarquia racial. Denunciar essa injustiça requer falar de distinções raciais injustas. Quais o sentido e os efeitos de eliminar discursivamente a raça para o combate ao racismo? E se propuséssemos, com o perdão do neologismo de mau gosto, não um estatuto da igualdade racial, mas um estatuto da “afetividade cromática”?
E o machismo e o sexismo? Para afirmar a liberdade de gênero, deve-se ignorar a dominação masculina pelo gênero? Afinal de contas, o que incomoda na homossexualidade, pedindo até nova expressão, que não afeta a heterossexualidade? E qual o efeito de se adaptar a esse “incômodo”?
O efeito mais direto é produzir a homonormatividade, ou seja, uma restrição da diversidade sexual. Só se torna inteligível, compreensível, o que se adapta, que se deixa assimilar aos padrões sexuais tradicionais. Outro efeito é reduzir a liberdade de expressão de outras vivências. Todo resto acaba precarizado, vulnerabilizado, quando não tornado abjeto.
De modo geral, portanto, a representação da diversidade sexual na mídia é parcial, insuficiente e desigual; como ocorre com o termo “homoafetividade”, são privilegiadas abordagens conservadoras e silenciadoras da diversidade. O papel da mídia, numa sociedade democrática, é possibilitar e amplificar o debate crítico e informado sobre a diversidade, e não reduzi-la a dinâmicas assimilacionistas.