Nós e Eles: na fronteira do absurdo

preso

Controle sociopenal

A letalidade do controle sociopenal traduz-se, como corolário, no dramático contraste entre um déficit democrático de garantia de direitos (humanos) e de um superdimensionamento da seletividade do sistema penal (violência institucional), intimamente conectado com a manutenção das relações sociais desiguais de poder e de riqueza (violência estrutural), próprias de um modelo tecnocrático-regulatório de direito à segurança[2].

A naturalização de uma rígida e hierarquizante organização social, convalidada por um sistema penal estruturalmente seletivo, discriminatório e estigmatizante, conforma, ao lado de sua letalidade genocida, uma das marcas distintivas do controle sociopenal latino-americano e brasileiro.

Os processos de estetização cultural, baseados na busca pelo ideal de pureza e pela manutenção da ordem, por meio da criminalização desmesurada e pelo encarceramento desmedido, (retro)alimentados pela cultura punitiva, são agravados, sobremaneira, pela conjugação perversa entre medo e (in)segurança.

Não obstante, a definição do desvio (associado ao conceito de crime) e a seleção do desviante (referenciado na noção de criminoso) não se limitam aqueles realizados pelas instâncias oficiais de controle social. Pelo contrário, estão diretamente identificados com os operados pelo senso comum punitivo do chamado controle social informal ou não institucional, antes mesmo que as instâncias oficiais atuem, de modo (inter)independente à sua intervenção[3], ou ainda, nefastamente, contra legem.

José de Souza Martins

José de Souza Martins

Sobre a prática do justiçamento

Nesse particular, a despeito de banida pelo sistema penal brasileiro, ainda no Império, a prática do justiçamento (fazer “justiça com as próprias mãos”), conforme o sociólogo José de Souza Martins[4], não deve ser interpretada como um fato anômalo ou excepcional em face da sua recorrência na dinâmica social do país[5]. Nos últimos 60 (sessenta) anos, segundo ele, houve 2028 casos, envolvendo 2579 pessoas vitimadas por linchamentos, tentados ou consumados, no Brasil. Desse universo, 782 foram mortas, por supostos “justiceiros”[6], através de espancamentos, a pauladas, a pedradas, a pontapés e socos, nessa progressão, chegando até casos extremos de extração dos olhos, castração, extirpação de orelhas e cremação das vítimas, ainda vivas.

É possível, pois, afirmar que os linchamentos, espectro, antidemocrático, da justiça, possuem uma frequência endêmica no Brasil. Ainda de acordo com o referido pesquisador, o justiçamento popular remonta as estruturas sociais profundas, que se tornam ativas quando a sociedade é ameaçada ou entra em crise e não dispõe de outra referência, acessível, para se reconstituir (MARTINS, 2015, p. 9-10).

A conjuntura atual de evidente omissão do Estado, por parte dos seus diversos entes e Poderes públicos, relativamente à premência de uma agenda constitucional voltada à segurança dos direitos[7], mina o oferecimento de alternativas, político-institucionais e socioculturais, ao cometimento de violências e crimes, ao ensejar ambiente propício, em que a impunidade viceja, para a emergência geométrica da vitimização letal e dos crimes violentos, agudizando, por consequência, os efeitos da representação/percepção social de medo e de insegurança.

Cultura punitiva

Populismo-punitivoAo mesmo tempo em que a cultura punitiva desencadeia políticas de segurança tecnocráticas e regulatórias, amplificando, quantitativa e qualitativamente, a violência institucional perpetrada pelo Estado e potencializando, por essa via, um aumento vertiginoso das taxas de prisionalização, encerra uma crise de subjetividades (identidades), de sociabilidades (alteridades) e de legitimidade (estatal) de fundo, em vista da qual a vida humana é relativizada e banalizada.

Contemporaneamente, a criminalização operada pelo sistema penal alcança uma dimensão geopolítica preocupante, ao se configurar como “fator(es) de condicionamento das relações sociais e de modelagem dos espaços nas cidades, não só nas grandes […]”(SOUZA, 2008, p. 13)[8].

Muito embora a fragmentação e a segmentação da vida nas cidades não sejam exatamente uma novidade no Brasil, já que em curso desde o final da década de setenta e oitenta do século XX, no bojo do desenvolvimento da urbanização e das migrações do campo para a urbe, sobreleva destacar alguns riscos modernos do seu agravamento, mormente aqueles afetos à (re)produção social de preconceitos e estereótipos resultantes do isolamento e da ignorância em relação aos Outros (do favelado, morador de rua, flanelinha, usuário de drogas, suburbano, etc.), que informam o arrefecimento e o esboroamento dos laços sociais.

O funcionamento, estruturalmente seletivo do sistema penal, de que fazem parte os órgãos oficiais de controle e todos(as) nós, seja como vítimas, seja como autores de violências, porquanto “[a] difusão do medo é mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social” (BATISTA, 2003, p. 51)[9], ameaça as bases do Estado Democrático de Direito.

direitos

A assunção desse entendimento, de que não haverá justiça com violação de direitos, confere um imperativo ético (inter)subjetivo de “uma reflexão sobre como é que nós, as vítimas (e também perpetradores – grifo nosso!) potenciais da criminalidade, nos relacionamos com as significações e os fenômenos envolvidos nos dramas perturbadores da violência.” (SOARES, 1996, p. 63)[10].

O desafio indeclinável que se descortina a partir dessa reflexão crítica reside na luta, social e política, permanente, pela democratização da sociedade, em prol da superação do medo, da insegurança, do preconceito e da intolerância como fatores de criminalização e estigmatização e, no limite, da busca pela substituição do sistema penal por outras formas mais justas e igualitárias de garantia de direitos e pela superação da absurda fronteira entre “nós” e “eles” [11].

[2] Para um aprofundamento teórico-prático desse conceito: PAZINATO, Eduardo. Do Direito à Segurança à Segurança dos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

[3] Note-se que, conforme Andrade: “Existe um macrossistema penal formal, composto pelas instituições oficiais de controle (Leis-Polícia-Ministério Público-Justiça-Prisão) circundado pelas instituições informais de controle (Mídia-Mercado de trabalho-Escola-Família, etc.) e nós interagimos cotidianamente no processo, seja como operadores formais do controle ou equivalentes, seja como senso comum ou opinião pública, que desde o cenário de nossas vidas, sobretudo em frente à televisão (cenário em que a construção assume a dimensão de espetáculo massivo justamente para radicalizar o medo da criminalidade e a indignação contra o Outro) julga, seleciona, aprisiona e mata. E referenda que a resposta penal nunca é suficiente para o gigante da criminalidade. O mercado da culpabilidade punitiva é inesgotável.” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima. Códigos da Violência na Era da Globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 23).

[4] Em: MARTINS, José de Souza. Linchamentos: justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

[5] Martins identifica registros documentais de justiçamentos já no século XVI, antes mesmo que a palavra inglesa “linchamento” fosse incorporada ao uso corrente no país.

[6] A esse respeito sugere-se a leitura da matéria: http://revistaforum.com.br/digital/138/justiceiros-antidemocracia-travestida-de-justica, acessada em 10 de fevereiro de 2016.

[7] Vide nota de rodapé 2.

[8] In totum: SOUZA, Marcelo Lopes. Fobópole. O Medo Generalizado e a Militarização da Questão Urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, assim como: CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros. Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: 34/EDUSP, 2000.

[9] A obra completa em: BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro. Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

[10] Para aprofundar a questão consulte: SOARES, Luiz Eduardo. Violência e Política no Rio de Janeiro. O Inominável, Nosso Medo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

[11] Para um entendimento mais amplo consulte, pelo menos: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002; HULSMAN, Louk. Alternativas à Justiça Criminal. In: Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2000 e, ainda, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Traduzido por Vânia Romano Pedrosa e Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

Eduardo PazinatoEduardo Pazinato é Articulista do Estado de Direito Coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA) e Diretor de Projetos Estratégicos do Instituto Fidedigna.

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