“Nós contra eles”: os direitos e a divisão social
Samuel Mânica Radaelli
“Pobrecito el mi patrón
Piensa que el pobre soy yo”
(Facundo Cabral)
O desafio da igualdade perante a ordem econômica concentradora de renda é uma luta política renhida, o embate em torno da tributação de pessoas e corporações de altos rendimentos reanimou a crítica à concentração de renda. Tal crítica soou violenta aos abastados, acusados de rapacidade e avareza, viram tal imputação como uma ameaça à harmonia nacional: “querem dividir o país entre pobres e ricos!”, do mesmo modo, ao desenvolvimento nacional: “a luta do nós contra eles paralisa o país”. No entanto, esse grupo não leva o debate aos dados que retratam a baixa tributação e outros privilégios dados às elites.
A maior façanha da ideologia, enquanto “oclusão da realidade”, é fazer crer que pobres e ricos podem ter os mesmos interesses políticos, a façanha se supera quando estabelece que os pobres dependem dos ricos, sendo amplamente repetido que os pobres deveriam agradecer as oportunidades que os ricos lhes dão. Pois nessa lógica, são eles que “geram empregos”, como se não estivessem em busca de acumular os resultados decorrentes do trabalho dessas vagas de emprego.
Na mesma linha, faz crer que a diferença entre ricos e pobres é performática e meritocrática, ou seja, se os pobres forem mais virtuosos logo deixarão a pobreza, como se a relação entre eles não fosse de dependência, e que a riqueza não se fizesse com o acúmulo do trabalho alheio. Aliás, os ricos “só” precisam de duas coisas dos pobres: o trabalho e o deslumbre.
A divisão social não será causada pela busca por justiça social, ela já existe justamente pela assimetria econômica. Ricos e pobres, ou seja, bilionários e beneficiários do bolsa família, só podem compartilhar uma coisa: a ideologia.
Quando interpelados sobre a desigualdade, os abastados sempre se manifestam dispostos a colaborar na superação dessa condição, e muitas vezes fazem relatos de ações sociais que organizam ou participam, são sempre muito propensos à esmola, no entanto, quando se trata de reconhecer que a saciedade daqueles a quem fazem esmola necessita ser tida como direito, a boa vontade se esvai. Porque reconhecer que condições de vida digna devem ser uma prerrogativa inerente à condição humana, e não uma dádiva patronal, fortalece o pobre na relação de troca com quem se apropria do seu trabalho e do seu imaginário.
Ao se abordar a satisfação das necessidades humanas como um direito, não como uma dádiva patronal, a afabilidade elitista acaba. Quem assim o faz é visto como violento por aqueles que só podem usar o pronome “nós” para 1% da população, e que depende “dessa gente” que só tem a força do próprio braço para lutar pela sobrevivência.
Combate a desigualdade social não é invocar de desempenho ou esforço pessoal, é preciso perceber que há uma relação de opressão. Trata-se de:
“Descobrir o “fato opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem “senhores” de outros sujeitos, no plano mundial (desde o início da expansão europeia em 1942; fato constitutivo que deu origem à Modernidade”), Centro-Periferia; no plano nacional (elites-massas, burguesia nacional-classe operária e povo); no plano erótico (homem-mulher); no plano pedagógico (cultura imperial, elitista, versus cultura periférica, popular etc.); no plano religioso (o fetichismo em todos os níveis) etc… […] O pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do ópio, o judeu nos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita a manipulações ideológicas (também a juventude, a cultura popular e o mercado subjugados pela publicidade) não conseguirão tomar como ponto de partida, pura e simplesmente, a “estima de si mesmo”. [i]
Por conta disso, falar de Direitos, de forma a transcender a ideologia produtora de verdades (ou versões), para qual as prerrogativas se organizam ao redor da propriedade privada, implica na busca de uma outra compreensão dos direitos, fazendo-os uma “arma de libertação que nasce do Povo.”[ii] Na qual, a defesa da pessoa está na raiz da ética e da política: cabe ao Direito assumir essa posição, e assim se darão as reivindicações por justiça concreta na ação política.
Nessa perspectiva, a apropriação do Direito pelo Bloco Histórico dos Oprimidos[iii], tem a afirmação dos direitos humanos como aspecto central de um discurso jurídico minimamente progressista. Configura-se, então, no direito dos pobres, pois nesta perspectiva estão as necessidades básicas a eles negadas, assim sendo, na marcha pela busca dos instrumentos e instituições do poder político, “os pobres que eram uma categoria social que partilhava a desgraça do que considerava um destino histórico, agora partilham a responsabilidade de serem protagonistas não apenas de sua própria história, mas do destino da humanidade.”[iv]
Nesse horizonte, percebe-se o descortinamento da figura do pobre para os Direitos Humanos (tema também tratado na coluna anterior (https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-entre-a-mao-invisivel-e-o-rosto-exposto/). Todo e qualquer discurso ou política de direitos humanos que ignore a questão da pobreza não pode ser considerado como válido, pois servirá apenas discurso ideológico, “el concepto de derechos humanos debe concretarse atraves de un uso alternativo, es decir, como una herramienta jurídico-política para que los sectores marginados se constituyan en subjetividades emergentes, capaces de iniciar su propio proceso de liberación”.[v]
A opção pelos pobres na tarefa de reorganização democrática implica que ela seja de fato pensada a partir dos marginalizados, assim sendo, definir-se-ão como prioritários os direitos que garantam a vida de todos (direitos sociais). Atitude que implica em uma ruptura com os privilégios da minoria abastada, afinal, “Aí se evidencia na realidade que os direitos humanos significam, efetivamente, uma limitação dos privilégios dos poderosos em favor dos direitos dos mais débeis, para que todos possam criar e usufruir uma convivência justa e fraterna.”[vi]
Portanto, uma condição societal fraterna implica na partilha das possibilidades e riquezas que uma sociedade produz, sem isso os pobres sempre serão uma ameaça aos ricos. Reconhecer direitos a um determinado grupo implica, via de regra, em retirar privilégios de outro, por isso a luta. Atenta-se ao conselho, “Ninguém se cala indefinidamente” (Galileu Galilei, Bertold Brecht), o “andar de baixo” vem aí, se não vem ainda, um dia virá.
- Doutor em Direito PPG/UFSC, Professor IFPR-Palmas. Autor do “Direcionário: Dicionário reacionário”. Articuslista e idealizador da Coluna sobre Política e Direitos Humanos no Jornal Estado de Direito.
[i] DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995, p. 19.
[ii] “constituye las diversas acciones encaminhadas a que toda jurisdicidad (normativa, derechos subjetivos, ideas y concretizaciones de justicicia) sea usada al servicio de los pobres como sujeto histórico, tanto ante las instancias judiciales y administrativas del Estado, como ellos mismos en sus relaciones comunitarias creando y recreando la solidariedad.” TORRE RANGEL, Jesus Antonio de la. El derecho como arma de liberación en la América latina. Sociología jurídica y uso alternativo del derecho. CENEJUS, Centro de Estudios Jurídicos y Sociales P. Enrique Gutiérrez, Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de San Luis Potosí, México. 2006, p. 100.
[iii] “Si acercándonos un poco a las tesis de Antonio Gramsci aceptamos que entre la estructura y la superestructura existe una interacción dialéctica, es decir, que ambas se retroalimentan y forman un “bloque histórico”, una unidad históricamente orgánica, dejamos despejado un amplio espacio para usar el Derecho de una manera distinta a como la clase dominante lo quiere” TORRE RANGEL, Jesus Antonio de la. El derecho como arma de liberación en la América latina. Sociología jurídica y uso alternativo del derecho. CENEJUS, Centro de Estudios Jurídicos y Sociales P. Enrique Gutiérrez, Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de San Luis Potosí, México. 2006, p. 101.
[iv] ALDUNATE, José. Direitos humanos, direitos dos pobres. In: ALDUNATE, José (org.). Direitos humanos, direitos dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1992, p.198.
[v] ROSILLO MARTÍNEZ, Alejandro. Liberación e justicia social, derechos humanos desde la teología de la liberación. San LuisPotosí:Universidad San Luis Potosí. 2012, p.104
[vi] BOF, Leonardo. Do lugar do pobre. 3º Ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 68-69.