Coluna Processo Penal em Foco
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Há alguns dias nós que atuamos na Justiça Criminal fomos brindados por mais algumas pérolas, muito comuns nos dias de hoje, quando pululam as absurdidades das mais variadas espécies. Estamos como se fora em um ecossistema às avessas, causador de um enorme desequilíbrio.
No dia 08 de setembro foi publicada a Resolução nº. 18 do Conselho Nacional do Ministério Público, revogando uma anterior (Resolução nº. 13/2006), dispondo sobre a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público. No mesmo período, fomos presenteados com uma série de Enunciados baixados pelo 1º. Fórum Nacional de Juízes Criminais – FONAJUC, realizado em Florianópolis.
A referida Resolução, a propósito de disciplinar a atividade investigatória do Ministério Público, contém uma plêiade (no sentido inverso) de normas inconstitucionais. Não que sejamos contrários à investigação criminal pelo Ministério Público – matéria, inclusive, já decidida pelo Supremo Tribunal Federal e que encontra autorização na Constituição Federal. A questão não é essa. Gravíssimo é o fato de uma mera Resolução de natureza administrativa, expedida por um órgão – o Conselho Nacional do Ministério Público – sem legitimidade legislativa (em sentido formal) e sem legitimidade popular tratar de matéria de Direito Processual Penal.
Aliás, o Capítulo VII da Resolução trata de um tal “acordo de não-persecução penal”, dando ao órgão do Ministério Público a possibilidade (pasmem!) de “propor ao investigado acordo de não-persecução penal, desde que este confesse formal de detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento.” Portanto, às favas com o direito de não autoincriminação, consagrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e à regra da obrigatoriedade da ação penal pública, que só encontra exceções na transação penal (art. 76 da Lei nº. 9.099/95), na delação premiada (art. 4º., § 4º., da Lei nº. 12.850/13) e no acordo de leniência (arts. 86 e 87 da Lei nº. 12.529/11). Ou seja, na lei!
Portanto, o Conselho Nacional do Ministério Público ignorou solenemente o art. 22, I, da Constituição Federal ao arvorar-se legislador em matéria processual penal. A propósito, analisando a possibilidade de se estabelecer um procedimento investigatório criminal no âmbito do Ministério Público, Ada Pellegrini Grinover, após questionar qual o instrumento normativo adequado, responde: “Somente a lei, é evidente. O princípio da reserva legal o impõe. E o § 5º do art. 128 da Constituição reforça o entendimento, quando estabelece que as atribuições do MP serão estabelecidas por lei, observe-se lei complementar.
Servirá a esse objetivo a Lei Orgânica do Ministério Público – LOMP em vigor, que prevê algumas funções investigativas para o MP? Não. As referidas atribuições ligam-se ao exercício da ação civil pública, outra função institucional do MP, nos termos do art. 129, III, da Constituição. Só lei complementar, que atribuísse expressa e especificamente funções investigativas penais ao órgão ministerial, teria o condão de configurar o instrumento normativo idôneo para atribuir outras funções ao MP, não contempladas nos incs. I a VIII do art. 129, com base na previsão residual do inc. IX. Surge, portanto, outra conclusão: sem a lei complementar acima referida, o MP não pode exercer funções investigativas penais. Por via de conseqüência, são flagrantemente inconstitucionais e desprovidos de eficácia os atos normativos editados no âmbito do MP, instituindo e regulando a investigação penal pelos membros do Parquet.”
Obviamente que o Conselho Nacional do Ministério Público não tem legitimidade para legislar em matéria processual, por óbvio! Cabe-lhe, nos termos do art. art. 130-A, § 2º., “zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências.” Muito menos o seu Regimento Interno concede-lhe tal atribuição, limitando-se apenas a estabelecer o procedimento interno dos respectivos projetos de Resolução (art. 64-A). Trata-se, portanto, de uma indevida e inaceitável usurpação da competência da União para legislar em matéria processual penal.
Mais uma vez, veja-se a lição de Ada Pellegrini Grinover: “sem a lei complementar acima referida, o MP não pode exercer funções investigativas penais. Por via de consequência, são flagrantemente inconstitucionais e desprovidas de eficácia os atos normativos editados no âmbito do MP, instituindo e regulando a investigação penal pelos membros do Parquet.” (p. 5).
Quanto aos Enunciados do Fórum Nacional de Juízes Criminais– FONAJUC, os absurdos talvez sejam até em maior número. Há Enunciados cujo conteúdo é quase inacreditável e para todos os casos. Uma verdadeira artilharia contra a lei, contra a Constituição Federal e, até mesmo, contra a jurisprudência dos Tribunais Superiores, como se se tratasse o FONAJUC de órgão com poderes legislativos.
A propósito de tais Enunciados, relevantes as observações de Lenio Luiz Streck: “Aqui na ConJur já discuti com dois magistrados sobre o significado histórico-ideológico de um “enunciado”. E de como ‘elaborar enunciados representa a repristinação do velho positivismo da Begriffjurisprudence’ (jurisprudência dos conceitos), como sempre tão bem denunciou Castanheira Neves. O sonho de quem ‘gosta de enunciados’ é fazer pequenas pandectas, só que sem a responsabilidade de um Windscheid ou um Puchta. Ou alguém pensa que os alemães se reuniam em workshop para fazer seus “enunciados”? Além disso, nossos neopandectistas esquecem a distância histórica-temporal. Chamei inclusive Müller à colação (ler aqui) no debate. Enunciados são tentativas de dar respostas antes das perguntas. E, bingo. Como bem perguntou Habermas, quando de sua estada na Dacha, ‘é o Fonaje o nome de vosso Parlamento?’. Será que é? Para ilustrar, é só recordar a coluna da semana passada, em que discuti uma decisão do STJ. Cabe como uma luva aqui. E, já que sofro de LEER, pela primeira vez coloco o ler aqui duas vezes. Também é relevante que os conjuristas leiam o artigo de Dierle Nunes, Jéssica Galvão Chaves e Giselle Santos Couy. Mais: em comentário a essa coluna, o advogado Maxuel Moura contou que fez uma audiência em um JEC, juntou procuração específica para o filho da proprietária da empresa representar a pessoa jurídica em audiência, como permite o artigo 334, parágrafo 10, do CPC/2015. Todavia, foi surpreendido pela informação do magistrado de que, nos JECs, quando a pessoa jurídica é parte autora, deve ser representada somente pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente, consoante enunciado 141, do Fonaje, aprovado antes do CPC/2015. O advogado arguiu nada mais, nada menos, do que… o CPC. E o juiz brandiu o enunciado do Fonaje. Luta desigual, meu caro causídico. Perdeu. Enunciado 1º: juiz deve obedecer à lei que não ofende a Constituição. A propósito: que tal uma filtragem constitucional desses enunciados do Fonaje (e de outros feitos por aí)? Sugiro um: ‘O juiz deve cumprir a lei que não ofenda a Constituição’. Seria uma espécie de ‘enunciado fundamental’. Um ‘Grund’ enunciado. Que seria o fundamento de todos os demais enunciados. Uma norma fundamental dos enunciados (a Grundnorm dos enunciados). Parece-lhes bom?”
Pois é, do jeito que as coisas estão sendo feitas, e aceitas, no Brasil, qualquer diz desses não vamos mais precisar de leis. Bastarão Enunciados, Resoluções e coisas que tais. Triste fim do Processo Penal brasileiro.
Rômulo de Andrade Moreira é Articulista do Estado de Direito – Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.