Consequências da escravidão
Refletir sobre o racismo no Brasil é situar-se dentro da grande e eloquente trajetória da escravidão no Brasil, que fomentou uma narrativa histórica pautada na subordinação econômica do negro brasileiro. A escravidão no Brasil foi majoritariamente negra, ainda que os indígenas tivessem sido utilizados na mão-de-obra escrava, foi o negro o grande destinatário do trabalho compulsório[1].
Disso resultaram consequências que vislumbramos até os dias atuais. Em grande parte, consequências geradas no mais alto desrespeito na condição humana desses sujeitos, “de modo que uma pessoa ou um grupo de pessoas podem sofrer um dano real, uma distorção real, se as pessoas ou a sociedade que os rodeiam lhes devolvem como reflexo uma imagem restritiva, degradante ou depreciável de si mesmos”[2].
Direitos Humanos
Os direitos humanos como movimento contramajoritário e da busca da proteção e emancipação de todos os seres humanos dos grilhões da opressão e de toda ideologia desumanizante é tarefa ingrata e desgastante. A primeira dificuldade enfrentada diz respeito àqueles setores que são reconhecidamente necessários para o avanço da democracia, mas que, preocupados com a alta da audiência, acabam por transigir com as fontes do racismo no Brasil. Um exemplo conhecido de todos é o comportamento de uma parcela significativa da nossa mídia que explora a violência contra os negros no Brasil de maneira a naturalizar o genocídio da população negra.
Um outro aspecto é a intransigente postura dos governos que se sucedem no Brasil, que invariavelmente aplicam políticas longe ainda da real necessidade da população negra no Brasil.
Muitos dos esforços no Brasil para efetivação dos direitos humanos apresentam características assimétricas, ao estabelecerem prioridades alienígenas à nossa realidade, ou mesmo equivocadamente quando apresentam a origem das violações dos direitos humanos em um tempo e espaço histórico seletivo.
Por exemplo, a trágica experiência da ditadura civil-militar de 64, ignorando sub-repticiamente os verdadeiros fatores determinantes de desigualdade social e as implicações na cultura da violência no Brasil, que, sabidamente tem na escravidão a instituição que mais moldou nossa realidade social, seja nos costumes, seja na forma como as instituições atuam, especialmente para a vocação para a promoção da desigualdade social.
Isso fica evidente na situação escandalosa das nossas universidades federais até bem pouco tempo atrás (hoje, felizmente, mais da metade das vagas é destinado às escolas públicas), onde a maioria dos beneficiários eram os mais privilegiados do ponto de vista econômico (pagavam os cursinhos mais caros), ganhando do Estado um prêmio para manterem e até aumentarem a desigualdade social, próprio de um liberalismo anacrônico e marcadamente com as ideias fora de lugar.
Para Schwarz:
“ As ideias estão no lugar quando representam abstrações do processo a que se referem, e é uma fatalidade de nossa dependência cultural que estejamos sempre interpretando a nossa realidade com sistemas conceituais criados noutra parte, a partir de outros processos sociais”[3].
Racismo Institucional
No entanto, o caso mais dramático é o tratamento dado pelo nosso sistema penal, que, de conhecimento de todos, remonta às mesmas práticas seletivas do período escravocrata, reforçando um conceito então muito utilizado nos dias atuais, o racismo institucional.
O racismo institucional desanda nas suas formas mais perversas, e sendo a mais conhecida e festejada pelos altos índices de audiência dos jornais brasileiros é aquele que trata da matança sistemática dos jovens negros brasileiros[4]. A invisibilidade do ser humano negro no Brasil tem tons dramáticos quanto tratamos do perfil homem, negro e jovem.
O que ocorreu com Michael Brown, morto por um policial identificado como Darren Wilson na pequena cidade de Ferguson, ocorre diariamente em vários cantos de nosso país. Infelizmente, a repercussão que se deu nos Estados Unidos não é a mesma aqui no Brasil. Nosso país passou por um processo de naturalização da situação precária e indigna do jovem negro brasileiro.
Mesmo instituições respeitáveis, como as faculdades de direito no Brasil, que teriam que ser as primeiras a realizar discussões e pesquisas acadêmicas sobre este trágico fenômeno, preferem manter na pauta temas que pouco tocam a realidade brasileira, embora tenhamos algumas louváveis exceções[5].
Com isso, as faculdades de direito no Brasil entram na triste convergência do racismo institucional e cumprem com as demais instituições a sua função de ofuscar a prioridade do tratamento do genocídio dos jovens negros brasileiros. Seja pela omissão, seja pela ação, as faculdades de direito, na sua maioria, silenciam quanto a um problema sério de violação de direitos humanos.
Outra faceta do racismo institucional é a margem da ausência de respeito e do reconhecimento dos cotistas nas universidades e instituições brasileiras, como forma de inviabilizar as políticas de ações afirmativas, que, infelizmente tem se mostrado ineficiente na administração das consequências e das formas de indiferença que enfrentam os cotistas quando da admissão em uma vaga da universidade ou pela nomeação em um cargo público.
Já existem muitos casos, onde os cotistas são postos em setores onde a remuneração e a visibilidade são menores que em outros setores. O cotista no serviço público, muitas vezes é castigado por ter entrado pelo sistema das cotas raciais.
Outra faceta do racismo no Brasil, e mais uma vez atrelada a uma variante reconhecidamente de origem negra no Brasil, é o que está acontecendo com as religiões de matriz africana[6]. Por exemplo, existem canais abertos de televisão que receberam uma concessão constitucional e que utilizam esses mesmos canais para propalar o racismo religioso contra os praticantes das religiões de matriz africana no Brasil.
Temos casos reveladores do processo de destruição da cultura religiosa negra no Brasil. Infelizmente, este processo está tão adiantado, que hoje temos representantes dessas facções religiosas legislando em diversos níveis legislativos pelo País, buscando o fim da diversidade religiosa no Brasil.
Contribuindo para a permanência do racismo no Brasil, temos a equivocada estratégia de uma parcela significativa da população negra através das suas lideranças em tratar os problemas relativos à desigualdade social enfrentada pelos negros, adotando uma abordagem meramente culturalista, não se dando conta que, com isso, mantém a acomodação e a subordinação de uma parcela muito significativa da população negra brasileira (Telles).
A estratégia que entendemos a mais adequada é a centralidade do problema da renda do negro e da negra. É neste quesito onde reside os maiores obstáculos para o combate da desigualdade social no Brasil. Não adianta termos inclusão cultural, sem uma inclusão de renda.
O Brasil é sabidamente um país tolerante, ainda que longe do ideal, com as manifestações culturais dos negros, especialmente quando comparado com os Estados Unidos. No entanto, diferentemente dos Estados Unidos, os negros no Brasil estão à margem da renda.
A situação é tão sui generis, que, se caminharmos por um bairro na cidade de Porto Alegre, composto majoritariamente por população negra, raramente encontraremos os donos dos estabelecimentos comerciais sendo negros. Este é um exemplo claríssimo do equívoco da estratégia de combater o racismo pelo viés culturalista.
Enfim, com a aproximação do 20 de novembro, quando as manifestações no Brasil geralmente se concentram na abordagem cultural do problema racial,deveríamos também exigir uma participação efetiva da população negra na renda do país. Não podemos mais adotar a estratégia de inclusão cultural com a exclusão de renda.
Juntamente com essa mudança de estratégia, é necessária uma cobrança sistemática de todas as instituições brasileiras, para que ocorra uma profunda mudança de abordagem na relação que as mesmas têm com os negros.
A religião de matriz africana, o jovem negro, os cotistas, as mulheres negras são vítimas preferenciais de um conjunto de instituições do nosso incipiente sistema democrático brasileiro. Logo, o caso central de violações de direitos humanos no Brasil é o que trata das relações raciais no País.
Referências
[1] ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Alencastro afirma que “na realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856).
[2] Segundo Taylor, “the thesis is that our identity is partly shaped by recongnition or its absence, often by the misrecognition of others, and so a person or group of people can suffer real damage, real distorcion, if the people or society around them mirror back to them a confining or demeaning or contemptible picture of themselves”. (TAYLOR, Charles et al. Multiculturalism: Examining the politics of recognition. New Jersey: Princeton, 1994, p. 25 e na edição portuguesa na p.45. Multiculturalismo. Lisboa: Piaget, 1994).
[3] SCHWARZ, Roberto. O Pai de Família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p143.
[4] Jovens negros são as principais vítimas da violência no Brasil. Disponível em: http://nacoesunidas.org/onu-jovens-negros-sao-as-principais-vitimas-da-violencia-brasil/. Acesso em: 10 out. 2014.
[5] Tenho junto à Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre um grupo de estudos que pesquisa as causas da desigualdade social no Brasil. Grupo Direito e Igualdade.
[6] Negros e religiões africanas são os mais discriminados, mostra Disque 100. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-07/negros-e-religioes-africanas-sao-os-que-mais-sofrem-discriminacao. Acesso em: 30 out. 2015.
Lúcio Antônio Machado Almeida é Articulista do Estado de Direito – Doutor em Direito, Professor na Faculdade Dom Bosco. Assessor Legislativo da Escola do Legislativo da Câmara Municipal de Porto Alegre. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS.
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