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Quando ocorre a inadimplência
Em artigo anterior foi abordada a questão da desistência da compra do imóvel ainda em construção, ou seja, “na planta”. Agora, este escrito busca analisar situação parecida, mas diversa, a saber, aquela do consumidor que já está morando no imóvel e que se viu, por qualquer razão, inadimplente, sendo aqui apreciada a resolução do contrato.
É muito comum a realização do financiamento mediante mútuo garantido por alienação fiduciária em garantia. Assim, o mutuário contrata um empréstimo junto à instituição financeira que passa o dinheiro diretamente para o vendedor do imóvel, ficando a casa bancária favorecida pela constituição da garantia real. Ao consumidor cabe a posse direta e à instituição financeira a posse indireta. E, ao contrário da letra e do posicionamento do art. 1.361 do Código Civil, bem como do que sustenta a doutrina majoritária[1], a razão está com Ricardo Aronne[2] quando este brilhantemente assevera:
A propriedade é, pois, do devedor fiduciante, que em momento algum a transfere ao credor. Transfere, isso sim, o jus disponendi, na esfera dominial, para o respectivo credor., sobre a titularidade da alienação fiduciária, que regula o modo de exercício de tal poder de disposição, em especial no atinente à resolução de domínio, que só ocorre quando do inadimplemento.
Igualmente ensina Fernando Noronha[3]:
Natureza da alienação fiduciária em garantia. A alienação fiduciária em garantia é estranha, em relação à qual já houve quem [Cavalcanti, 1989, p. 24] observasse que “contra o que expressamente declara o texto da lei, não existe propriedade de espécie alguma para o credor, nem existe alienação, nem existe fidúcia”.
Na verdade, em rigor o credor nunca chega a ser proprietário da coisa dada em garantia, nem antes, nem depois do vencimento da dívida; ele apenas tem o direito de fazer vendê-la, judicial ou extrajudicialmente, se o devedor cair em inadimplência. E como o credor nunca adquire a propriedade, efetuada a venda da coisa e pago ele do valor a que tem direito, tem de devolver o eventual saldo remanescente ao devedor.
Tanto a razão está com Aronne e Noronha que basta ver a impossibilidade lógica de ter-se direito real de garantia sobre coisa própria[4]. A solução codificada no sentido de que se trataria de uma “propriedade resolúvel”, ao invés de mais um direito real de garantia, parece-nos insatisfatória, apesar de revelar-se engenhosa, facilitando inclusive a aceitação da execução extrajudicial mediante consolidação e leilão extrajudicial, bem como excluindo bem da satisfação em caso de eventual concurso de credores.
Apontamentos
Postos os contornos jurídicos do negócio, aponta-se uma primeira especificidade do desfecho frustrado do pacto. É que no caso de inadimplemento do contrato, realiza-se primeiramente a notificação extrajudicial do devedor, oportunizando-se a purga da mora[5], ou seja, exige-se a constituição em mora ex persona, não bastando para sua caracterização a mora ex re. Eis aqui uma primeira especificidade do regime jurídico da alienação fiduciária em garantia, pois ainda que haja o vencimento do débito no termo, ainda assim, a resolução é condicionada à caracterização da mora ex persona, especialmente tendo em vista a gravidade das consequências da resolução contratual para a vida do devedor que será desapossado da própria moradia, o que desaconselha a adoção da mora ex re. Tanto é assim que a consolidação da propriedade pelo credor obriga a constituição da mora ex persona, mas para a execução do débito em juízo visando a expropriação de quantia certa basta a mora ex re como bem anota Ricardo Aronne[6].
Uma segunda questão reside na consolidação da propriedade em nome do credor. A propriedade resolúvel deixa de existir com o inadimplemento, passado a propriedade plena para as mãos do credor fiduciário. Entretanto, é vedado ao credor ficar com o bem, sendo tal proibição tradicional no Direito brasileiro, recebendo o nome de vedação de pacto comissório, devendo ser levado o imóvel a leilão extrajudicial. A consolidação da propriedade e a venda fora de juízo são constantemente criticadas pela ausência de submissão desta espécie de execução ao crivo judicial, sendo comum a imputação de inconstitucionalidade que, pelo menos até agora, não foi declarada pelo STF.
O terceiro ponto a respeito do tema – e aqui adentrar-se ao cerne da questão – reside na liquidação do débito uma vez leiloado o bem. Vendido para terceiro, o produto da alienação é utilizado para pagamento do débito remanescente e, o que sobejar, deve ser entregue ao consumidor. A sistemática é simples, mas costuma suscitar duas dúvidas: o adquirente perde tudo quanto pagou a título de financiamento? Se depois da alienação o valor for insuficiente para o pagamento do saldo devedor, continua o consumidor responsável pelo pagamento do quantum faltante para o adimplemento?
A primeira dúvida decorre da incidência ou não do art. 53, caput, do CDC e do entendimento jurisprudencial que reconhece a invalidade da perda da integralidade das parcelas pagas. A resposta para tal celeuma somente pode ser no sentido da absoluta inaplicabilidade do dispositivo legal e do posicionamento pretoriano, vez que a sistemática do caso é absolutamente distinta da desistência de compra de imóvel “na planta”, vez que no caso de inadimplência já existe o ingresso no imóvel e o descumprimento do contrato não enseja o retorno do imóvel ao construtor, mas sim a venda para terceiro, beneficiando-se o consumidor do produto da alienação, não se podendo devolver as parcelas pagas conjuntamente com o montante fruto da arrematação. O consumidor receber o que pagou e mais o produto da venda implicaria em absurdo enriquecimento ilícito, representando indevido acréscimo patrimonial decorrente de um descumprimento contratual, bem como, ao mesmo tempo, injusto prejuízo ao credor que ficaria com parcela diminuta do quanto lhe era devido. Basta ver que se o consumidor obteve financiamento de R$ 500.000,00, pagou R$ 400.000,00, restando um saldo devedor de R$ 100.000,00 e o imóvel é alienado por R$ 350.000,00, a teratológica solução seria a entrega dos R$ 400.000,00 mais R$ 250.000,00, de forma que o devedor receberia R$ 650.000,00 e o credor inocente teria um prejuízo de R$ 400.000,00. Além disso, o contrato em si é de mútuo – e não de compra e venda – não se subsumindo o caso ao previsto no art. 53, caput, do CDC que não se presta a regular o fim do contrato de financiamento imobiliário.
Por fim, no caso da alienação fiduciária em garantia existe uma previsão legal específica (art. 27, § 5º, da Lei Federal 9.514/97) que refere que vendido o bem em segundo leilão e sendo o produto insuficiente para o pagamento de todo o débito, a parte remanescente se extinguirá. Daí não subsistir débito em desfavor do mutuário, mesmo que a dívida supere o montante pago por terceiro para adquirir o imóvel. Note-se que isso tendo-se em vista a constituição de alienação fiduciária em garantia, pois para as relações submetidas ao Decreto-lei 70/66 a solução é a oposta por força de comando expresso do art. 32, § 2º.
Desse modo, espera-se ter lançado alguma luz sobre algumas questões práticas do cotidiano relativas ao término da relação negocial entre o pretenso adquirente e a instituição financiadora do sonho frustrado.
Referências
[1] Por todos, veja-se o quanto aduz Orlando Gomes (Direito Reais. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 272): “Na alienação fiduciária em garantia o fiduciário passa a ser dono dos bens alienados pelo fiduciante. Adquire, por conseguinte, a propriedade desses bens, mas, como no próprio título de constituição desse direito está estabelecida a causa de sua extinção, seu titular tem apenas propriedade restrita e resolúvel. O fiduciário não é proprietário pleno, senão titular de um direito sob condição resolutiva.”.
[2] ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos contemporâneos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 416.
[3] NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 230.
[4] ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos contemporâneos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 417.
[5] O prazo para purgar a mora é objeto de intenso debate jurisprudencial, havendo quem defenda que é de 15 dias a contar da notificação que constitui a mora ex persona (art. 26, § 1º, da Lei Federal 9.514/97) e outros que sustentam a aplicação do art. 34 do Decreto-lei 70/66 autoriza a purga da mora até a assinatura do auto de arrematação.
[6] ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados: das raízes aos fundamentos contemporâneos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 409.
Tiago Bitencourt de David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL. |