Cesar Zucatti Pritsch
Como ficam as súmulas com a revogação do IUJ e a inclusão dos inatingíveis pressupostos do art. 702 “f” da CLT? Tal engessará a jurisprudência trabalhista ou terá efeito salutar, canalizando uma formação mais adequada de precedentes segundo o CPC 2015?
1. Considerações iniciais
O Pleno do TST se prepara para discutir a constitucionalidade alínea “f” do inciso I e o parágrafo e 4º, ambos do artigo 702 da CLT, introduzidos pela Lei 13.467/2017, os quais quase inviabilizam a edição e alteração de súmulas.
A alínea “f” estipula que a aprovação depende de quorum mínimo de 2/3, após a mesma matéria já ter sido decidida de forma idêntica por unanimidade em ao menos 2/3 das turmas, em 10 sessões diferentes cada uma. Já o parágrafo 4º leva a mesma sistemática aos TRTs, observada a abrangência da respectiva circunscrição judiciária.[1]
A questão surgiu por ocasião do julgamento de um recurso de embargos pela SDI-1, onde a maioria dos Ministros votava em sentido contrário a uma súmula, o que ensejou a suspensão do julgamento e remessa do feito ao Pleno para “revisão” da súmula. Preliminarmente, entretanto, a Comissão de Jurisprudência opinou pela inconstitucionalidade de tais dispositivos, sendo instaurado incidente para a apreciação plenária de tal arguição de inconstitucionalidade (ArgInc-696-25.2012.5.05.0463).[2]
Não é o foco deste breve ensaio adentrar a discussão sobre a constitucionalidade de tamanha restrição à edição de súmulas trabalhistas sem equivalência na legislação processual civil, nem tampouco debater as probabilidades de rejeição pelo STF de eventual declaração de sua inconstitucionalidade pelo TST. O objetivo aqui é apenas propor que não nos lamentemos pelo novo regramento restritivo – tendente a converter as súmulas trabalhistas em animais em extinção!
É que, dentre tantas alterações recentes da legislação processual trabalhista, esta não terá necessariamente um impacto nefasto.
Antes pelo contrário, fechada a porta da uniformização através do binômio IUJ-súmula, que vinha ocorrendo desde a edição da lei 13.015/2014, naturalmente surge a perspectiva de adesão massiva ao uso dos novos instrumentos vinculantes, como o recurso de revista repetitivo ou com transcendência, o IRDR e o IAC, que adiante se revelarão mais eficazes que as súmulas, como discutiremos. Em contraste, as súmulas são anacrônicas, de difícil compatibilização com o sistema atual de precedentes, e não possuem grande eficácia na pacificação de dissensos jurisprudenciais, podendo ser substituídas com vantagem pelos instrumentos vinculantes estabelecidos em nossa legislação recente.
Vejamos.
2. As súmulas são instrumentos anacrônicos e incompatíveis com o atual sistema brasileiro de precedentes
Em que pese o art. 702, “f”, e seus §§ 3º e 4º, da CLT, tornem bem mais difícil a edição de súmulas na Justiça do Trabalho, entendemos que não haverá prejuízo para o processo do trabalho, considerando que, sob a égide do regime de precedentes vinculantes do CPC de 2015, há clara preferência pelos precedentes qualificados (como os recursos repetitivos, IAC e o IRDR), acórdãos atrelados aos fatos de um ou mais casos e dotados de ratio decidendi cuja inobservância seja reprimida por reclamação.
Os mecanismos de formação de precedentes qualificados consagrados no CPC de 2015 permitem um contraditório ampliado (inclusive com a participação de amicus curiae) e são ancorados nos fatos dos respectivos casos concretos. A súmula, no entanto, é pouco compatível com o atual sistema, já que, não obstante a exortação do art. 926, §2º, do CPC (que determina que a redação das súmulas se atenha às circunstâncias fáticas dos precedentes que a ensejaram), tende a ser elaborada e interpretada abstratamente, sem o cotejo com o universo fático dos casos concretos que a originaram, dando-lhe um aspecto de norma legislada, abstrata.
Comandos normativos gerais e abstratos, em nosso direito, são de competência do poder legislativo, enquanto que ao judiciário cabe o julgamento de casos concretos, ainda que por economicidade, isonomia e segurança jurídica devam os juízes em casos posteriores observar os mesmos fundamentos determinantes do precedente.
Se lida abstratamente, a súmula empobrece a aplicação do sistema de precedentes vinculantes, que depende da comparação do contexto fático do precedente e dos casos posteriores para a verificação da aplicabilidade da correspondente ratio a tais casos.
Assim, no contexto normativo atual, embora as súmulas remanescentes continuem servindo a um propósito de divulgação de entendimentos uniformizados, sua paulatina substituição por precedentes vinculantes em sentido estrito representará um ganho para o sistema jurídico pátrio, permitindo o uso das técnicas organicamente ligadas ao uso de precedentes, a aplicação direta (following), analógica (analogizing), o afastamento por distinção (distinguishing) e a superação (overruling).
3. As súmulas não possuem grande eficácia na pacificação de dissensos jurisprudenciais, sendo mais eficazes para tanto os precedentes qualificados, notadamente os indicados no art. 988 do CPC, cujo descumprimento enseja reclamação
As súmulas, embora ainda úteis para conhecimento geral ou divulgação de entendimentos consolidados nos tribunais, são insuficientes para de fato pacificar determinado dissenso jurisprudencial, já que embora tenham alguns efeitos processuais, não podem ter seu descumprimento combatido por Reclamação (art. 988 do CPC). Há vantagem no efeito vinculante típico, sujeitando o juízo dissidente à cassação imediata de sua decisão por Reclamação (art. 988 do CPC).
Assim, a mera transformação de uma maioria frequentemente frágil em súmula – como era o caso do procedimento de confecção de súmula a partir de um IUJ – não mais se amolda ao novo sistema também por tal motivo, já que uniformiza sem impor a observância de tal entendimento uniformizado – algo quase inócuo, insuficiente para romper uma longa tradição de dispersão jurisprudencial. Em contraste, e. g., a tese vinculante um Recurso de Revista repetitivo ou com transcendência reconhecida tem naturalmente maior poder de pacificação jurisprudencial, dada a vinculatividade imposta pela reclamação.
4. Quanto à missão de difundir entendimentos pacificados, as súmulas podem ser substituídas pelos instrumentos vinculantes sujeitos a reclamação – como os recursos repetitivos, o IRDR, o IAC, o Recurso Extraordinário com repercussão geral e o Recurso de Revista com transcendência
Embora a súmula seja útil nesta fase de transição em direção a uma verdadeira observância dos precedentes – como conveniente atalho de fundamentação e instrumento de publicização dos principais entendimentos pacificados – deve com o tempo ceder espaço aos instrumentos vinculantes de unificação de jurisprudência, como o incidente de recurso de revista repetitivo (IRRR), de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e de assunção de competência (IAC), além do recurso de revista sujeito ao pressuposto da transcendência (regulamentado também pela Lei 13.467/2017, que acresceu os §§1º-6º ao art. 896-A da CLT).
Considerando a obrigatoriedade “da mais ampla e específica divulgação e publicidade”, os tribunais mantêm banco eletrônico de dados identificando as questões de direito submetidas em tais incidentes (tanto em segundo grau quanto nos tribunais superiores, conforme §3º), elencando as respectivas teses jurídicas com no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados (§2).
De uma consulta rápida aos sítios informatizados dos tribunais, inclusive superiores, verifica-se que as teses jurídicas de tais precedentes, tão divulgadas e publicizadas quanto uma súmula, acabam tendo uma redação muito similar a esta, com uma ou duas frases que tentam resumir a ratio decidendi dos respectivos precedentes, prestando-se portanto tanto à função de conveniente atalho de fundamentação quanto à função de elemento de publicização de um entendimento uniformizado.
Assim, temos que para os recursos de revistas repetitivos (e agora aqueles com transcendência reconhecida), IRDRs e IACs, a edição de súmula é desnecessária, tendo em vista que a própria decisão é vinculante e que a sua tese resumida e publicizada cumpre funções de divulgação de entendimentos e atalho de fundamentação jurídica análogas às da súmula.
5. Art. 702, “f” da CLT não impede a imediata extinção de súmulas superadas (overruled) e substituição por precedentes vinculantes
Finalmente, é importante destacar que as súmulas dos Tribunais Regionais que eventualmente estejam superadas em razão de superveniente texto legal ou novo precedente vinculante em conflito ficam imediatamente superadas ou overruled, da mesma forma que ocorreria com a superveniência de uma nova disposição de lei que regulasse a matéria de forma diversa daquela cristalizada na súmula – tornando-a imediatamente prejudicada ou superada.
Assim, em tais situações, não é lógico que se observem os pressupostos quantitativos ditados pelo art. 702, “f” e §4º, da CLT. O texto é claro no sentido de que os pressupostos do art. 702, “f” e §4º, da CLT se destinam a regular o estabelecimento ou alteração de súmulas, mas não para seu cancelamento. Assim, o engessamento das súmulas trabalhistas se dá quanto à sua produção ou alteração, mas não quanto ao uso dos atuais instrumentos de uniformização acima debatidos, tornando prejudicadas ou superadas as súmulas em contrário.
Assim, como a alínea “f” do inciso I do artigo 702 da CLT restringe apenas o estabelecimento e alteração de súmula, mas não o seu cancelamento, a solução seria cancelar imediatamente a súmula que não mais corresponde ao entendimento do tribunal, julgando um recurso repetitivo, IAC, IRDR ou recurso de revista com transcendência sobre a mesma questão, produzindo um precedente de eficácia vinculante e pacificadora da jurisprudência, para o qual seria redigida uma “tese” resumindo seus fundamentos determinantes, com praticidade e facilidade de divulgação ou memorização similar à das atuais súmulas.
6. Conclusão – o engessamento da produção de súmulas decorrente do art. 702, “f” da CLT (caso não se sedimente o entendimento por sua inconstitucionalidade) não causará prejuízo à pacificação da jurisprudência trabalhista, à vista da nova sistemática de precedentes vinculantes
Nesse contexto, entendemos que não há prejuízo com o recrudescimento dos critérios para a edição de súmula, a qual decorrerá unicamente de assuntos que sejam tão pacíficos em um tribunal que seja desnecessário o julgamento de um dos incidentes uniformizatórios.
Nos casos de questões muito pacificadas, a súmula cumpre a função não de pacificar, mas de registrar e divulgar um entendimento já antes pacífico, em conformidade com os pressupostos agora insculpidos no art. 702, “f”, da CLT. Em tais casos nem mesmo o art. 702, “f”, da CLT impediria a criação de uma súmula para representar tal entendimento pacificado.
Do contrário, se houver uma maioria frágil, se o tribunal estiver dividido quanto a um determinado entendimento, então deverá ser utilizado o correspondente incidente ou recurso uniformizatório (IAC, IRDR, IRRR, embargos do art. 894 da CLT, conforme o caso), gerando a correspondente tese, ao invés de súmula.
Assim, não choremos pelas súmulas, que a reforma tenta transformar em “animal em extinção”. Como temos afirmado em nossa obra “MANUAL DOS PRECEDENTES NO PROCESSO CIVIL E DO TRABALHO” (Editora LTr, 2018), as súmulas atuais remanescem com importância transitória, não havendo motivos para lamentar o seu engessamento e perda de relevância nos próximos anos, com possível progressiva extinção, eis que substituídas por instrumentos precedenciais (RR repetitivo, RR com transcendência, IRDR, IAC) mais apropriados e eficazes, em harmonia com o CPC 2015.
Notas:
[1] Em sua versão atual, o Regimento do TST prevê detalhadamente quais entendimentos podem ser consubstanciados em Súmula da jurisprudência predominante do TST (RITST, art. 160), bem como o processo de sua elaboração. A criação de súmulas poderia se dar por provocação da Comissão de Jurisprudência, ou por proposta assinada por dez ministros do tribunal, ou por qualquer um dos ministros que estivessem em atividade jurisdicional na apreciação de recursos repetitivos. Antes da alteração legal, os pressupostos quantitativos para a propositura e edição de uma súmula eram os descritos nos arts. 165 e 166 do Regimento interno do TST , em termos bem mais brandos. O projeto de edição de Súmula teria como pressupostos: 3 acórdãos da SDI por unanimidade, presentes 2/3 de seus membros; OU 5 acórdãos da SDI por maioria, presentes 2/3 dos membros; OU 15 acórdão unânimes de 5 turmas (3 em cada); OU 2 acórdãos por maioria em cada uma de todas as turmas (tudo com relatores diversos e em sessões distintas). A edição, revisão ou cancelamento de Súmula se daria pela anuência ao projeto de súmula pela maioria absoluta do Tribunal Pleno.
A Lei 13.467/2017, na alínea “f” e §§3º e 4º do art. 702 da Consolidação, trouxe critérios mais rigorosos que aqueles previstos no Regimento do TST e estendeu tais pressupostos aos TRTs, além de permitir a participação de amici curiae, ampliando a transparência e participação na edição de súmulas. Fica nítida a intenção do legislador de reprimir o uso de súmulas pelos órgãos da Justiça do Trabalho, transparecendo isto não apenas no art. 702, I, “f”, mas também no §2º do art. 8º da CLT, que busca limitar o conteúdo das súmulas trabalhistas.
[2] TST, 16-08-2018, disponível em http://tst.jus.br/noticia-destaque/-/asset_publisher/NGo1/content/id/24634894.