Mulheres Indígenas: gênero, etnia e cárcere

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

Mulheres Indígenas: gênero, etnia e cárcere. Maria Judite da Silva Ballerio Guajajara (Kari). Dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília .Orientadora: Profa. Dra. Debora Diniz. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2020, 107 p.

         Neste Lido para Você, uma contribuição especial por Maria Judite da Silva Ballerio Guajajara (Kari), autora da dissertação comentada, na forma de um Pós-Escrito à Dissertação, Após o Debate com a Banca

         Mergulho, neste Lido para Você, em mais uma boa dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília, a que estive presente como membro arguidor, juntamente com as professoras Luciana Stoimenoff Brito (UnB/Serviço Social) e Ela Wiecko Volkmer de Castilho (UnB/Faculdade de Direito). Também o faço para me aproximar das vozes solidárias que têm feito coro em defesa da Professora Debora Diniz, orientadora do trabalho, atualmente afastada do país, escapando da sanha miliciana que a tornou alvo de intolerância, contra seu ativismo político e social e contra o seu engajamento epistemológico. Em Coluna anterior publicada neste espaço já fiz um registro dessa solidariedade: “ela própria neste momento sob o acicate miliciano da intimidação, e assim aqui lhe presto homenagem pela disposição de luta”, ao comentar obra sobre cujo tema ela tem grande expertise. Penso, entretanto, que a sua melhor resposta ao obscurantismo é continuar merecendo o reconhecimento internacional mais qualificado, tal como recentemente, ao lhe ser outorgado o prestigioso Dan David Prize na categoria igualdade de gênero (https://www.cidadelivre.org.br/index.php/pt/todas-as-noticias-publicadas/15-feminismo/4521-antropologa-debora-diniz-recebe-premio-internacional-por-seu-trabalho-na-area-de-igualdade-de-genero).

         Aqui, a presença orientadora da professora Debora, se faz sentir na escolha do tema, na articulação político-teórico-metodológica do trabalho e na análise nele desenvolvida, a começar pela primorosa Introdução na qual todos esses elementos já são divisados. Interessante é que essa presença, é também notável, mesmo nas escolhas que são a nota de autonomia autoral da pesquisadora. Assim, embora o eixo orientador se expresse em referências teóricas altamente sofisticadas sobretudo em suas matrizes epistemológicas, é louvável apreender a liberdade intelectual da Autora, quando decididamente escora sua pesquisa nos fundamentos das teorias decoloniais (Quijano), pertinentes para a compreensão dos incidentes analíticos, “singularidades” por ela mencionadas, que balizam o lugar hierarquizado sobreposto aos povos tradicionais do continente americano no marco do processo colonial decorrente da modernidade capitalista, ao limite da alienação do humano (teorias da libertação). Nota-se isso também nas escolhas metodológicas, em seu intuito de buscar, com a aplicação dos elementos de “interseccionalidade”, as “categorias indivisíveis na consideração das discriminações que sofrem as mulheres indígenas, ao sobrepô-las e, consequentemente, potencializá-las”. É ainda sob esse ângulo de uma liberdade metodológica apreciável, com a preocupação de estabelecer o “recurso metodológico de empreender uma análise descritiva”, que se abre a compatibilidades analíticas próprias, tal como o fizera o dialético F. Engels em seu relatório sobre a habitação, para também confiar, menos antropologicamente e mais sociologicamente, na “descrição verdadeira que é, simultaneamente, explicação”.

         Apreendi rapidamente esse percurso proposto na Dissertação, porque aliado da causa indígena desde os tempos em que oficiei como curador ad hoc em designações judiciais para opor razões ao tutor legal, na modelagem do Estatuto do Índio (lei 6001/73), pude abrir espaços de autonomia ao confinamento normativo de seu modelo assimilacionista.

         Do mesmo modo, sob o ângulo de uma leitura desde fora, compartilhei o processo de fortalecimento da construção constitucional do projeto político dos povos indígenas, abrigando os esforços nesse sentido de importantes pesquisadores.

         Assim, por exemplo, nos estudos de mestrado e doutoramento de Rosane Freire de Lacerda, os quais teriam sido muito úteis para sua pesquisa.

         No primeiro desses estudos, de 2007 – Diferença não é incapacidade : gênese e trajetória histórica da concepção da incapacidade indígena e sua insustentabilidade nos marcos do protagonismo dos povos indígenas e do texto constitucional de 1988 – trata-se da questão da capacidade civil dos indígenas no Brasil e de sua sujeição ao regime tutelar especial previsto e m leis infra−constitucionais. Partindo do pressuposto da ruptura histórica da Constituição Federal de 1988 co m o antigo paradigma da incorporação dos índios à comunhão nacional brasileira, busca−se compreender e m que medida tal ruptura introduziu, ou não, alterações na compreensão e na prática dos juristas e das instituições do Estado brasileiro a respeito do te ma. Tendo e m vista as resistências da maioria dos atores jurídicos na compreensão da questão da capacidade civil indígena a partir dos novos parâmetros constitucionais, a pesquisa aponta para a importância da sua análise no âmbito da sistemática adotada pelo Direito Civil Constitucional, para ali potencializar a superação da concepção da incapacidade indígena. Trata−se, enfim, de uma pesquisa documental, fruto das inquietações da autora enquanto advogada atuante há muitos anos na defesa dos direitos indígenas, e que identifica na questão da tutela indígena u m dos problemas ainda enfrentados por aqueles povos na busca pelo respeito à sua autonomia e diversidade étnica e cultural.

         No segundo, tese de doutorado defendida em 2014, também sob minha orientação – “Volveré, y Seré Millones”: Contribuições Descoloniais dos Movimentos Indígenas Latino Americanos para a Superação do Mito do Estado-Nação – Rosane Freire Lacerda, conforme ela anota no resumo da tese, estuda “a emergência do modelo plurinacional de Estado na América Latina a partir das demandas históricas dos povos indígenas. São demandas pelo seu reconhecimento enquanto sujeitos políticos e jurídicos autodeterminados, no marco do Estado territorial moderno. O foco central está na importância e contribuição dos movimentos indígenas latino-americanos, em especial os da Bolívia, Equador e Brasil, para a construção de um modelo de Estado que desafie e supere as relações coloniais e eurocêntricas de poder e de conhecimento presentes no modelo de Estado-nação. O trabalho busca responder a duas indagações: (a) o chamado modelo “plurinacional” de Estado consiste no simples reconhecimento da diversidade étnica e cultural da sociedade e na concessão, a estas identidades diversas, de direitos específicos? e (b) o Estado Brasileiro, tendo em vista os reconhecimentos do art. 231 da Constituição Federal de 1988, possui os elementos ou pode ser considerado um Estado “plurinacional”? A hipótese é a de que o Estado plurinacional, longe do simples reconhecimento da heterogeneidade e da concessão de direitos específicos, constitui um modelo cujas bases axiológicas e institucionais são construídas a partir da pluralidade de concepções éticas, jurídicas e políticas próprias das diversas identidades “nacionais”. No caso do Brasil, a hipótese é a de que apesar do reconhecimento da diversidade étnica e cultural expressa no art. 231 da CF/88, o modelo institucional de Estado continua uni-nacional e marcado pelas relações coloniais de poder. O objetivo geral do trabalho é identificar e analisar, a partir das reivindicações e contribuições políticas dos movimentos indígenas e de seus reflexos no movimento do chamado Novo Constitucionalismo Latino-americano, o significado e a importância constitucionais do modelo “plurinacional” de Estado, em especial as possibilidades que este oferece para a ruptura com históricas relações de dominação no interior de Estados marcados pela diversidade étnica e cultural. A análise teórica tem por base os estudos sobre a “colonialidade” (Quijano), em especial as modalidades “colonialidade do poder” (Quijano), “do saber” ou “epistêmica” (Mignolo e Sousa Santos), e “do ser” (Maldonado-Torres). Considerando a ideia de homogeneidade étnica e cultural como subjacente à concepção da identidade necessária entre Estado e nação, e como uma produção ideológica baseada no não reconhecimento da diversidade, afirma-se a incapacidade do Estado-nação na América Latina para dar conta de sua pretensão de promover uma integração social democrática, justa y solidaria. Procura-se demonstrar, na trajetória histórica do constitucionalismo latinoamericano pós-independência, que os Estados uni-nacionais na região desenvolveram-se e constituem-se enquanto espaços de manutenção das relações coloniais de poder, de ser e de saber, que invisibilizam a diversidade étnico-cultural e colocam os indígenas em condições de subalternidade política e epistêmica. A partir daí são analisadas as históricas lutas de resistência indígena a este quadro, bem como as mobilizações em torno da recente construção dos modelos plurinacionais de Estado na Bolivia (2009) e Equador (2008), como expressões de uma atitude “descolonial” (Quijano), fundada na “desobediência epistêmica” (Mignolo) e na “interculturalidade crítica” (Walsh). Conclui-se que no Novo Constitucionalismo Latino-Americano as demandas indígenas trouxeram a plurinacionalidade como uma tentativa de construção um novo modelo de Estado, em bases descoloniais”.

         Também em leitura desde fora, orientei o trabalho de Lívia Gimenes Dias da Fonseca, mestrado e doutorado, desta feita, com a interconexão entre gênero e mulheres indígenas. A tese – Desplatioatriarcalizar e decolonizar o estado brasileiro: um olhar pelas políticas públicas para mulheres indígenas. 2016. 206 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2016 – conforme esclarece o seu resumo, “intenta responder à pergunta: é possível decolonizar e despatriarcalizar o Estado moderno a partir de suas próprias estruturas? Para tanto,a Autora valeu-se dos marcos teóricos da teoria decolonial, associados às produções latino-americanas que refletem sobre os efeitos da colonização nas estruturas de poder da organização social dos países dessa região. E, na tradução intercultural dessa narrativa histórica, identificou como as colonialidades do poder, do saber, do ser e de gênero constituíram-se de forma a permanecer na nossa forma de organização social estatal; analisou as políticas públicas para a população indígena por meio da sociologia das ausências, que tem como objetivo identificar, por meio das categorias construídas por Boaventura de Sousa Santos, modos de produção da ausência, o que permanece invisível e silenciado nessas políticas. E o silenciamento mais evidente é o das mulheres indígenas; analisou as políticas públicas para as mulheres, de modo a tentar encontrar ali as vozes das indígenas; e, por fim, apresentou as experiências plurinacionais dos Estados da Bolívia e do Equador como alternativas possíveis ao modelo adotado no Brasil de forma a tentar encontrar ali modos de articulação da pauta étnica com a de gênero”.

         Para a Autora, entretanto, a colonialidade do gênero é algo sob a qual se sustenta a colonialidade do poder que tem no Estado a centralidade no controle dos modos de vida das populações submetidas. Segundo ela, a construção de um feminismo decolonial é a proposta de articulação das pautas de destituição do patriarcado moderno, que estrutura o Estado Nação com as outras pautas de decolonialidades.

         Com Lívia, aliás, ensaiei um texto co-autoral, que saiu na Revista Direito e Práxis, v. 8, n. 4 (2017), DOI: 10.1590/2179-8966/2017/31218 O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito / The Constitutionalism found on the street – a proposal of decolonization of the Law. Nesse texto a partir dos marcos teóricos da linha de pensamento jurídico crítico “O Direito achado na rua” apresenta-se uma perspectiva de possibilidades e desafios na construção de um constitucionalismo que inclua na sua pauta uma transformação no modelo de organização estatal moderno de modo a decolonizá-lo e despatriarcalizá-lo, abrindo-o para o reconhecimento de suas mobilizações jurídicas emancipatórias.

         Faço essa referência porque encontro no trabalho de Maria Judite da Silva Ballerio Guajajara, uma afinidade conceitual e temática nesse ponto, exatamente quando ela designa o processo de reconhecimento constitucional e de repolitização do movimento indígena enquanto movimento social e adota a categoria sujeitos coletivos de direito, diz ela, “entendi como resultado dos desafios de O Direito Achado na Rua que caminham em compasso com os desafios sociais das mais diversas ordens e se vislumbra nas perspectivas amplas, diversas, plurais do futuro, abarcam a complexidade dos novos movimentos sociais e dos novos protagonistas da mobilização popular por direitos, que atuam dentro e fora da academia” (p. 25).

         De fato, no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, temos trilhado essa mesma disposição e, no tocante à questão indígena, temos oferecido o suporte teórico de nossa abordagem crítica do jurídico, para esse afazer de reconhecimento e de politização emancipatória. Com Renata Carolina Corrêa Vieira, tomamos exatamente a mobilização indígena para esclarecer o papel de O Direito Achado na Rua como horizonte democrático-participativo: “Com sua presença orgulhosa e consciente, as comunidades indígenas brasileiras confrontaram a hostilidade de uma governança encastelada na desfaçatez de sua vassalagem a uma agenda ultra-neoliberal, e com a capacidade instituinte de suas organizações – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Mobilização Nacional Indígena (MNI) –reafirmaram o seu “compromisso de fortalecer as alianças com todos os setores da sociedade, do campo e da cidade, que também têm sido atacados em seus direitos e formas de existência no Brasil e no mundo” e de seguir dando a sua “contribuição na construção de uma sociedade realmente democrática, plural, justa e solidária, por um Estado pluricultural e multiétnico de fato e de direito, por um ambiente equilibrado para nós e para toda a sociedade brasileira, pelo Bem Viver das nossas atuais e futuras gerações, da Mãe Natureza e da Humanidade: Resistiremos, custe o que custar. Não é nesse governo que os povos indígenas vão baixar a cabeça!”. In O Direito Achado na Rua como horizonte democrático-participativo: do espaço institucional à rua, in (https://constitucionalismo.com.br/direito-achado-na-rua-como-horizonte-democratico-participativo/

         Do mesmo modo, também Renata Vieira e eu, nos valemos de categorias do pensamento decolonial para compreender o alcance legítimo da luta dos povos tradicionais por reconhecimento de sues direitos: “O Bem Viver, como uma expressão síntese de afirmação do modo de pensar o mundo e o social, juntamente com a unidade desse modo de ser, de conhecer, de poder, como bem demonstra o peruano Aníbal Quijano , para caracterizar seus estudos decoloniais; e de exercitar protagonismo numa unidade integral com a Pacha Mama, só muito recentemente e ainda de modo muito restrito, foi assimilado no discurso dos sujeitos que vivenciam essa condição no Brasil. Entre nós, a luta histórica dos povos tradicionais, compartilhada pelo mesmo imaginário dos povos originários de nosso continente, foi e ainda é, como se percebe no discurso do Presidente do Brasil, pelo reconhecimento de sua condição humana e de sujeito de direitos.

         Os debates de Valladolid, no século XVI, opondo Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de lãs Casas, se bem tenham levado a esse reconhecimento expresso na Bula do Papa Paulo III (Sublimis Deus, 1537), de que os índios têm alma e são gente como nós, não universalizou a compreensão, que a modernidade capitalista engendrou para recrutar insumos para a acumulação, de que os índios, especialmente os americanos, são bárbaros, monstros, bestas, selvagens, silvícolas, alienados do humano, no máximo um sub-produto do meio-ambiente. Há poucos anos em depoimento para um jornal (Porantim), do Conselho Indigenista Missionário (CIMICNBB), o velho pistoleiro falava de suas memórias de agressão a indígenas e dizia: “atirei nele, quando cheguei perto vi que chorava, parecia gente!”. Esse pensamento, sem filtro, cristalino em sua perversão social converge agora para o centro das políticas públicas em nosso continente submetido à voragem ultraneoliberal. No Brasil, o atual presidente o exibe sem mediações: O presidente Jair Bolsonaro falou na noite desta quinta-feira (24) sobre a criação do Conselho da Amazônia e as ações previstas para a proteção de terras indígenas, e afirmou que “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”. (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/21/bolsonaro-anuncia-criacao-de-conselho-da-amazonia-e-de-forca-nacional-ambiental.ghtml)

         Não é por acaso que as políticas de acumulação nesse momento, nos nossos países, favorecem o avanço do capital sobre terras e territórios desses povos, desqualificam seus usos e tradições, seu modo de produzir e de reproduzir a sua existência social, a despeito do sistema protetivo de nossas Constituições e dos princípios e diretrizes da Convenção 169 (OIT), esta celebrada neste evento ao ensejo, no marco de seu trigésimo aniversário.

         No Brasil, portanto, as lutas indígenas foram marcadas e ainda são, para alcançar esse reconhecimento, simbolicamente estabelecido na Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988, atualmente alvo claramente definido a ser hostilizado pela estratégia dos que consumaram o Golpe de 2016, para afastar a Presidência e o projeto democrático-popular que ela conduzia, sucedendo o Presidente Lula, também afastado numa discutível ação judicial agora desmascarada. Por força das mobilizações organizadas dos povos originários e tradicionais, indígenas e quilombolas, a Constituição reconheceu a sua titularidade jurídica autônoma e não mais tutelada e seus direitos cogentes, tal como também estabelece o Convenção 169.

         Na base desse reconhecimento, embora com limites no que toca à compreensão do direito que se deva aplicar, e que encontra no positivismo jurídico um duplo obstáculo, o primeiro, já posto em relevo pelo antigo presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos Antônio Augusto Cançado Trindade, que vê no direito positivo a maior dificuldade para internalização nos sistemas de direito nacionais das determinações em sede de direitos humanos dos tratados e das convenções nesse tema, tendentes a legitimar expectativas de pluri-nacionalidade; a segunda, pela resistência política e teórica de assimilar as determinantes normativas, outros modos de compreender o direito, assim aqueles derivados das concepções do pluralismo jurídico, tão decididamente operado nos procedimentos epistemológicos e pedagógicos promovidos pelo IIDS – Instituto Derecho y Sociedad, de Lima, Perú, e aplicados no curso que recentemente promoveu e nos debates a seguir referidos, conforme anotamos Renata Carolina Corrêa Vieira e eu (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/594845-do-peru-profundo-os-povos-indigenas-trazem-de-suas-lutas-pelo-bem-viver-uma-proposta-de-pacto-para-renaturalizar-os-direitos-humanos).

         Faço aqui em sentido de contribuição, mais uma anotação de referência aos repositórios de trabalhos orientados desde a perspectiva de O Direito Achado na Rua, para anotar um caminho complementar. Refiro-me ao Observatório da Constituição e da Democracia, um periódico produzido na Faculdade de Direito da UnB (para localização: http://estadodedireito.com.br/21528-2/ ), em especial n. 11, abril de 2007, totalmente dedicado à questão indígena, relevo para o texto de Edilson Baniwa, sobre o Abril Indígena Mobilização Acampamento “Terra Livre” (Yayumuatiri yakuntari arama yané ruixá irunu), aludindo ao Fórum em defesa de Direitos Indígenas (p. 23). Também ao n. 24, de julho de 2008, com o tema central Raposa Serra do Sol: demarcação em perigo, e destaque para os artigos de Ela Wieko V. de Castilho – O Estado Brasileiro e o racismo contra os povos indígenas (p. 04-05) – pondo em relevo a repercussão do racismo institucional no sistema judicial, para ela, “espaço no qual por princípio se distribui justiça, e que poderia ser o lócus da restauração, [mas que] reproduz e reforça a injustiça [porque] sua organização, que não contempla a presença indígena, e as regras processuais, que não valorizam especificidades culturais, boicotam de forma silente e eficaz, as possibilidades de se fazerem valer os direitos políticos, econômicos, sociais e culturais dos povos indígenas”.

         O trabalho de Judite Guajajara carrega a autenticidade, um lugar de fala carregado de sua experiência de mulher indígena, de advogada, de pesquisadora, apto, portanto a estabelecer, “uma confluência com a politização de um tema ainda obscurecido, mas muito caro à realidade indígena”, vale dizer, a sua própria realidade.

Para efeito de resenha e de indicação para o mergulho na obra, transcrevo o sumário da Dissertação:

Introdução…………………………………………………………………………………………………………………08

Capítulo 1………………………………………………………………………………………………………………….13

Transição de Paradigmas e a Diversidade de Sujeitos……………………………………………………..14

1.1 Base normativa indígena na ordem jurídica pluriétnica ……………………………………………..15

1.2 Rupturas conceituais e paradoxos insustentáveis……………………………………………………….21

1.3 Reconhecimento constitucional e a repolitização do movimento indígena no Brasil: mulheres indígenas como sujeitos coletivos de direito…………………………………………………….25

Capítulo 2………………………………………………………………………………………………………………….37

Releitura do Referencial Penal Normativo: Aspectos Étnicos e de Gênero ………………………37

2.1 Legislação Penal Específica……………………………………………………………………………………38

2.2 A política restritiva e os limites paradigmáticos de execução de direitos………………………46

2.3 O silenciamento das mulheres indígenas: repensando a universalidade………………………..50

Capítulo 3………………………………………………………………………………………………………………….66

Subapresenção da População Carcerária Indígena: Prender e Descaracterizar para Civilizar..66

3.1 Traçando uma perspectiva inicial: prisão e mulheres indígenas…………………………………..70

3.1.1 Cadeia Pública Feminina de Boa Vista – Roraima…………………………………………………..74

3.2 Instrumentalização política do tratamento jurídico-penal……………………………………………87

3.3 A descaracterização na invisibilidade ……………………………………………………………………..94

Considerações Finais…………………………………………………………………………………………………..99 Referências………………………………………………………………………………………………………………103

         Nas suas conclusões a Autora alude ao panorama de supressão da diversidade indígena que ainda universaliza suas singularidades, limitando a abertura constitucional direcionada às mulheres indígenas como tema insurgente. Por isso que diz ela, “ as formas de organização das comunidades indígenas não admitem a subdimensão dos impactos coletivos de pretensas ações individualizadas. Assim como não se rende à hegemonia a diversidade dos povos originários que coexistem no território brasileiro, também não o são suas especificidades. Esse entendimento firmado politicamente pelos povos indígenas se revelam a insubordinação das mulheres indígenas de terem que optar entre sua identidade de gênero ou sua identidade étnica. Nesse sentido, dar condições de incorporação da perspectiva de etnia e gênero é proposta de superação de silenciamento e subalternização derivadas de sua intersecção”.

         Trata-se, assim, ela prossegue, “da necessidade que reside na imprescindibilidade de que a incorporação da perspectiva de gênero na seara legal indígena e a incorporação da perspectiva de etnia na seara de gênero se complementem e não se substituam. Utilizar categorias analíticas para transcender fronteiras e realizar a transversalização do debate indígena, sob suas diversas facetas, como campo de construção e incidência, é indispensável definir lentes mais próximas à realidade para a leitura de um país diverso e plural. A ótica da diversidade como fronteira deve ser superada no intuito de alçar uma concordância pela superação constructos que reproduzem desigualdades”.

         A sua conclusão é a de que “a vivência das mulheres indígenas que são julgadas e encarceradas revela que a utilização de parâmetros constituídos em ideologias retrógradas configura o lapso entre o que se reconhece, o que se propõe e o que se executa. O tratamento dispensado a elas se finca nas ausências estruturadas, e pelas inseguranças do abandono jurídico e social que as persegue como silenciamento. Para além de um tratamento desigual, os indígenas criminalizados sofrem a marginalização fundamentada e direcionada pela subordinação que se que los a partir do viés político. A ausência constituída é fixante de pretensões e limita a possibilidade de uma análise mais profunda dessa parcela da população carcerária, desconsiderando as diferenças em um patamar discursivo não limitado à constante adequações que alocam o sujeito indígena na submissão étnica. O direito penal tem se colocado como reprodutor de estereótipos à medida que se confunde com tratamentos e conceitos ultrajantes do Estatuto do Índio, reproduzindo a descaracterização que relativiza os valores inerentes às sociedades indígenas. É impensável que o sistema penal não só desconsidere a base constitucional fundamental do Brasil, como se coloca a serviço de homogeneizar, ou mesmo, fazer uma limpeza étnica da pluralidade carcerária. Os paradigmas constituídos nacional e internacionalmente requerem uma ressignificação dos padrões adotados para tratar da pessoa indígena que ingressa no sistema penal. E a incidência política dos povos é imprescindível para a construção de um cenário que considere suas realidade e especificidades, onde a eficácia das normas é em parte condicionada à consideração do direito indígena. Caso contrário, o direito constituído e padronizado por um Estado que viola garantias básicas da população indígena, se configura na instrumentalização da constante luta por descaracterizar a identidade indígena desse país. Se mostrando a serviço de um Estado que continuamente se estrutura em oposição aos povos e/ou coletividades que de algum modo representem óbice à concretização da usurpação econômica, ainda que para que isto povos sejam dizimados ao amoldados”.

         A questão que fica, e que pode ser dirigida à Autora portanto, porque de certo modo tangenciada na dissertação, é a de como proceder o salto que a História impulsiona, a partir dos processos de luta e de reconhecimento, para que se forje uma consciência de direitos que abra a política para esse reconhecimento e para a transformação emancipatória da sociedade.

         Ela remete a dois planos de possibilidades. Um plano é o da impermeabilidade institucional para compreender, política e culturalmente, inclusive no âmbito do Direito, as aberturas críticas que levem a “reverter as práticas atuais de não reconhecimento” e a necessidade “de reconstrução das legislações infraconstitucionais brasileiras a despeito tanto de se adequarem à constituição, quanto de absorver a concreta participação indígena nos processos que lhe dizem respeito” (p. 43).

         O outro plano é o da disponibilidade de conceitos e de artefatos que logrem estrategicamente aproximar as agendas de lutas para abrir os estandares internacionais que representem as demandas indígenas no rol alargado de direitos humanos e, por esse estalão, isto é, pela expansão criativa desses estandares, em sede de direitos internacionais, reconfigurar “dentro desse contexto contornos que se identifiquem” com a realidade que aproxime o campo jurídico “do que os indígenas a determinam como essencial aos seus processos de existência” (p. 20).

         Um Pós-Escrito à Dissertação, Após o Debate com a Banca

         por Maria Judite da Silva Ballerio Guajajara (Kari)

         A universidade é espaço de reafirmação e de considerar quem sou, uma pesquisadora indígena, na composição dos processos de produção de conhecimento, com a responsabilidade de abordar temas percebidos na vivência comunitária, para retrabalhar a perspectiva indígena do país a partir de um olhar próprio. E dentre a diversidade de pautas que se mostram imediatas, optar pelo problema que é a utilização do recorte de gênero e etnia a serviço da perpetuação de hierarquias oriundas das relações de dominação de matriz colonial, perpassa pela urgência silenciada.

         Mesmo para uma mulher indígena, decidir por esse recorte analítico no processo de pesquisa é sempre provocador, pois o quê inicialmente pode aparentar ser a simples tarefa de reproduzir experiências de modo organizado (científico/acadêmico), na verdade, revela um conjunto de reflexões muito mais amplas do que uma curadoria pessoal possa sugerir. É o desafio de trazer os povos indígenas para a construção da sociedade, compreendendo que a academia é parte disso.

         Bem como é espaço de encontro com outro e, consequentemente, de percepção do fazer comunicar através do convite para pontos de interlocução. Constroem-se caminhos editados pela participação de juízos, culminando com as bancas de avaliação, onde a diversidade de outros é inserida no processo, compreendendo como seus construtos vêm o que apresentamos num compartilhamento de existências.

         Da banca compreendi que o direito da aldeia, perdido na cadeia, é reencontrado na academia. E este texto é convite para encontro de saberes, um desafio colocado para amenizar os abismos entre dois mundos, o diálogo entre o homem branco referência para o direito dos que lutam por justiça, e o da mulher indígena que busca romper com uma colonização que silencia a diversidade de vozes no processo histórico.

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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