Mudanças Climáticas e Direitos da Natureza: o futuro é ancestral?

Foto do arquivo pessoal de Jéssica Fachin

As mudanças climáticas têm levado pessoas a se deslocarem pelo mundo, a permitir que hoje se verifique migrações ambientais e se fale em refúgio ambiental, embora a ACNUR não recomende tal terminologia e sim deslocados internos em razão das mudanças climáticas.

O fato é que os descolamentos por mudanças climáticas superam em números os deslocamentos por conflitos violentos e guerras. Dados divulgados pelo Centro de Monitoramento de Descolamentos Internos (IDMC) indicam que, em 2023, 46,9 milhões de pessoas se descolaram internamente, sendo 56,2% por desastres naturais e 43,8% por conflitos armados e violência [1].

No Brasil, dados também referentes ao ano de 2023 apontam que 745 mil pessoas deixaram suas casas por desastres naturais. Um estudo técnico desenvolvido pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) revelou que dos 5.570 municípios existentes no Brasil, 5.199 registraram algum desastre ambiental entre os anos de 2013 a 2022. São cerca de 2 milhões de moradias danificadas ou destruídas, representando prejuízos de R$26 bilhões [2].

Ademais dos deslocamentos, as mudanças climáticas impõem um custo social elevado a ser suportado pela população, como o aumento do preço de alimentos, a sobrecarga no sistema de saúde e agravamento da pobreza extrema (o Banco Mundial estima que os choques climáticos poderão empurrar de 800 mil a 3 milhões de brasileiros e brasileiras para a extrema pobreza já em 2030 [3]).

Recentemente, o Rio Grande do Sul viveu uma tragédia ambiental histórica. Estima-se que 171 pessoas tenham perdido a vida e mais de 2,3 milhões tenham sido, direta ou indiretamente, afetados pela enchente. É possível afirmar que tal tragédia foi resultado de uma soma de fatores. Aponta-se fatores ambientais circunstanciais (corrente intensa de vento na região somado a um corredor de umidade vindo da Amazônia, aumentando a força da chuva) e fatores ambientais decorrentes das mudanças climáticas como uma grande onda de calor, perfazendo um bloqueio atmosférico, deixando seco o centro do país e com chuvas no sul, ademais de omissão dos poderes públicos em traçar estratégias de proteção ambiental e contenção de danos advindos dessas mudanças climáticas que se vislumbram.

Tais circunstâncias, em especial as extremas, nos conduzem a pensar e repensar abordagens éticas e estatutos jurídicos de proteção ao meio ambiente. Parece evidente que uma abordagem ética antropocêntrica nos conduzirá a ruínas, nos empurrando para o planeta B, que não existe.

Nesse sentido, o constitucionalismo latino-americano tem legado importantes avanços na proteção do meio ambiente, em especial, reconhecendo direitos à natureza, prevendo princípios de respeito e proteção ambiental à Mãe Natureza ou à Pacha Mama, que passa a ser considerada sujeito de direito.

O Equador foi o primeiro país no mundo a incluir os chamados direitos de natureza em um documento constitucional. A Constituição equatoriana (2008) prevê que a Pacha Mama tem o direito de ter respeitada, integralmente, sua existência e ciclos vitais, funções e processos evolutivos (art. 71), além do direito à restauração (art. 72).

A Constituição boliviana (2009) fez menção à Pachamama no preâmbulo e trouxe extenso conteúdo relativo à proteção do meio ambiente, ademais da previsão de um Tribunal Agroambiental (art. 186). E, em 2010, a Bolívia promulgou a Lei de Derechos de la Madre Tierra (Ley nº 071), cujo objetivo é reconhecer os direitos da Madre Tierra e obrigações e deveres ao Estado e à sociedade para garantir o respeito a esses direitos.

Em 2017, a Nova Zelândia reconheceu direitos ao rio Whanganui, considerado sagrado aos povos indígenas e, também, no mesmo ano, a Suprema Corte da Índia reconheceu direitos ao rio Ganges e Yamuna, de significativa importância espiritual aos indianos. Ainda, no mesmo ano, a Corte Superior de Justicia de Loreto, no Peru, reconheceu o rio Marañón como sujeito de direitos, conferindo o direito de fluir, existir e permanecer livre de contaminação.

Importante registrar que nos movimentos sul-americanos e da Nova Zelândia tais previsões e abordagens ambientais são resultados de reivindicações e acordos entre o governo e povos indígenas. Estes, de um modo geral, compreendem a relação do ser humano com a natureza de modo integral, sendo ele parte do todo, sem ideia de superioridade, mas de integração. Grande parte dos povos indígenas se relacionam com a natureza em tom de reverência, em uma relação de extremo respeito, espiritual e ritualística.

Tais previsões constitucionais, legislativas e compreensões dos tribunais representam uma virada ética e jurídica da consideração e proteção do meio ambiente. O que se verifica nesses movimentos é a superação do chamado antropocentrismo pelo ecocentrismo.

Em síntese, no antropocentrismo o ser humano figura na centralidade do direito e da ética, estando o meio ambiente, como meio, a servi-lo. Trata-se de tradição clássica liberal a considerar o ser humano como ser superior, em especial, a partir da sua racionalidade. No entanto, importa destacar que já no século XVIII, David Hume e Jeremy Bentham trouxeram importantes questões éticas sobre todos os seres vivos na Terra, descolando a moralidade calcada na racionalidade para o sentimento. Porém, é no século XX, com os movimentos ecologistas, que a abordagem antropocêntrica sofre, de fato, moderação.

Tais movimentos anteriormente apontados rompem com o antropocentrismo, situando-se no que se denomina de ecocentrismo, abordagem que considera que o ecossistema tem um valor intrínseco em si, numa abordagem holística. É dizer, não se protege o meio ambiente para preservar o ser humano ou para permitir uma vida mais amena na Terra, o faz porque ele tem um valor em si mesmo e sua proteção se justifica para além dos interesses humanos individuais.

No Brasil, pode-se afirmar que, predominantemente, se adere ao viés antropocêntrico, seja, em grande medida, pelo artigo 225 da Constituição brasileira de 1988 e também pela atuação do Poder Judiciário. No entanto, é possível extrair do próprio dispositivo (art. 225, §1o, VII) e também de decisões dos Tribunais o que se chama de biocentrismo, que contrasta com a visão antropocêntrica. Uma abordagem biocêntrica valoriza todas as formas de vida. Consubstancia uma teoria ética de respeito à vida não humana, principalmente aos seres sencientes, e considera a interdependência entre os entes da natureza.

Foi a partir de tal viés, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a “Farra do Boi”, em 1997, (RE 15353), a “Briga do Galo”, em 2007, (ADIs 2514, 3776 e 1856), entendeu inconstitucional a “Vaquejada” (ADI 4983), em 2016, e, recentemente, em 2020, validou norma estadual do Amazonas que proibia a utilização de animais para testes de cosméticos (ADI 5996), bem como, em 2021, proibiu a prática de abate de animais silvestres, domésticos, nativos ou exóticos apreendidos em situação de maus tratos (ADPF 640).

Nessas decisões entendeu-se que os animais eram submetidos a tratamento de violência e crueldade desnecessários, de modo a violar o art. 225, §1o, inciso VII da Constituição federal. Tratam-se de adesão a uma ética biocêntrica, por proibir crueldade a animais, independente da demonstração objetiva de sofrimento, dando valor às suas vidas. É nesse sentido que também se situa a Resolução 1.236 de 2018, do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CRMV), ao definir crueldade como qualquer ato intencional que provoque dor ou sofrimento desnecessários nos animais, bem como intencionalmente impetrar maus tratos continuamente aos animais; (art. 2o, inciso III).

Pode-se apontar também que a visão biocêntrica encontra amparo normativo na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei. nº 6.938 de 1981).

Nesse sentido, registra-se que em 2018, em Pernambuco, na cidade de Bonito, a lei orgânica do município reconheceu direitos da natureza: O Município reconhece o direito da natureza de existir, prosperar e evoluir, e deverá atuar no sentido de assegurar a todos os membros da comunidade natural, humanos e não humanos, no Município de Bonito (…)(art. 236). Foi a primeira legislação do país a conter tal previsão, de caráter ecocêntrico. Pouco tempo depois, outras cidades aderiram a disposições normativas semelhantes, como é o caso de Paudalho (PE), Florianópolis (SC), Serro (MG) e, recentemente, em 2023, Guajará-Mirin (RO), que conferiu direitos ao rio Laje.

Com isso, é possível verificar que a perspectiva ética do ecocentrismo tem ganhado espaço na vida brasileira, ainda que timidamente. Todos esses movimentos, seja na América do Sul, Nova Zelândia ou no Brasil, advêm de diálogos e inciativas vinculadas aos povos indígenas. A oportunidade de um futuro ecologicamente sustentável na Terra está conectada a conhecimentos e abordagens éticas das culturas ancestrais, que já não cabe à tradição antropocêntrica. É preciso fazer uma virada ética de abordagem das questões ambientais, acolhendo as cosmovisões do passado. Talvez é o que nos indique dizer que o “futuro é ancestral”. [4].

 

[1] IDMC. Global Report on Internal Displacement. 2024. Disponível em: https://api.internal-displacement.org/sites/default/files/publications/documents/IDMC-GRID-2024-Global-Report-on-Internal-Displacement.pdf. Acesso em 01 de julho de 2024.

[2] CMN. Estudo Técnico: Desastres obrigam mais de 4,2 milhões de pessoas que foram negligenciadas pelas políticas públicas a buscarem alternativas de moradia nos últimos dez anos. Brasília, 26 de julho de 2023. Disponível em: https://cnm.org.br/storage/noticias/2023/Links/27072023_Estudo_Habita%C3%A7%C3%A3o_Desastre_revisado_area_publica%C3%A7%C3%A3o.pdf . Acesso em: 01 de julho de 2024.

[3] World Bank Group. 2023. Brazil Country Climate and Development Report. CCDR Series. © World Bank Group, Washington DC. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/server/api/core/bitstreams/af026935-5f2d-4edd-b19e-d8fb66f6e9da/content. Acesso em 01 de julho de 2024.

 [4] Referência à obra de KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo, Companhia das Letras, 2022.

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Jessica Fachin

Em Estágio Pós-Doutoral (UnB). Doutora em Direito Constitucional (PUCSP). Mestre em Ciência Jurídica (UENP). Graduada em Direito (PUCPR) e Licenciada em Letras (UEL). Professora Substituta na Universidade de Brasília (UnB) e professora Permanente no Programa de Mestrado em "Direito, Sociedade e Tecnologias" das Faculdades Londrina. Membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Advogada.

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