“MEUS AMIGOS BRASILEIROS ME QUEIMARAM”: o que o testemunho do senegalês queimado diz sobre o racismo à brasileira

Você acorda às vezes com vontade de botar fogo na sua melhor amiga?

Um amigo distante tem certas atitudes que lhe despertam o desejo de queimá-lo vivo?

Creio que não. Por mais incongruente que sejam as relações humanas, em especial aquelas de maior cumplicidade, desejar o assassínio do amigo é algo pouco comum. Uma expressão facial fechada, um “puxão de orelha” e quem sabe algumas palavras autoritárias dirão, talvez, de um desejo de proteção a alguém por quem temos afeto e gostamos de compartilhar a vida.  Agamben (2014) diz que reconhecer alguém como um amigo significa não poder reconhecê-lo como “algo”:

                            Não se pode dizer “amigo” como se diz “branco”, “italiano” ou “quente” – a amizade não é uma propriedade ou qualidade do sujeito (p.62).

A amizade é antes de tudo a cerimônia da liberdade (de escolhas que coincidem, de afetos desinteressados, da vida sem máscaras), enquanto que a violência é a fogueira trágica da liberdade, quando o desejo de subjugar o outro, elimina suas possibilidades de escolha. A violência reduz o outro a um “algo”, que por isso é não-humano. Bem diferente do amigo que, segundo o cantor Milton Nascimento, se guarda no “lado esquerdo do peito”, junto ao coração.

Debater sobre a noção de amizade e violência se faz necessário diante da frase poderosa que dá título a esse texto. Ela foi dita por Cheik Oumar Diba, 25 anos, imigrante do Senegal que dormia nas ruas de Santa Maria (Rio Grande do Sul), quando teve seus pertences roubados e o corpo incendiado[1]. Mesmo muito machucado, ele não buscou ajuda médica ou policial, apenas dirigiu-se até uma padaria e pediu um pouco de comida. A violência só foi descoberta porque seus gemidos de dor chamaram a atenção das atendentes. Seu testemunho deixa um questionamento principal:

                       O que fez o jovem senegalês definir os moradores de uma terra estranha (capazes de queimá-lo), como seus amigos?

 Cheik tem pouco conhecimento da língua portuguesa e isso pode ter contribuído, mas provável que ele e seus companheiros tenham sido bem recebidos  na terra brasilis: a imagem popular é de que o brasileiro é um povo receptivo, festivo e acostumado ao convívio inter-racial (devido a fluxos migratórios de europeus e africanos do passado). Com base nesse cenário, não faria sentido receber os atuais imigrantes como na Hungria, onde recentemente uma jornalista derrubou ao chão um homem sírio que tentava cruzar a fronteira[2].

Uma olhada rápida nas estatísticas socioeconômicas do Brasil, no entanto,  pode desestabilizar a ideia de cordialidade  inter-racial. Os negros representam 50,7%[3] da população brasileira, mas esse dado se desequilibra conforme os polos de inclusão e exclusão. Cerca de 70% dos 56.000 homicídios realizados em 2012 vitimaram pessoas negras. Entre os desempregados, 76% são negros e só 24% brancos. Já no ensino universitário, os negros representam apenas 37% dos estudantes[4]. Dados que permitem ressignificar os “braços abertos” aos imigrantes africanos como a espuma da onda de um oceano de preconceito, que se expressa de forma diferente no Brasil: o racismo cordial (Lima, M, Vala, J. 2004).

Uma primeira característica do racismo cordial é seu não reconhecimento. Isto é, ele se dissemina justamente porque acreditamos que vivemos em uma sociedade multirracial (e não bi-racial como nos Estados Unidos), onde a ampla miscigenação teria apagado as diferenças de tratamento por cor. Essa explicação empurra o debate sobre a desigualdade para as causas sociais, estabelecendo o combate à pobreza como solução aos nossos problemas. Já a maior presença negra entre os marginalizados é explicada no campo da meritocracia: “Nem todo negro é ladrão. Logo, se está preso ou morreu cedo é por que não se esforçou[5].”(SIC). Esquece-se que no Brasil, o racismo não se dá exclusivamente pela cor de pele, mas sim pelo fenótipo negro. Quanto mais traços negróides uma pessoa tiver, como cabelo crespo, boca carnuda, nariz largo e até estilo de se vestir associados à cultura negra, mais chances de ser personagem de piadas, abordagens policiais e rejeição em espaços de poder.

Mas o que o racismo atualiza? Segundo Foucault, ele seria o entendimento do outro como uma vida menos qualificada, inferior biológica e culturalmente. Em sociedades Modernas, é um dos principais recursos de regulação populacional, na lógica de que “para que a população produtiva possa sobreviver, é necessário que os menos desenvolvidos sucumbam.” (p.23, 1999). Agamben (2014) vai ainda mais longe, dizendo que nossas sociedades identificam indivíduos, grupos e povos inteiros – como o caso dos judeus no Holocausto – como sujeitos sacrificáveis, aceitando que se produza sua morte.

Os novos fluxos migratórios, que envolvem principalmente povos africanos e árabes, demonstram o estado de exceção de direitos vivido por povos inteiros, a partir de um racismo globalizado, cuja exploração os colocou na condição de vidas menos importantes. Se Cheik tivesse sido apenas assaltado, teríamos um ato criminoso que infelizmente faz parte do cotidiano de todos os brasileiros. O ato de queimá-lo vivo é o excesso, é aquilo que vai para além da violência. É o desejo de reduzir a cinzas a imagem de uma cultura, de uma língua, de uma cor que qualifica o jovem como um “algo”, um não-humano como sugere Agamben.

Violências como as sofrida por Cheik, reproduzem-se diariamente nas periferias do país, quando jovens negros são considerados matáveis por seu fenótipo e/ou passado criminal. A reação do jovem senegalês que,  ao invés de buscar seus direitos, foi ao balcão da padaria é a metáfora de milhares de famílias negras do Brasil que não sabem o que fazer quando perdem seus filhos assassinados. Vivendo em um estado de exceção de direitos acabam, por fim, pedindo apenas comida. Faz-se necessário que retiremos o véu da cordialidade inter-racial, dando condições igualitárias para que todos possam entender o tabuleiro de nosso país. Só assim, fogueiras humanas serão fatos de um passado medieval. Só assim, o prato de comida não será mais o instrumento de resolução de conflitos políticos.

Fernanda Bassani

Psicóloga

Doutoranda em Psicologia Social e Institucional –UFRGS

Email: febassani@hotmail.com

AGAMBEN, Giorgio. O amigo e o que é um dispositivo? Chapecó, Santa Catarina: Ed. Argos, 2014.

_______________.Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

FOUCAULT, m. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Ed Martins Fontes: 1999.

LIMA, Marcos E. VALA, Jorge. As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia, 2004. http://www.scielo.br/pdf/epsic/v9n3/a02v09n3.pdf

[1] O fato ocorreu no dia 13/09/15. http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/09/meus-amigos-brasileiros-me-queimaram-disse-senegales-atacado-em-santa-maria-4846732.html

[2] O fato ocorreu em 08/09/2015 e mostra uma jornalista dando uma rasteira e chutando um imigrante sírio que carregava o filho ao colo.

[3] Censo populacional IBGE, 2010.

[4]Waiszelfiz, J. Mapa da Violência 2014. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2013.

[5] Frase comumente ouvida nos debates nas redes sociais, palestras, tanto do lado das classes mais favorecidas como na boca das pessoas de classes sociais mais baixas.

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