Memórias de uma formação acadêmica jurídica

Jalusa Lima Biasi Galant[1]

RESUMO: O presente estudo de caso abordará os tensionamentos  e dificuldades encontrados pela autora durante a sua vida acadêmica no curso de Direito na Universidade Federal de Santa Maria no período de 1997 a 2003. Através da sua memória pedagógica e pela identificação de alguns dos papéis assumidos  naquele espaço, a autora buscou amparo no pensamento de Paulo Freire para por fim concluir que não encontrou sentido na formação acadêmica individualista tendo que fazer um novo caminho ao ingressar no Mestrado em Gestão Educacional.

MEMÓRIAS,FORMAÇÃO, ACADÊMICA, JURÍDICA.

[1] Advogada, Mestra em Gestão Educacional pela Unisinos

Formação jurídica:

Em 1997 vi-me acadêmica de Direito, depois de tamanho esforço para ingressar em uma faculdade federal. Lembro-me de que no primeiro semestre tive uma cadeira de Ciências Políticas, onde o professor separou a turma em dois grupos. Um grupo defenderia os assassinos do índio Galdino[1] o outro acusaria. Foi empolgante, era contextual, era real. Pena que foram poucos os momentos assim no curso de seis anos. Durante a faculdade o ensino em regra era tradicional e nós alunos éramos máquinas de reproduzir o saber dos professores. Fui buscando sentido no grupo, na turma da sala de aula, no diretório acadêmico. Eu era feliz quando me via um sujeito através do meu posicionamento político. Lembro-me de descer as escadas na antiga Reitoria, colocando malas para dizer que Greve não eram férias e que os alunos deveriam manifestar-se em relação aos salários dos professores e demais corpo de servidores da Universidade. Também em outra vez, no Diretório Central de Estudantes, em uma reunião minha fala foi interrompida por um rapaz com o boné do MST, de repente ele começou a gritar palavras de ordem. Naquele momento entrava na sala um repórter de uma emissora de televisão e ali eu entendi que nem sempre as falas são sem interesse.

Os princípios éticos ditados em aula não encontravam guarida em algumas práticas de colegas. Como no caso emblemático em que eu e uma colega encontramos uma considerável quantia de dólares dentro de um livro doado por uma viúva de um reconhecido advogado da cidade. Imediatamente eu e ela fomos buscar informações sobre o contato telefônico daquela família para devolvermos o valor. Foi quando dois “veteranos” nos chamaram para “racharmos” o valor. Não aceitamos e entregamos o valor para a viúva. Em maio de 2013 esses dois “veteranos” constavam na lista de condenados na operação Rodin.[2]

E assim o mundo acontecia a partir do corredor, nos movimentos sociais e a sala de aula era um universo a parte, alienada com suas disputas de notas publicadas no mural. Não havia a internet como hoje, muito menos as redes sociais e naquela época vivíamos a entrada do governo FHC, com as privatizações. A fotografia da Universidade federal era feia, classes caindo aos pedaços e com cortinas rasgadas. No início do meu curso, os professores eram ou quase aposentados ou profissionais do mercado com contratos emergenciais. No decorrer do curso tivemos casos clássicos de professores “quebrando” galho em matérias que não eram deles. Mas, nas provas eram apresentadas questões muito mais complexas que a didática da sala de aula apresentava. Mas era “cultural”, ou seja, ninguém reclamava dessa diferença, pois, aluno de federal entrava “preparado”, os professores tinham alunos “prontos”. Havia uma “cultura do silêncio” e ousar dizer ao contrário seria um atestado de burrice. “(…) A desigualdade é considerada como natural, justa, e até conquistada, dadas as diferentes “aptidões” e os “resultados” dos diversos grupos”.(FREIRE e SHOR,1986, p.149).

Esse contexto corroborou com a minha insatisfação com o modelo de ensino tradicional e a construção desta minha reflexão acima foi um caminho que me fez ver que no meu período acadêmico, além de eu não ter as ferramentas para me posicionar em relação aos papéis dos sujeitos presentes em sala de aula e suas responsabilidades no processo de ensino aprendizagem, aquele ensino tradicional não fazia, muitas vezes, sentido para mim. Entretanto, eu aceitei aquele ensino autoritário e não consegui fazer a ruptura com o modelo que eu criticava. Tendo em vista que por mais que esperasse deles um ensino ou um método que eu julgava “ideal” eu permaneci como uma aluna cumpridora da expectativa de “reprodutora” do conteúdo “dado” por aquele professor.

A pedagogia oficial os constrói como personagens passivos-agressivos. Depois de anos de aulas em aulas de transferência de conhecimento, em cursos maçantes, recheados com soníferas falas professorais, muitos se tornaram não participantes, esperando que o professor imponha as regras e comece a narrar o que ele deverá memorizar. (FREIRE E SHOR,1986, p.148).

Hoje identifico que alternava momentos de passividade com manifestações “emancipatórias”. Como exemplos destas cito o fato de eu não usar cadernos com disciplinas, anotando só o que chamava a minha atenção, bem como a minha participação efetiva no Diretório Acadêmico, propondo debates sobre temas “reais” foram a forma de me rebelar contra aquele ensino tradicional e reproducionista.

Educação opressora:

Lembro-me perfeitamente de que em uma aula, onde o professor lia o Código de processo Civil e eu bocejei com um volume acima do normal. A aula inteira olhou para mim com olhares de espanto e “pena” quando o professor imediatamente parou a leitura. Fez-se silêncio e eu perguntei a ele se ele havia parado a aula por causa minha do que ele disse sim. Envergonhada, pedi licença e retirei-me da sala. Posteriormente pedi um caderno de uma colega e o reproduzi no “xerox” e decorei tudo para prova alcançando a segunda melhor nota. Inobstante eu ter sido equivocada na forma que demonstrei que aquela aula estava monótona, mesmo vários colegas me dizendo que também achavam aquela aula “um sonífero”, fui “culpada” por alguns colegas porque em função da minha manifestação o professor “dificultou” nas questões.

A agressão é inevitável, porque a passividade não é uma condição natural da infância ou da maturidade. Existe uma violência simbólica na escola e na sociedade, que impõem o silêncio aos alunos. Simbólica, por se a própria ordem das coisas, e não um castigo físico de fato: um meio ambiente pleno de regras, currículos, testes, punições, requisitos, correções, recuperações (…).(FREIRE e SHOR,1986, p.149).

 Esse tipo de violência guarda relação aos modelos autoritários de poder. O professor é “o dono” daquele espaço. Ninguém poderá ousar ir contra a sua forma de “ditar” o conteúdo. Durante o meu curso de Direito não havia espaços para problematizar e isso tem relação também com o “perigo” de uma formação humana. Um ensino “real” e dialógico  poderia “descortinar” que o professor aprendia junto com o aluno. Ele desceria do Olimpo, seria um ser-humano.

O silêncio imposto em sala de aula não impediu a minha busca do sentido fora dela. Sem conhecer Paulo Freire, comungava com o seu pensamento de que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”.(FREIRE,2014,p.96).

Um dia propus ao nosso grupo do Diretório Acadêmico, um projeto que denominei DIREITO NA ESCOLA. Eu havia tido contato com um vídeo da Pastoral da Criança, onde nele eram descritas situações de violência doméstica e violência contra menores. O projeto consistia irmos ás escolas estaduais do ensino médio (na época de segundo grau) e divulgaríamos aquele conteúdo e propondo aos professores que houvesse uma semana de conscientização sobre aqueles temas. Pedimos ajuda a dois professores para auxiliar-nos na metodologia. Fui á Coordenadoria da Secretaria de Educação do Estado em Santa Maria solicitar um apoio, a qual nos auxiliou com ofícios para as Diretoras no sentido de nos receberem. Publicamos o projeto nos murais e dividimos os voluntários em duplas por escolas. No início havia lista de espera, mas como dava muito trabalho e não havia remuneração em dois meses ficamos em 4 pessoas para dar contado cronograma de escolas. Era difícil concorrer o calendário de provas e com os estágios no “Fórum”, onde os colegas poderiam ganhar bolsas e passagens.

Um pouco depois, o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) abriu edital para um projeto chamado ATENDIMENTO AO PÚBLICO. Era um programa de bolsas para acadêmicos para atuarmos no atendimento ao público em áreas do hospital. Eu acabei selecionada para a secretaria do bloco cirúrgico. Lá, além de comprar almoço para os médicos, preenchia algumas planilhas de horários de atendimento. Percebia a injustiça com os que não tinham tempo para aguardar as datas de cirurgias o que fazia com que alguns  nomes “sumissem” dos horários. Enxergava também, os horários de intervalos dos médicos serem sugados pela superlotação de pacientes e falta de ética de alguns que mesmo concursados com 40 horas deixavam de vir atender porque ganhavam mais no consultório particular. Que bela oportunidade de levar esses temas para a sala de aula, já que na minha turma éramos uns 20 alunos trabalhando no Hospital. Mas ninguém iria atrever-se a atrapalhar o conteúdo do professor, pois senão ele não o venceria antes da prova por “culpa” de nossas problematizações.

As legislações “caiam” de paraquedas, descoladas do seu sentido histórico e político. O bem comum era uma frase a ser decorada como resposta na disciplina de direito administrativo.Nossas aulas eram sempre silenciosas, afora em momentos de combinações de festas. Naqueles momentos de confraternização nos despíamos de nossos papéis de cumpridores da “educação bancária” e não precisávamos esconder nossas insatisfações com a falta de didática e a inexistência de um ensino dialógico junto á maioria de nossos professores. Mas, na segunda-feira, tudo voltava ao “normal” e ninguém se atreveria em contestar os professores.

Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade. (FREIRE, 2014,p.97).

Essa anestesia também fez com que houvesse uma “corrida” rumo ao concurso público ao ponto de nossa turma se desmembrar. Regularmente iríamos concluir nosso curso no segundo semestre de 2003. Uns 20 colegas conseguiram adiantar uma disciplina em outra cidade, viajaram horas de Santa Maria á São Gabriel, investiram dinheiro pagando pela disciplina.  Todo nosso trabalho coletivo de juntar recursos para a nossa formatura esvaziou-se no discurso: preciso ganhar tempo para passar logo em um concurso. Não recordo de um só colega falando em busca da realização pessoal com uma visão coletiva de bem comum através da profissão. Não ecoavam falas do tipo: vou buscar a carreira “x” como forma de dar sentido a minha vontade de diminuir desigualdades. As falas eram, vou ser (juiz, promotor, advogado) para ter sucesso e dinheiro.

Tivemos um caso emblemático nesse sentido. Um desses colegas que conseguiu concluir o curso 1 ano antes, foi morar em Porto Alegre, estudou muito e em 28 de fevereiro de 2002 tomou posse no cargo de juiz estadual (TJRS). Recordo o quanto ele era centrado, estudioso, cumpridor de notas. Entretanto, ele sempre deixara claro que o que o motivou a escolher aquela carreira fora o “status” e o dinheiro. Não quero aqui julgá-lo. Mas em levanto como hipótese que em sua formação moral e em sua formação acadêmica de Direito os princípios humanos e éticos talvez não tenham sido “significados” e por isso foram esquecidos quando ele viu-se cercado de mais processos do que tempo para julgá-los. Assim, dentro da sua lógica ele acabou fazendo a seguinte reflexão: trabalho muito e ganho pouco! O resultado foi que depois de seis anos e três meses de magistratura ele acabou sendo exonerado no dia 30 de maio de 2011 por liberar alvarás com valores altíssimos sem justificativa, favorecendo “amigos”.

Conclusão:

Não concluirei que a “educação bancária” sozinha resultou no desvio de comportamento do meu colega, nem que todos os meus colegas que escolheram a carreira pública ou a advocacia não tenham uma visão coletiva e social. Muito menos que apenas eu fiz reflexões libertadoras do modelo opressor durante e após esse período acadêmico. Apenas trago como reflexão para os docentes e alunos a importância de durante a nossa educação superior, em um curso como o Direito, onde temos como missão buscar resolução de conflitos na sociedade, termos mais presente em sala de aula á questão da formação humana, com diálogos a partir da realidade.

Por fim, por essas e outras vivências, desde que eu comecei a cursar o mestrado profissional em gestão educacional concomitantemente aos saberes que eu vinha tendo contato tive a resposta do meu problema inicial que era o porquê de não ter sido feliz durante a minha graduação em Direito? Foi porque lá por eu não ter conhecimento dos ensinamentos de Paulo Freire eu não pude entender os meus conflitos e nem de forma fundamentada pude argumentar a minha resistência diante do modelo “opressor” de ensino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido.56.ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

FREIRE, Paulo;SHOR,Ira.Medo e Ousadia: O cotidiano do Professor.5.ed.Rio de Janeiro: Paz e terra, 1986.

FREITAS, Ana Lúcia Souza de; MACHADO, Maria Elisabete; RODRIGUES, Hemini Machado. Contra o desperdício da experiência – a pedagogia do conflito revisitada.1 ed. Porto Alegre: Redes Editora, 2009.

[1] Em 1997, em Brasília, jovens atearam fogo matando um índio chamado Galdino.

[2] A operação Rodin condenou 29 acusados por um esquema de corrupção.

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