Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

Buscou-se trazer considerações e reflexões acerca da proposta de mediação waratiana que se credenciaria como uma possível resposta mais adequada e adequadora à resolução de conflitos, em tempos de multiculturalismo, isto é, de discursos da complexidade, trespassando as questões da interconstitucionalidade, interculturalidade, plurinacionalidade, tendo como fundamental o diálogo e a comunicação dos saberes. A mediação aqui proposta, comprometida com a maior autonomia e autodeterminação dos indivíduos, seria um enorme avanço, ao considerar o ponto de vista dos sujeitos envolvidos, em busca de soluções consensuadas, exige-se que cada um ouça os demais, ou seja, que se coloque no lugar do outro, valorizando-se assim diversos modos de ser.
A mediação proposta por Warat poderia ser enquadrada como uma possibilidade de uma política pública de fortalecimento da democracia participativa, já que permitiria um tratamento mais adequado para o conflito, vez que mais célere e eficaz, voltada ao consenso e à pacificação social, bem como, no nosso entender, deverá ser considerada como uma teoria brasileira da mediação como modo alternativo de resolução de conflitos, pela sua originalidade, criatividade, e aspectos centrados nas particularidades brasileiras. Trata-se de reinterpretar a mediação, no sentido de po-ética existencial, fundamental, ao se constatar a íntima relação co-institutiva entre multiculturalismo, democracia radical e o respeito à diferença, encontrando a proposta de mediação waratiana raízes no multiculturalismo, já que se encontra afetada por este ao trabalhar a partir do pressuposto das diferenças culturais e dos modelos e mundos, sendo, pois, o multiculturalismo um pressuposto fundamental para a proposta de mediação waratiana.
Em tudo difere a mediação waratiana da grande maioria das práticas de mediação que circulam à moda da economia capitalista, “time is money”, fetichismo jurídico embalsamado no sangue da culpa e do débito. Warat é carnavalizado, surrealista, apaixonado pela vida, apostando no imponderável, acreditando no impossível, no sonho, em Dioniso nas ruas.
A proposta de mediação waratiana apresenta-se, pois, como uma possível resposta mais adequada e adequadora à resolução de conflitos, em tempos de multiculturalismo, de discursos da complexidade, com necessidade de uma democracia radical, reconhecendo que a democracia política e representativa não é mais suficientes, no sentido de substituição da democracia apenas representativa pela participativa e cultural, trespassa a questão da interconstitucionalidade, interculturalidade, plurinacionalidade, envolvendo, ainda, o tema da cidadania participativa e do pensar de outro modo, nos dizeres de Touraine, “penser autrement”, sendo para tanto fundamental o diálogo e a comunicação dos saberes. A democracia radical seria aquela de alta intensidade, revolucionária, comprometida com diversos campos de democratização.
O multiculturalismo nesta seara é tido como um possível avanço no sentido de uma sociedade mais democrática, por valorizar a diferença, por reconhecer a diversidade cultural, a heterogeneidade, de que tanto precisam os saberes, o mundo e o próprio ser humano, se quiserem continuar vivos, autopoi-ética e dignamente.
A mediação aqui proposta, comprometida com a maior autonomia e autodeterminação dos indivíduos, encontra-se vinculada, portanto, a uma identidade coletiva e cidadã, a uma maior consciência, essencial para a dinâmica de movimentos sociais que buscam a ampliação ou consolidação de direitos e conquistas sociais.
Uma maior consciência política refere-se à politização do indivíduo, formada pelos aspectos de identidade social e pela cultura, sendo considerada a questão de ter um “self” completo como a base para se obter uma consciência política completa. A participação política por sua vez, medeia a construção do sujeito político e do sujeito coletivo.
Tal mediação, portanto, seria um enorme, avanço ao considerar o ponto de vista dos sujeitos envolvidos, seus sentimentos, em busca de um processo de humanização e de soluções consensuadas, em que se exige de cada um ouvir aos demais, ou seja, que se coloque no lugar do outro, algo fundamental em uma sociedade multicultural, plural e poliétnica como a nossa, valorizando-se assim diversas culturas e modos de ser.
A mediação, por conseguinte, deve ser reinterpretada como po-ética existencial bem como analisada e reinterpretada como política pública de fortalecimento da democracia participativa, já que permitiria um tratamento mais adequado para o conflito, na medida em que mais célere e eficaz, voltada ao consenso e à pacificação social, correspondendo aos ditames da Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça. Tal Resolução estimula a mediação e conciliação como formas alternativas de solução de conflitos ao instituir uma política pública no âmbito do Poder Judiciário denominada “Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado de Interesses”.
Ao relacionarmos cidadania, direitos humanos, democracia participativa e comunitária, com vistas à construção de uma democracia genuína, com base na articulação entre os vários tipos de democracia, verifica-se a insuficiência da democracia representativa, ante a crise de legitimidade que ocorre atualmente no Brasil, como também em diversas partes do mundo.
É, pois, essencial a busca da construção de uma democracia participativa e comunitária, e neste sentido a mediação é sua melhor forma de realização, já que as práticas sociais de mediação são um instrumento do exercício de cidadania, pois visam justamente à educação e à capacitação das pessoas a se autodeterminarem. Para tanto é imprescindível uma ressignificação da cidadania, para que a vejamos como lugar, a outricidade como lugar.
Propõe Warat uma cidadania surrealista, uma cidadania do diálogo, que exercita a ética da inoportunidade (ético-poética) do cidadão-poeta, demolidor de tudo e de si próprio, reconhecendo-se que o melhor vínculo entre os homens é o poético, e assim a poesia é poesia vista como o espaço vital o entre-nós que constitui a outricidade.[1]
Merece destaque o Movimento do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, reforçando os instrumentos de democracia participativa e cultural e o exemplo da Bolívia e do Equador com suas constituições plurinacionais, interculturais e pós-coloniais, democracias comunitárias, paradigmas de um novo tipo de constitucionalismo, transformador, consagrando um amplo processo de discussão e deliberação envolvendo as comunidades indígenas. E neste sentido, questionamos, pois, se a solução para tal iniquidade endêmica no Brasil, seria transitarmos para o novo constitucionalismo latino-americano, com as transformações no plano social, econômico, político, institucional e até – ou sobretudo – pessoal que haverão de se espelhar no que não pode deixar de ser uma nova Constituição.
Outrossim, destaca-se a vitória na Bolívia do primeiro presidente indígena, Evo Morales, propondo uma Nova Assembleia Constituinte em 2009 e elaborando uma nova Constituição, estabelecendo um Estado Plurirracial, consagrando diversas mudanças em prol do reconhecimento concreto dos direitos indígenas, como propondo a representação destes em diversos segmentos, como nas instâncias deliberativas do Estado, muito além, portanto, da simples questão de cotas nas Universidades, tal como entre nós se tem colocado. O artigo 146, VII da CF traz a previsão de cotas para parlamentares indígenas, representação indígena no Tribunal Constitucional e órgãos eleitorais, e o artigo 196 prevê a existência e o respeito da Justiça indígena originária ao lado da Justiça estatal. No Equador há a consagração do Sumak Kawsay, da concepção nativa do bem viver e dos direitos da natureza como princípios de organização econômico-social.
Nesse sentido, fala-se de demodiversidade que consiste na introdução da diversidade no campo político, permitindo-se uma cidadania não sujeita à dominação, mas com acesso à decisão política, ao controle das decisões políticas e à implementação de políticas públicas.
A mediação contribuiria para uma maior consciência de si e dos outros, humanização, diálogo e estímulo à participação, fundamentais para o desenvolvimento de uma identidade política e fundamentos da sociedade dialogal proposta por Habermas, como base da sociedade democrática.
Trata-se da busca do interagir, agir com o outro, a partir da consideração do outro, e não sobre o outro. Portanto, muito há que se fazer ainda no Brasil ainda para a concretização de uma sociedade multicultural com caráter pluriétnico, como bem expressam os artigos 231 e 232 da CF88, no sentido de reconhecimento das diversas identidades culturais do país, sendo a mediação waratiana um grande passo neste sentido.
A proposta de mediação waratiana é de vital importância, quer seja pela sua autenticidade e originalidade, quer seja por sua ousadia e coragem intelectual, ampliando-se o que poderia ser denominada de uma teoria brasileira da mediação e resolução alternativa de conflitos, enraizada em próprio solo, já que o A. apesar de nascido na Argentina e vivido mais tempo no sul do Brasil, se considerava acima de tudo baiano e brasileiro.
A mediação waratiana como forma alternativa de solução de conflitos, contribuiria para a construção da cidadania, por meio da ampliação da autonomia, da autodeterminação e da conscientização e para uma democracia efetiva, portanto, e também para as pessoas se considerarem e serem consideradas como sujeitos de direitos, com direitos, como cidadãs no sentido de poder opinar e decidir por si mesmas, ajudando na criação de um novo sujeito, do sujeito difuso, não hierarquizado, como atores sociais em busca do direito à diferença, especialmente importante, quando falamos de minorias, de pessoas ou grupos vulneráveis.
Trata-se então de postular pela proposta de mediação de Warat como política pública de fortalecimento da democracia participativa, já que permitiria um tratamento mais adequado para o conflito, na medida em que mais célere e eficaz, voltado ao consenso e à pacificação social. Outrossim, tal temática relaciona-se com a cidadania, com uma maior conscientização e politização, fundamentais para a construção de uma democracia participativa e comunitária, de uma democracia genuína.
A proposta de mediação de Luís Alberto Warat denota grande influência de Gaston Bachelard, que nos incitava a “desaprender quase tudo”. Ela pode ser considerada destrutiva e desconstrutivista, como o mesmo afirma, um modo de desaprender o que nos é imposto, abrindo-se um espaço vazio para a criatividade, recuperando-se a autenticidade e espontaneidade, indispensáveis à mediação. A desconstrução como estratégia para os procedimentos de mediação, já que o mediador precisa ajudar as pessoas a se desconstruírem, vendo também suas próprias sombras, aliando-se a um processo de construção do pensamento, dos sentimentos, da sensibilidade, utilizando a colagem, a mímica, os jogos e as dramatizações (Warat, “O ofício do mediador”. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 188). A proposta de seu livro é de proporcionar uma viagem à própria vitalidade do leitor, ao amor, ser um estímulo para que este descubra o que sempre esteve oculto em si mesmo. Possui nítida influência do zen budismo, como se denota da primeira citação antes mesmo do início da introdução, de Osho, e seu conceito de meditação (Osho, 2015), como sendo o conhecimento do ser, quando o ser sabe, integra e integralmente, que é.
Tal proposta em muito se assemelha, pois, no nosso entender, à proposta da meditação, visando a alcançar a paz interior, o silêncio, a não violência, um cuidar de si e do outro, uma proposta de valorização dos sentimentos, da criatividade, da outricidade, da alteridade, da busca de vazios, do amor, da poesia, de um saber com sabor, um saber que oriente a participação, um saber orientado para a alteridade. Uma epistemologia de vida, um saber em movimento, é a epistemologia que quer desordenar o saber e não destruí-lo (Warat, “O ofício do mediador”. Florianópolis: Habitus, 2001, p.268). Neste sentido, o mediador é equiparado pelo próprio autor com o mestre, com um mestre zen, podendo apenas ajudar, orientar, servir de guia, para que as pessoas se encontrem como mestres de si mesmas, encontrando a sabedoria dentro de si mesmas e suas próprias verdades.
Assim, a proposta waratiana de mediação se distanciaria de outros métodos alternativos de resolução de conflitos, como a conciliação e a arbitragem, em tudo diversos, diversidade esta que se inicia já com a própria consideração acerca do conflito, não sendo esta a preocupação central da mediação proposta por Warat, donde distanciar-se de tais formas de dominação e de simulacros.
A mediação waratiana em muitos aspectos se assemelha à proposta apresentada na obra “Teoria Poética do Direito” (Willis Santiago Guerra Filho; Paola Cantarini, 2015), aprofundada em outra, dedicada a desenvolver uma teoria erótica do Direito e uma filosofia político-amorosa (Paola Cantarini, 2017), nas quais o pensamento de Warat se mostra como um dos fundamentos e fonte de inspiração de tais aportes teóricos, que buscam a revalorização e a reaproximação dos saberes poéticos, poiéticos, criativos, criadores, transgressionais, críticos do status quo, dos saberes enlatados e domesticados, evocando o questionamento persistente diante de todo ponto de vista que se enrijeça[2]. Contrária, portanto à proposta da ciência que nos afasta de nosso autêntico ser, ao nos impedir de duvidar, indagar, de correr riscos, e com isso acabando por incrementar os próprios riscos.
É o Direito visto poieticamente, sempre em construção, nunca já pronto e acabado, portanto, posto, positivo, como se costuma entendê-lo. É o Direito visto de forma erótica, vital, e não estagnado como a concepção positivista e formalista do Direito que atualmente impera. Tais propostas colocam como essencial ao direito e ao conhecimento em geral a transdisciplinaridade, ao invés da univocidade do discurso jurídico homogêneo, fechado em si mesmo e em dogmas sem fim. Por uma nova forma de conhecimento, e produção do Direito, não preocupado com sua pureza, mas sim, confundindo estilos, transitando por vários deles, introduzindo a metáfora e a poesia abertamente como modo de pensar o Direito. [3]
Ambas as propostas se voltam ao cuidado de si e do outro, à alteridade, à outricidade, como fundamentos esquecidos do Direito, e que precisam ser resgatados, a fim de preencher o vazio do Direito, atualmente preenchido por pura violência, dominação, poder, ideologias, força. Ambas reconhecem o valor do erotismo, do amor, e sua relação com o direito, com o humano, e a necessidade da transdisciplinaridade ao Direito, por um saber aberto, permitindo-nos abrir para o novo, e que ajude o homem a buscar sua autonomia, que se daria com a alteridade, autonomia ao se tornar mestre de si mesmo, e então estará mediado, harmonizado; trata-se de uma cidadania surrealista, preocupada com o diálogo e a outricidade, com um entre-nós, uma cidadania holística e mais humana, ancorada em um direito mais humanizado.
Estamos diante, portanto, de uma nova proposta de mediação como forma de resgate dessa promessa, do amor, do cuidado com os mínimos detalhes de si e do outro, uma epistemologia libertária. É uma forma de alquimia, de transformação interior, de si mesmo, equiparando-se em alguns pontos o mediador ao xamã, que faz o resgate da alma perdida. O conceito de cidadania surrealista vincula-se novamente com a magia, ante a sua potencialidade ritual de decantação e transformação alquímica do mundo. A melhor forma de se transmitir o saber seria a forma poética, utilizada com destaque na antiguidade, e também tal linguagem poética, a linguagem dos afetos, seria a linguagem necessária à mediação, segundo Warat, já que para este mediação é um processo do coração, aproximando-se da holística, uma concepção da mediação como direito da alteridade, um direito vital, uma justiça vital, uma forma de humanização das relações humanas, enquanto realização da autonomia e dos vínculos com o outro, possibilitando uma melhoria da qualidade de vida. Trata-se de um saber com sabor, contrário aos saberes estereotipados, imobilizadores e estéreis, ou seja, precisamos desaprender o aprendido.[4]
A mediação como um processo que recupera a sensibilidade, como um estado de amor, de amor tântrico. Meditação como uma forma de cultura, de vida, introduzindo o amor como condição de vida,[5]como uma proposta cultural, um novo paradigma cultural e jurídico que propõe nos inscrever na trama de uma educação da sensibilidade e da ternura, uma proposta pedagógica transformadora da sensibilidade, individual e coletiva. Uma ética cidadã de ternura a partir da mediação, reconhecendo no afetivo sua dimensão fundamental.
Aponta Warat, ainda, diversos problemas na maior parte das escolas de mediação, as quais na verdade, formam conciliadores, negociadores e não mediadores, esquecendo-se de que a mediação não é uma ciência, mas uma arte que tem que ser experimentada; as escolas de mediação estão preocupadas em produzir respostas prontas, planejadas, preocupadas em dominar. Um mestre está preocupado com comunhão, encontro de corações sem palavras; o mestre forma mediadores mostrando-lhes o valor de serem simples, sem ego; para formar um mediador é preciso levá-lo a um estado de mediação, deve ser mediado, ser a mediação, estar mediado, é entender o valor de não resistir, de deixar de estar permanentemente em luta. Em continuação, enfatiza a existência de alguns impasses no procedimento de mediação quanto à efetividade, em especial aponta para a falta de preparo do mediador, pois carrega ainda a postura armada e defensiva como de um advogado, havendo também problemas na estrutura do procedimento de mediação, que desconsidera o conflito interior e individual de cada parte. [6]
Para Warat, mediação é conceituada como um procedimento de intervenção em um conflito de qualquer natureza, sobre todo tipo de conflito, portanto, a mediação pode se ocupar de qualquer tipo de conflito: comunitário, ecológico, empresarial, familiar, penal, direitos humanos, etc. não é descartável pensar a mediação dentro dos conflitos do saber.[7]
É um processo assistido, não-adversarial, de administração de conflitos; como uma semiótica da outricidade que tenta interpretar o sentido do conflito a partir do lugar do outro. É uma forma alternativa de intervenção nos conflitos. É um Direito da outricidade, uma concepção ecológica do Direito, uma nova visão da cidadania, dos direitos humanos e da democracia; um procedimento não adversário de resolução de conflitos que poderá apresentar momentos de negociação, de conciliação e de arbitragem.[8]
A mediação se revela como uma terapia do reencontro mediado, do amor mediado (TRM ou TAM), como uma forma de terapia, não um procedimento psicoanalítico, passando pela leitura da linguagem corporal e pelo afloramento da sensibilidade. É um processo de aprendizagem com o outro. Considera, assim, o universo conflituoso a partir de uma perspectiva psicológica, sensível, generosa, educativa e comunitária, visando à transformação dos vínculos conflitivos em vínculos amorosos. O amor é a melhor forma de administração do conflito. Como teoria contradogmática propõe uma nova corrente mediadora, mediante alternativa ou terapia do reencontro – procedimento de interpretação psicossomática da revisitação dos conflitos.
O amor é então retratado como uma forma de ajudar a encontrar os caminhos do crescimento pessoal, da autonomia e a experiência amorosa é vista como cura terapêutica. O ser humano sendo complexo precisa de um modo de pensamento que não reduza a existência, um pensamento do complexo, físico, bioantropológico, a partir de uma perspectiva lógico-filosófica-literária que permita uma práxis ética, o qual poderá ser alcançado com o modo surrealista de entender a complexidade; pensamento do complexo e surrealismo enquanto expressão do poético como complexidade; uma epistemologia da complexidade.[9]
Propõe um surrealismo à moda brasileira e à moda latino-americana, com uma maior influência africana e do realismo mágico (alteridade da poética, o poético como outricidade); a busca poética de si mesmo e do encontro poético com o outro. Uma desintelectualização poética, reconstruindo-se a realidade poeticamente. [10]
A mediação tem seu destino atrelado à necessidade da realização da autonomia, e o amor poderá auxiliar em tal autonomia. Aponta ainda Warat para alguns pontos de distinção entre a mediação proposta, a arbitragem e a conciliação: a distinção entre tais propostas de resolução alternativa de conflito se dá pelo caráter transformador dos sentimentos; ao contrário do que ocorre com a mediação, o árbitro e o juiz julgam baseados na verdade formal, ou seja, a conciliação e a transação não trabalham o conflito, mas o ignoram. A mediação, ao contrário, busca a resolução pelas próprias partes.
A mediação não tem como objetivo prioritário a realização do acordo, mas a produção da diferença, instalando o novo na temporalidade; não se fundamenta na ideologia e individualismo possessivo. A mediação mostra o conflito como uma confrontação positiva, revitalizadora.
A função da mediação é a de ser um discurso amoroso destinado a inscrever as pulsões no registro de Eros; o mediador ocupa um lugar de amor, não de poder, diferente, portanto, do juiz e do árbitro; o dever do mediador é da ordem da abstinência, tendo como função recolocar o conflito no terreno das pulsões da vida. O intuito de satisfação vital substitui a aplicação coercitiva e terceirizada de uma sanção legal.
A mediação é vista então como a melhor forma para superar o imaginário do normativismo jurídico, pela realização do feminino no Direito. [11] A mediação é proposta como um novo paradigma jurídico cultural, em busca de uma teoria jurídica da outricidade – proposta existencial pedagógica da cidadania e dos direitos humanos da outricidade. Tal proposta de mediação possui incidências que são ecologicamente exitosas como a estratégia educativa, a realização política da cidadania, direitos humanos e democracia – produz um devir de subjetividade que indica uma possibilidade de fuga da alienação. Mediação como um critério epistêmico de sentido. Seria um salto qualitativo para superar a condição jurídica da modernidade, baseada no litígio e apoiada em um objetivo idealizado e fictício da descoberta de uma verdade que é imaginária. O mediador é visto então como uma espécie de terapeuta que deve administrar o conflito fora da culpa, projetando responsabilidade no exterior, na cultura, nas instituições, equiparando de certa forma a mediação à psicoterapia. [12]
Tal terapia é afetada pelo multiculturalismo, que visa a trabalhar a partir do pressuposto das diferenças culturais e dos modelos e mundos aos quais pertencemos, sendo, pois, o multiculturalismo um pressuposto fundamental para as terapias do amor mediado. Assim, denota-se o reconhecimento do amor, da poesia e da loucura como pontes exclusivas para a comunicação com o outro, ocorrendo a sabedoria que se realiza através do amor e da poesia. [13]
Sua necessidade parece tanto maior em tempos como o que vivemos, de crescente isolamento das pessoas, encapsuladas no mundo virtual da telemática, televisão, telefonia e todas as tecnologias da distância (tele), que nos afastam de um maior contato direto e pessoal, dificultando cada vez mais sua ocorrência.
Note-se, de pronto, que tal empreendimento haverá de mobilizar e agenciar elementos provenientes das ciências humanas em geral, da filosofia em suas diversas modalidades e disciplinas, bem como das ciências naturais, posto que nossos atos são encenados por um corpo, que é, a um só tempo, social e natural. Além desses saberes por assim dizer “reflexivos”, produzidos conscientemente com a finalidade de ampliar nossos conhecimentos, há uma contribuição fundamental a ser prestada por saberes, digamos, “espontâneos”, gerados para atender uma finalidade antes social (ou individual) que teorética, como é o caso do Direito, das Artes e das Religiões, esta última em sentido o mais amplo possível, para incluir também formas anímicas, mágicas, mitológicas etc.
Na mediação aqui proposta, não é só ela que se beneficia daqueles saberes todos, mas eles também seriam beneficiados por ela, na medida em que encontram ali uma espécie de “campo de prova”, um espaço em que são testados, concretamente, na vida das pessoas, em situações reais, saindo assim da abstração em que costumam ser produzidos e, inclusive, justificando-se socialmente – podendo mesmo, por que não, “entrar no mercado”, tornar-se uma profissão, um meio de vida voltado para a vida mesma, ou seja, um espaço de trocas simbólicas onde circula o símbolo por excelência de nossa sociedade, que é o dinheiro.
Do que se trata aqui, então, é de propor uma mediação que se constrói a partir de enfoque mais que propriamente científico, seja de natureza médica, psicológica ou psicanalítica, devendo este enfoque, certamente, se beneficiar das descobertas e investigações feitas nesses outros campos, circunvizinhos, assim como naqueles da filosofia, especialmente da ontologia e da ética, e também das ciências sociais, pois haverá de se constituir a partir de uma análise da situação atual do ser humano em uma sociedade como aquela em que vivemos hoje, de escala planetária, que denominamos ocidental, mas que em um sentido civilizatório – como referiu em texto célebre sobre a crise de nossa civilização já há quase um século o filósofo Edmund Husserl, principal responsável pelo desenvolvimento do método fenomenológico em filosofia -, isto é, diverso daquele meramente geográfico, deixou de sê-lo, uma vez que está no mundo todo – e apesar disso, há peculiaridades nacionais e regionais que não se pode deixar de levar em conta.
Nessa mediação que estamos vislumbrando os mediadores deverão estar prontos para tratar dos que sofrem com a falta de sentido em suas vidas. E é desse sofrimento que penso haverá de ser tratada numa mediação cidadã, assim como daquela grandeza, que não é fácil suportar, precisando ser colocada, como se diz, “em seu devido lugar”, para evitarmos tanto a “mania de grandeza”, quanto um sentimento de impotência em quem se percebe capaz de grandes realizações, mas termina realizando muito pouco, ao que lhe parece.
Porque mediação como po-ética existencial?
Os problemas tratados na mediação são problemas existenciais de um ser que não suporta bem uma existência, que sabe finita, limitada temporalmente, embora por tempo indefinido – o que Elias Canetti sugere em sua peça “Os Numerados” ser a fonte de todo o sofrimento humano, donde na sociedade “ideal” ali descrita as pessoas serem nomeadas pelo número de anos que viverão, isto é, serem “numeradas”, e isso por um sacerdote, que atribui esse número/nome quando do nascimento e vela para que no prazo nele assinalado efetivamente ocorra a morte, já sabida e, logo, esperada, sem sobressaltos e preocupações para a vida. Na “vida real”, o mais comum é que este ser que nós somos procure consolo para essa precariedade de sua vida imaginando uma outra vida, que lhe é garantida por um outro Ser, infinito, onipotente, onisciente etc. etc., ou seja, dotado de características que são o oposto positivo daquelas que ele/nós próprios possuem/possuímos, embora esse oposto positivo decorra da negação do que somos: finitos, impotentes ou “só potentes”, in(s)cientes ou “só cientes” etc. etc. Daí que haver esse “grande Outro” de nós mesmos termina ajudando muito pouco a nos consolar, quando não traz um sofrimento ainda maior do que o daqueles que não O concebem, com justificativas, no mínimo, insuficientes.
Entretanto, conforme já enunciado, a mediação aqui concebida há de se defrontar com a falta ou insuficiência de vínculos afetivos, uma perda da capacidade de imaginação, de ilusão, de sonhar quando acordado, projetar(-se), amar… Do amor, então, é do que se tratará, ainda que o seu polo invertido, o ódio, é o que em geral irá se apresentar, devendo o mediador estar preparado para auscultar, no que as vontades e interesses em conflitos manifestam os desejos que se encontram latentes. Daí que um saber do desejo, tal como se propõe a ser a psicanálise, que se oferece como resposta ao desejo de saber e amar, é sem dúvida um dos mais valiosos insumos da mediação, sendo este o ponto de vista de Warat. Fundamental, portanto, é uma aproximação à psicanálise, enquanto estilística ou poética da existência.
Ocorre que o intento de Freud, de fundar em bases científicas a psicanálise, teria esbarrado em obstáculos epistemológicos intransponíveis, os quais, no entanto, ele vai tentar superar, por meio daquilo que o próprio Freud denominará sua “metapsicologia” – a ela, em estudo célebre de 1937, sobre o fim da análise, se referirá como a “feitiçaria” que usou, para atravessar aqueles obstáculos. Já em seu estudo “Uma neurose diabólica do século XVII”, de 1923, Freud demonstrará seu respeito pelo enfoque demonológico da loucura, superior ao da ciência oficial de então, assim como na segunda série de palestras introdutórias à psicanálise, de 1933 – que, como é sabido, jamais vieram a ser pronunciadas, devido à saúde de seu autor -, naquela que teria sido a 30ª palestra (a segunda da nova série), ele fará em relação às práticas ocultistas, especialmente à telepatia, considerando possível que o futuro avanço da ciência a revelasse plausível, enquanto, por hipótese, um resquício de quando nossos antepassados se entenderam sem possuírem a linguagem para se comunicarem. Ao que parece, portanto, Freud teria chegado à conclusão semelhante àquela de Lévi-Strauss, quando o antropólogo afirmou não poder diferenciar o estudo dos mitos feito por ele desses mitos mesmos… E mitos são narrativas com as quais nos constituímos no que somos, pensamos, sentimos, tendo Freud, como é sobejamente conhecido, indicado a primazia dentre todos do mito de Édipo, enquanto Lacan (1991), por seu turno, destacou a importância também do mito de Antígona, no qual se pode ver como se impõe uma injunção que nos habita, anterior e, também, superior a qualquer determinação arbitrária, estabelecida jurídica ou socialmente, para fazermos o que entendemos certo, mesmo à custa da própria vida.
E é de uma tal concepção que necessitamos, para desenvolver waratiana e poeticamente a mediação, como um laboratório em que se investiga e se espera encontrar soluções po-éticas para problemas que se apresentam como jurídicos, mas são, fundamentalmente, humanos, demasiado humanos, super-humanos.
Por uma falta de explicações básicas, tornamo-nos ansiosos, infelizes e, porque não dizer, desumanos. É preciso restituir ao homem contemporâneo esta forma de saber e de se relacionar, consigo, com os outros, com o mundo, indicando-lhe saídas da crise ética em que se encontra, que ameaça sua existência e a do próprio planeta, pela escalada dos conflitos daí decorrentes.
A ética, ou seja, o saber o que devemos fazer, depende fundamentalmente da resposta àquela outra questão, que é teológica, ou melhor, religiosa, sobre o que podemos esperar do desfecho da vida. A essas duas questões, como é sabido, Kant acrescenta uma outra – o que podemos saber -, considerando as três as questões maiores que desafiam o ser humano. A ética seria a disciplina que nos conduz à felicidade, ao indicar o Bem supremo, e em razão da grande divergência entre filósofos e pessoas em geral sobre o que seria esse Bem supremo, o pensamento moderno, especialmente com Kant, vai se caracterizar pela adoção de uma ética formal, independente dos bens que desejam as pessoas e do modo como os distribuem no direito, na política, na economia etc. Aqui os princípios orientadores da ação derivam de um imperativo categórico que requer obediência universal, caso queiramos instituir a autonomia da vontade e uma comunidade de homens livres. O caráter abstrato dessa concepção termina revelando-a inadequada para motivar ações e decisões concretas, em face da diversidade e singularidade de situações com as quais nos defrontamos.
A palavra ethos em grego antigo, quando escrita com épsilon (?), corresponderia ao latim mores, significando um conjunto de normas concernentes à conduta política e socialmente regrada por normas costumeiras. Já quando escrita com êta (?) remetia ao caráter, à natureza espontânea das pessoas, significando, literalmente, sua morada ou lar, onde nos sentimos à vontade, por corresponder ao que nos é próprio.
O termo “moral”, proveniente da tradução de Cícero do latim (de mores), costuma ser utilizado indistintamente como sinônimo do termo de origem grega “ética”, sendo comumente considerado que ambos possuem o mesmo significado, enquanto alguns autores os diferenciam, atribuindo um sentido mais amplo e coletivo ao segundo, e mais restrito e individual ao primeiro. De certa maneira, resolve-se a divergência com a distinção clássica, devida a Hegel, entre Moralität, subjetiva, e Sittlichkeit, objetiva.
Também pode-se diferenciar “ética” e “moral” considerando esta última objeto de estudo da primeira, que seria um saber, saber sobre o que é devido, cabendo à moral determinar o que é devido, tornando-se, assim, objeto de estudo da ética. Como essa “ciência do dever” assume um caráter igualmente normativo, a filosofia analítica contemporânea vai referir-se a uma “metaética”, formada por proposições meramente descritivas, que toma a ética ou “as éticas” como objeto de um estudo em que o conhecimento efetivamente possa se dar, desvinculado de compromisso com o aspecto prescritivo, apesar de estar lidando com a esfera do dever ser.
A ética, considerada desde a perspectiva clássica – e que ainda hoje aponta para uma de suas dimensões fundamentais – seria a disciplina que nos conduz à felicidade, ao indicar o Bem supremo, e em razão da grande divergência entre filósofos e pessoas em geral sobre o que seria esse Bem supremo, o pensamento moderno, especialmente com Kant, vai se caracterizar pela adoção de uma ética formal, independente dos bens que desejam as pessoas e do modo como os distribuem no direito, na política, na economia etc. Já na perspectiva clássica, greco-romana e, mesmo, naquela teológica medieval, a ética é sempre uma ética material, associada a outros aspectos da vida, em sua dimensão social, especialmente àqueles de natureza política, donde a indissociabilidade entre o comportamento recomendado a cada um individualmente e o que de cada um se espera enquanto membro da comunidade política: o comportamento ético seria igualmente justo e, como hoje se diz, “politicamente correto”, ou, em linguagem popular, por conhecer cada um o seu lugar.
Na modernidade, com Kant, os princípios orientadores da ação derivam de um imperativo categórico pelo qual optamos de “livre e espontânea vontade”, e por isso requer obediência universal, para assim instituir a autonomia da vontade e uma comunidade de homens livres. O caráter abstrato dessa concepção termina revelando-a inadequada para motivar ações e decisões concretas, em face da diversidade e singularidade de situações com as quais nos defrontamos atualmente. É assim que hoje nos defrontamos com uma ética dita “pós-convencional”, que recupera elementos da antiga ética material, fazendo convergir, por exemplo, a ética e a política em uma teoria da justiça, como em Rawls, onde se propugna mais um procedimento para se atingir soluções eticamente justificáveis para os problemas, do que princípios com base nos quais se possam deduzir tais soluções, ou ainda regras pré-estabelecidas em que já se oferecem tais respostas. Essa é a ideia que anima, igualmente, a chamada “ética do discurso”, associada a nomes como Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas.
No entanto, não podemos nos enganar sobre o que efetivamente podemos aprender com o pensamento ético-filosófico e outros correlatos, como o político, o jurídico, o artístico e o religioso. Também precisamos ter muito claro para nós mesmos que nosso objetivo é recuperar – ou adquirir – uma sabedoria perdida, um saber viver bem, no lugar do viver sempre melhor e do apenas sobreviver, o qual, ao mesmo tempo, implica – e decorre de – uma ética, a nos indicar o que fazer, uma arte ou estética, a nos indicar como fazer, e uma religião, teologia ou filosofia, a nos indicar porque fazê-lo, cada momento sendo perpassado pelo espírito científico dos tempos em que vivemos.
É isso o que ocorre, quando ao invés de nos “apossarmos” da vida que já temos procuramos possuir uma verdade que nunca teremos, nem sequer devemos pretender ter…
Por que há antes o Ser e não o Nada? Perguntou-se Leibniz e dedicou-se a responder toda uma vida (e uma obra) Heidegger, concluindo, fundamentalmente, que o que há, seja lá o que for, não é nada, mesmo sendo (o) nada – que logo, a seu modo, também é…
Uma paráfrase nos ajudará a inverter a pergunta e mostrar sua falta de sentido: Por que há antes o sentido e não o sem-sentido? Claro, se o sentido – ou, pelo menos, com certeza, a pergunta por ele – é algo que o ser humano introduz no universo, como nem sempre o ser humano esteve presente nele nem nada garante que nele estará para sempre – se nem o universo, talvez, seja para sempre – então houve antes o sem-sentido, assim como antes do ser, o nada – e, na verdade, assim como foi antes, também o é agora e sempre: não há o ser nem o sentido senão na fantasia humana.
Sofremos nessa vida e, em grande parte por isso mesmo, também fazemos outros sofrerem, quando poderíamos muito bem usufruí-la, sofrer menos, pois ela será tanto melhor se não lhe adicionarmos o sofrimento extra de buscar um modo de ser, de obediência rígida a regras universal e eternamente válidas, que pressupõem um estado de ser que nunca alcançaremos em vida, mas apenas, possivelmente, após a morte. A vida, a vida nós a queremos infinita, e ela o é, mas não como queremos, pois, a queremos infinita para nós. Bem, ela não o é, mas deveria realmente ser? Ela então não perderia o valor que tem, justamente por ser rara, precária, com um começo e um fim – se fosse infinita, não teria fim, mas também não teria começo. Além disso, ela é indefinida, apesar de finita – ou, de um ponto de vista lógico, a rigor, “finível”. E mesmo assim, finita, pois enquanto a temos, ela não tem fim – então, para que a termos para sempre? A cada momento só teremos o que nos concede o momento: como agora.
Referências:
[1] Warat, “O ofício do mediador”. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 230 e ss.
[2] Ibidem, p. 137.
[3] Ibidem, p. 189.
[4] Ibidem, p. 69, p. 74.
[5] Ibidem, p. 38, p. 41.
[6] Ibidem, p. 41, p. 47, p. 79, 80 e ss.
[7] Ibidem, p. 87.
[8] Ibidem, p. 90.
[9] Ibidem, p.131.
[10] Ibidem, p. 228.
[11] Ibidem, p. 87.
[12] Ibidem, p. 134.
[13] Ibidem, p. 139, p. 278.