Manuel Zapata: direitos humanos e interculturalidade

Artigo publicado na 46 edição do Jornal Estado de Direito.

César Augusto Baldi*

 Manuel Zapata Olivella, afrocolombiano, autor de “Changó, el gran putas”, falecido há dez anos, foi  escritor, novelista, médico, antropólogo, educador, investigador, cientista social e ativista de direitos humanos. Esta última faceta resta por explorar. Salientem-se, pois, alguns pontos.

Primeiro: questiona a democracia, salientando que os “revolucionários franceses pretenderam estabelecer a democracia na metrópole e a escravidão, em suas colônias”, recuperando a visão africana do “muntu”, que concebe a família como “soma de todos os ancestrais e os vivos, unidos pela palavra aos animais, às árvores, aos minerais (terra, água, fogo e estrelas), e às ferramentas, num nó indissolúvel”. Concepção que, para ele, os africanos “devolvem a seus colonizadores europeus sem amargura nem ressentimentos”.

Segundo: busca o resgate da justiça cognitiva, o reconhecimento de que a diversidade cultural no mundo não significa, necessariamente, o reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo (Boaventura Santos).  Um conhecimento que é mais que africano, mas também árabe, mostrando a influência islâmica tanto nas lutas dos Estados Unidos, quanto na revolta dos malês e mesmo o resgate de que, em 1492, a cidade de Tombuctu (hoje Mali) era capital de um dos estados mais florescentes do mundo, contando com uma universidade em que ensinavam sábios e filósofos do Egito, Arábia e Espanha. E que a tradição oral era um “corpus válido e justificado plenamente pelos sentimentos, rebeldias e reivindicações transmitidas de viva voz, de gerações a gerações, por quem nunca foi ouvido nas galeras dos barcos traficantes” ou nos palenques. Uma memória viva para a luta dos quilombolas no Brasil.

Terceiro: recupera a Revolução haitiana e sua radicalidade, a primeira independência realizada por escravos libertos, algo impensável para a Europa, e antes que isso fosse destacado por outros pensadores afroamericanos.

Quarto: salienta o aporte cultural de negros, “a história das culturas africanas que chegaram em nosso continente”, não como algo “marginal”, mas sim em sua “fecundidade” que inunda “as artérias e nervos do novo homem americano”, lutando para a descolonização da mente e revelando o projeto “racista e alienante da história, da filosofia e da ciência eurocêntrica-ocidentais dominantes”, procurando “reinterpretar a história que os afros contaram por meio de documentos e que o conquistador contava através da alienação”. Algo a repensar, no Brasil, depois das Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, em relação às histórias afro e indígena.

Quinto: não se preocupa somente com o Atlântico Negro, mas também com a invisibilidade a que se relegam as memórias do Pacífico, e as diferenças de epistemologias entre “oceanos”. Para ele, o colonialismo, “como sistema de exploração”, sempre procurou justificar a “animalização e barbárie”.

Sexto: tendo em vista sua formação médica, recupera a sabedoria “empiro-mágica” sobre a natureza, vida e sociedade, em especial dos indígenas, ampliando o horizonte da “medicina europeia” e mostrando a cobiça pelos conhecimentos tradicionais.

Sétimo: mostra a “relação íntima entre raça, colonialismo e sua matriz contínua de poder”, por meio de uma mestiçagem que, desde a negritude, a descoloniza, como superação da ideologia racista e experimentação de “maneiras de abrir e transformar as democracias” (Santiago Arboleda). Assim, devemos chamar “afrocolombianos” a todxs que “querem recordar que fomos escravizados, que não aceitamos tal condição de escravidão e que procedemos de um continente” que foi a “origem da humanidade”.

E, assim, segundo ele, deixa que “Elegba, o abridor dos caminhos, te revele teus futuros passos já escritos nas tábuas de Ifá, desde antes de nascer”, porque, “cedo ou tarde, tinhas que enfrentar-te a esta verdade: a história do homem negro na América é tão tua como a do índio ou a do branco, que o acompanharam na conquista da liberdade de todos”.

*              Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004). Pesquisador do NEP-Núcleo de Estudos sobre a Paz e Direitos Humanos, da Universidade de Brasília.

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