?O realismo mágico é um gênero que remonta à literatura fantástica europeia, e que encontrou na América de língua espanhola um terreno fértil para florescer. Assim como a uva Malbec – de origem francesa – se deu muito bem no terroir argentino, revelando vinhos exuberantes e potentes, os textos de Adolfo Bioy Casares, Gabriel García Marquez, Jorge Luiz Borges e Julio Cortázar representaram uma reviravolta criativa, que inaugurou um novo gênero.
O seminal Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, talvez seja a expressão máxima desse processo de aclimatação. A história se passa na cidade de Macondo, um assentamento informal erigido por famílias autoinstaladas “na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas”, localizado em algum canto do continente americano. O líder desse autoempreendimento é José Arcádio Buendía, que comandou a edificação da aldeia original de 300 habitantes, traçando “as ruas com tanta sabedoria que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor” e dispondo-as “de tal modo que (…) de todas elas era possível chegar ao rio e abastecer-se de água com o mesmo esforço”.
?Em Macondo circulam ciganos alquimistas e cartomantes, igualmente peregrinos, igualmente marginais. Moços viris são iniciados nas artes do amor por mulheres sedutoras, como Pilar Ternera, e se envolvem em guerras patrióticas. A sociabilidade produzida pela cidade cria histórias individuais peculiares, em que o banal da vida ganha o sentido de experiências existenciais cheias de significado.
?Os elementos fantásticos são integrados à realidade com tamanha delicadeza que é difícil efetuar distinções. Crianças viram anjos e ascendem aos céus, tempestades irrompem e duram meses, e não é raro um personagem viver mais de 150 anos. De forma subjacente, há uma razão sensível a orientar o convívio: uma razão tolerante e calorosa, que sabe a importância de uma improvisação criativa para se lidar com as dificuldades.
?Não é à toa que o realismo mágico encontrou terra fértil na porção sul do continente americano. O padrão desigual e excludente da colonização da América Latina faz da sobrevivência uma luta permanente. Na maior parte dos casos, é uma luta individual. Não é histórica, é cotidiana. Se ela não é bem significada, torna-se fonte de enorme sofrimento, capaz de aniquilar a pulsão de vida.
Essa é uma maneira peculiar de enxergar e, sobretudo, de se adaptar às agruras do mundo. A fantasia não se atribui a missão de transformá-lo, mas sim de mostrar que a humanidade tem uma enorme capacidade de adaptação, e que de vez em quando essa capacidade supera os aspectos tangíveis do cotidiano e caminha para uma dimensão poética. É aí que ele revela sua força, que pode ser inclusive política: é aí que a vida acontece; é aí que mora a transgressão.
?Estranhamente, porém, não é raro o gênero ser apropriado como sinônimo de tudo o que é errado e que deveria ser evitado. Jornais latino-americanos associam com frequência o realismo mágico às idiossincrasias de governos populistas na região. Macondo, por sua vez, é ironicamente tomada como referência para explicar as inexoráveis mazelas das suas grandes e desordenadas metrópoles.
?Eis o paradoxo: um dos principais legados culturais da América Latina é, por ela própria, recusado. Complexo de vira-latas? O pensamento racional do iluminismo europeu, cartesiano, intolerante com o imprevisão, com a improvisação e com o onírico, ainda é uma referência às elites culturais. A “razão sensível”, nesse contexto, é vista como uma representação vulgar e pueril da razão original. Mais afeita às aventuras românticas e às paixões efêmeras, seria a causa primeira do grau de subdesenvolvimento da colônia.
?Isso se projeta nas cidades na forma de uma intolerância visceral em relação à irregularidade fundiária, que contraria a noção de planejamento forjada no bojo desse iluminismo. O fetiche da planificação absoluta recusa o informal como os formadores de opinião recusam Macondo, e, com ela, sua força emancipatória, revelada numa teia de relações comunitárias, afetivas, culturais, criativas, ao mesmo tempo simples e complexas.
?É evidente que por trás da disputa entre modelos de razão há uma falsa oposição. Haveria um terceiro caminho? Haveria convergência? O que o realismo mágico pode ensinar aos limites estreitos e fechados da deusa razão – a mesma que viabilizou, pelo domínio da técnica e da natureza, a bomba atômica? O que Macondo, erigida pelo gênio da sabedoria popular, pode ensinar à fantasia desse planejamento iluminista, importado sem aclimatação, que – pelo que se vê aqui – de fantástico não tem nada?
Wilson Levy é doutorando em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Membro do Núcleo de Estudos em Direito Urbanístico da Escola Paulista da Magistratura. Professor colaborador do PPG em Direito da UNINOVE. E-mail: wilsonlevy@gmail.com.