PROCESSO: 0103519-41.2020.5.01.0000 – MSCiv
MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL
IMPETRANTE: UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA
AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DA 80ª VARA DO TRABALHO DO RIO DE JANEIRO TERCEIRO
INTERESSADO: XXXXX
RELATORA: RAQUEL DE OLIVEIRA MACIEL
Vistos.
Trato de mandado de segurança, com pedido liminar inaudita altera pars, impetrado por Uber do Brasil Tecnologia Ltda, com intuito de impugnar decisão proferida pelo MM Juízo da 80ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, nos autos da reclamação trabalhista 0100531-98.2020.5.01.0080, proposta por XXXXXXX.
Explica, em apertada síntese, que, dentre pedidos outros, o terceiro interessado pretende nos autos originários a declaração de vínculo de emprego. Após manifestações das partes quanto à indicação de provas, afirma que este requereu a realização de perícia técnica do algoritmo utilizado pela plataforma digital, prova, no entanto, inútil e desproporcional, além de violadora dos direitos relacionados à duração do processo, ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, bem como às regras concorrenciais, porque diz respeito a segredo de empresa, à livre iniciativa, à proteção a patentes e à propriedade intelectual.
E porque o mandamus se apresenta como o único meio viável à pronta reparação do direito, requer, em sede de urgência, a suspensão dos efeitos do ato impugnado.
Regular a representação (Id. c7c6dd7).
Atendido o prazo decadencial previsto no artigo 23 da Lei 12.016/09.
A impetrante carreou aos autos documentos (Id. dd01cf8 e seguintes), e deu à causa o valor de R$ 1.000,00.
É o relatório.
Decido
Consoante dispõe o inciso LXIX do artigo 5º da Constituição da República, c/c o artigo 1º da Lei nº 12.016/09 (como já o fazia o da Lei 1.533/51, repisando a Carta Magna), o mandado de segurança é meio constitucional colocado à disposição de toda pessoa física ou jurídica para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade. Verbis:
Artigo 5º, LXIX, da Constituição. Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público.
Artigo 1º da Lei nº 12.016/09. Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.
Simples leitura dos dispositivos mencionados revela que, por sua própria natureza, a ação de segurança exige a comprovação, de imediato, da existência de direito líquido e certo a amparar a pretensão, por meio de prova pré-constituída.
XXXXXXXX propôs reclamação trabalhista em face de Uber do Brasil Tecnologia Ltda, vindicando, sobretudo, o reconhecimento do vínculo de emprego. Conforme se extrai do relatório anteriormente exposto, são dois, basicamente, os fundamentos do presente writ: 1- o tumulto processual, ante o deferimento de prova após preclusão estabelecida pelo próprio Juízo; 2- desnecessidade e potencial de violação a direitos fundamentais decorrentes da prova deferida.
Quanto ao primeiro fundamento (tumulto processual, ante o deferimento de prova após preclusão estabelecida pelo próprio Juízo), relembro que após a contestação da pretensão nos autos originários (Id. fb731fa) e o oferecimento de réplica pelo então reclamante (Id. 85565b7), e conquanto já intimadas para tanto anteriormente (Id. 6ffa5b1), as partes foram novamente instigadas a se manifestar a respeito da produção de provas (Id. 09e540c), tendo o reclamante, somente aí, apontado a necessidade de produção de prova pericial (Id. 716afc2).
De fato, e como exposto na inicial deste mandamus, a d. autoridade tida por coatora já havia determinado a especificação de provas sob pena de preclusão (Id. 6ffa5b1). Não quer isso dizer, no entanto, que não pudesse fazê-lo novamente, sobretudo por se tratar de prova pericial, determinável (como, de resto, qualquer outra) ex officio, e, portanto, a qualquer momento, ante a percepção da dificuldade para análise do caso concreto e, consequentemente, necessidade do apoio técnico.
É sabido que o artigo 765 da CLT possibilita ao Juiz a determinação das diligências que entender necessárias ao esclarecimento do caso, tendo ele “ampla liberdade na direção do processo […], podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento [da causa]”. Constitui, pois, prerrogativa do magistrado a determinação às partes, por exemplo, para que juntem aos autos “documento ou coisa que se encontre em seu poder”, consoante caput do artigo 396 do CPC. Logo, não haveria que se falar em nulidade. Não se extrai daí, por conseguinte, sequer o fumus boni iuris a justificar o mandamus.
Não fosse suficiente, está-se diante de ato tipicamente impugnável em sede endoprocessual, ainda que mediante efeito diferido, valendo-se, portanto, a impetrante, do mandado de segurança como sucedâneo de recurso, a atrair a incidência do entendimento consubstanciado tanto pelo E. STF quanto pelo C. TST. Verbis:
Súmula 267 do E. STF: NÃO CABE MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO JUDICIAL PASSÍVEL DE RECURSO OU CORREIÇÃO.
Orientação Jurisprudencial 92 da SDI-II do C. TST: MANDADO DE SEGURANÇA. EXISTÊNCIA DE RECURSO PRÓPRIO. Não cabe mandado de segurança contra decisão judicial passível de reforma mediante recurso próprio, ainda que com efeito diferido.
E a conclusão da própria impetrante a respeito do tema é elucidativa. Se a d. autoridade apontada como coatora “criou regras em exercício normativo que extrapolam seu poder jurisdicional diante do caso concreto”, como salientado na inicial, significa isso dizer que o ato estaria a requerer não só correção jurisdicional como correção administrativa, sujeitando-se, assim, e sob ambos os enfoques, a recurso ou à correição.
O segundo fundamento (desnecessidade e poder de violação a direitos fundamentais decorrentes da prova deferida), segue, em regra, a mesma ordem de ideia.
Repito que o terceiro interessado pretende demonstrar nos autos originários a presença dos elementos necessários para a configuração da relação de trabalho subordinada.
Sabe-se que toda discussão a respeito da formação ou não de vínculo de emprego entre trabalhadores motoristas e plataformas digitais transita pela tentativa de separação daquilo que se apresenta no plano superficial da aparência daquilo que efetivamente corresponde à realidade. Também sabido tratar-se de tarefa árdua, porque relação acinzentada pela combinação algorítmica que, segundo o terceiro interessado, funda o poder diretivo empresarial, porque possibilita, dentre aspectos outros, a definição dos valores dos serviços e, sobretudo, a distribuição das chamadas, conforme preterição e/ou preferência de alguns trabalhadores em decorrência das avaliações feitas especialmente pelos consumidores, assim como a possibilidade de aplicação de sanções que podem chegar até mesmo ao bloqueio do trabalhador. Por essa razão o terceiro interessado requereu nos autos originários a realização de perícia técnica do algoritmo do aplicativo utilizado pela impetrante, mediante a qual pretende identificar as correlações de dados de inteligência que influenciam naqueles parâmetros acima estabelecidos.
A impetrante aponta flagrante ilegalidade no ato impugnado. Isso porque, empresa que explora plataformas tecnológicas de intermediação digital, afirma que o aplicativo e o software por ela utilizados constituem o principal produto/serviço que oferece. Logo, o código- fonte do algoritmo que manuseia deve ser protegido, na medida em que propriedade intelectual e concorrencial, resguardado por sigilo empresarial. Acrescenta, ademais, que a análise do poder hierárquico e disciplinar, com base nos parâmetros estabelecidos pelo próprio trabalhador, pode se dar mediante outras provas, como, aliás, o próprio termo de uso por ela disponibilizado.
Em resumo, e de um modo geral, este segundo fundamento tem por base três enfoques que, embora distintos, comunicam-se, seja quanto (1) à utilidade da prova pericial, seja quanto (2) à possibilidade de sua realização, seja, por fim, quanto (3) a formas e parâmetros.
Orientando-me pelos argumentos trazidos pela autora mandamental, abordarei os três planos acima expostos autonomamente apenas a título metodológico, conquanto dialética e interdependentes. Numa relação de prejudicialidade, analiso, inicialmente, e num cenário o mais abstrato possível, considerando os restritos limites desta ação mandamental, a necessidade e utilidade da prova pericial. Num segundo momento, e acaso necessário, averiguo sua possibilidade à luz da lei regulamentadora da propriedade industrial. Por fim, e, por igual, se exigível, abordo formas e parâmetros de sua realização.
Plano analítico 1. A prova pericial é útil?
Aduz a impetrante, em suma, que
“[…] permitir o acesso a esse código-fonte, ainda que a um perito judicial, em demanda trabalhista individual, seria medida extrema, completamente desproporcional ao objeto da presente demanda […] Veja-se que informações sensíveis (segredo industrial de alto valor) ficarão expostas ao expert judicial (e seus auxiliares); pior, o assistente técnico do autor (terceiro Interessado), profissional que é de sua confiança, também acompanharia a diligência a teria acesso ao mesmo código-fonte […] Fragilizar o sigilo de negócio para realizar perícia objetivamente desnecessária seria medida manifestamente desproporcional, na direção oposta da proteção ao sigilo, implicando, ainda, manifesta violação à livre iniciativa e à livre concorrência, uma vez que a exposição de segredo de negócio retira qualquer vantagem tecnológica e/ou administrativa que porventura possa ter sobre suas concorrentes, em clara violação ao que dispõe o artigo 170, IV, da Constituição […] Mostra-se totalmente desproporcional e irrazoável […] No balanceamento de interesses, deve-se privilegiar o direito da impetrante em proteger as informações sigilosas contidas em seu algoritmo, ativo intelectual de máxima importância para plataformas digitais, já que o terceiro interessado pode obter as informações que deseja por outros canais, sendo que alguns dos pontos por ele utilizados para embasar seu pedido de perícia são, inclusive, equivocados. Em rigor, a desnecessidade da perícia pleiteada torna manifesta a desproporcionalidade da medida, vez que não se justifica a restrição de direito constitucionalmente protegido que sequer seja necessária para a proteção do alegado direito contraposto […] No que diz respeito aos critérios de operação do algoritmo para a distribuição de chamadas, sugestão de preços, restrições ou preferências no acesso a chamadas e, ainda, o processamento das avaliações por parte dos passageiros, todas essas informações constam nos termos e condições de uso da plataforma e, portanto, o terceiro interessado tem plena ciência do modelo de negócio operado, de forma que alguns dos pontos suscitados são, inclusive, fatos públicos e notórios. E ainda que não constassem dos termos e condições de uso […], temos que a prova oral seria o meio eficaz e suficiente […] O algoritmo utilizado é absolutamente irrelevante para fins de comprovação da invocada subordinação estrutural […] Todos os pontos elencados pelo terceiro interessado podem ser rebatidos por meio de prova documental […] ou, sucessivamente, por meio de prova oral […] A prova do fato não depende de conhecimento especial de técnico […] A perícia pretendida tampouco encontraria amparo em eventual alegação de documentos de posse unilateral […] O Código de Processo Civil estabelece expressamente que, em tais hipóteses de posse unilateral, o remédio cabível não é a prova pericial, mas, sim, procedimento especifico para exibição de documentos […] Todas as questões de fato que o terceiro interessado pretende provar com a prova técnica ou são incontroversos, ou são provados através de prova oral ou documental […]”
Sem querer adentrar o dilema das redes, discussão que, evidentemente, não cabe aqui, não se pode perder de vista o ar romantizado de programadores computacionais contritos que, desconhecedores da base mínima de funcionamento do sistema de produção vigente, rogam, agora, por regulamentação formal-legal a reduzir o poder que potencializaram. Histórico capturador do conhecimento humano, o capital vale-se da poderosa ferramenta tecnológica que desenvolveram (sublinhe-se, mera ferramenta) a intensificar a produção, aproximando-a o mais rápido à circulação, numa superaceleração do ciclo produtivo de valor. E é de se notar que a impetrante opera na mesma órbita até certo ponto ingênua.
Sem qualquer proximidade com a questão de fundo, que será devidamente analisada pelo Juízo natural, mas partindo do pressuposto lógico dos interesses em conflito, é certo que a impetrante defende nos autos originários em que figura como reclamada a ausência de vínculo de emprego. Mesmo aqui, inadvertidamente, aprofunda-se várias vezes no tema de fundo, chegando mesmo a salientar, por exemplo, que “não há como se considerar o motorista subordinado a um controle por meio de algoritmo”. Logo, não faz sentido mínimo a tentativa de redução do espectro probatório.
Ora, é exatamente porque os meios de prova documental e oral podem não ser suficientes que o terceiro interessado vindica nos autos originários a realização da perícia técnica. No item 35 (Id. d921566 – págs. 08/09), é a própria impetrante que afirma que a definição dos valores é por ela recomendada com base no tempo e distância. Assim, segundo raciocínio por ela mesmo desenvolvido, caberia ao julgador emitir valor real àquela “recomendação”, aferindo a viabilidade de o motorista aumentar ou reduzir autonomamente o valor. Dado, vale dizer, que não é extraído do manuseio dos algoritmos. Mais à frente diz textualmente que realiza promoções e admite a possibilidade de exclusão da plataforma, dados também importantes à configuração ou não do vínculo de emprego e que, por igual, não exigiriam, segundo sublinha, análise do código fonte do aplicativo. E se pode excluir, consoante regra lógica intuitiva, pode, evidentemente, distribuir chamadas para além da mera proximidade geográfica (in eo quod plus est semper inest et minus). Confirma, ainda, a existência de avaliações trabalhadores e a viabilidade de acesso ao conteúdo das comunicações com os trabalhadores.
A impetrante, portanto, sustenta inicialmente que a discussão de fundo se basta com aqueles meios, para depois (estou no campo da pressuposição que, no desenho da lide, deve ser confirmada, sob pena de desfiguração da própria lide) sustentar que não são suficientes a confirmar o direito que diz ter o terceiro interessado. Data venia, nada mais ilógico, porque argumento circular, que tem por premissa a própria conclusão. Com todo o respeito que merece a impetrante, parece ela a se inserir nas clássicas aventuras de Münchhausen, a tentar salvar-se do pântano puxando-se pelos próprios cabelos. Inviável.
Tanto assim é (e diferente não poderia ser) que também se vale nos autos originários de defesa indireta, na medida em que maneja regras de distribuição do encargo probatório, para sustentar que o terceiro interessado, então reclamante, tem acesso a valores e a relatórios de corridas, diante do encargo da prova que sustenta lhe ser desfavorável nesse momento processual.
Nota-se, no entanto, que uma das formas de se chegar até essas informações, e, possivelmente (ou não, dependendo do juízo de valor a ser feito nos autos originários para autoridade competente), à satisfação daquele onus, é justamente a prova pericial ali requerida. Isso sem levar em consideração a dinâmica e a aptidão da produção probatória (artigo 818, § 1º, da CLT), considerando que apenas a impetrante detém acesso a todos os dados que entendeu a d.autoridade apontada como coatora como necessários ao julgamento da causa de fundo.
No mais, e a se considerar o volume, a pulverização e a profunda fragmentação dos fatos e das informações que daí exsurgem, é mesmo de se questionar a respeito do quanto factível seria a prova oral, considerando a falibilidade da memória humana, bem como a variabilidade de percepção dos fatos e, portanto, a possibilidade de numerosas construções narrativas diferentes sobre a mesma realidade. Não se pode, assim, abrir mão de informações depositadas em instrumento tecnológico que detém registros integrais e rigorosos, substituindo- se essa poderosa ferramenta comunicacional por meios de prova outros sabidamente mais débeis.
Nesse passo, a pergunta que intitula o plano de análise 1 aponta para uma resposta positiva. Isso porque provas documental e oral podem não ser capazes o suficiente a subsidiar o Juiz na análise do pedido de vínculo. As informações delas subtraídas podem não ser necessárias à elucidação do caso concreto com a certeza que se exige da jurisdição, sobretudo porque, una (artigo 5º, XXXV, da Constituição da República), finca o último marco institucional à segurança das relações sociais. Especialmente quando se trata de análise de relações cuja importância recorre ao princípio da primazia da realidade (sem querer questionar aqui, porque também não é a arena adequada, possíveis contradições entre contratualidade formal e realidade material).
No mais, configurado o amparo legal à realização de perícia técnica nos autos originários (cito, novamente, e ao menos, os artigos 765 da CLT e 396 do CPC), acrescento que o artigo 13 da Lei 11.419/06, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, autoriza o magistrado a determinar que sejam realizados por meio eletrônico a exibição e o envio de dados e de documentos necessários à instrução do processo. E o § 2º do referido artigo 13 limita o acesso por qualquer meio tecnológico disponível, preferencialmente o de menor custo, considerada sua eficiência. E é nesse mesmo andamento que o § 2º do artigo 42 da lei geral de proteção dos dados (Lei 13.709/19) admite possa o Juiz inverter o ônus da prova a favor do titular dos dados sempre que resultar excessivamente onerosa a prova. E conquanto o objeto da perícia sob comento não seja a coleta e o tratamento de dados pessoais, o artigo 11, I, “d”, da referida lei de proteção assegura expresso tratamento desses mesmos dados pessoais.
Esse, portanto, o caminho necessário ao esclarecimento da discussão de fundo. Só mediante tais informações tem o Juízo natural condições de aferir a veracidade das narrativas desenvolvidas pelas partes, a entender efetivamente como se operava a prestação de serviços. O laudo pericial, portanto, restringir-se-á apenas ao resultado pertinente ao caso, abstendo-se o perito a responder quesitos cuja resposta porventura ultrapasse esse limite, o que certamente saberá, em concomitância à direção do magistrado do caso, identificar.
Se a relação levada a Juízo é inteiramente mediada pelo aplicativo da plataforma eletrônica, a análise da natureza dessa mesma relação e as informações a respeito do limite de horas de prestação de serviço ou de qualquer outro elemento daí decorrente depende necessária e exclusivamente do conteúdo ali depositado digitalmente, cujos critérios e instruções são determinados por algoritmos e armazenados no código-fonte e nos registros de informações coletadas. E tornando à fragilidade da prova oral, é sabido que grande parte desses critérios sequer é possível ser acessado pelo terceiro interessado e pelas pessoas que provavelmente serão indicadas como testemunhas, na medida em que protegidos por segredo industrial, como claramente defende a impetrante.
Plano analítico 2. Se a perícia é útil e necessária, pode ela ainda assim ser inviabilizada, tendo-se por base a garantia legal de sigilo?
Afirma a impetrante, sinteticamente, que
“[…] A realização de perícia do algoritmo utilizado […] viola frontalmente o segredo de negócio […], que se enquadra como direito protegido por cláusula pétrea, previsto no rol de direitos fundamentais (artigo 5º, X, XII e XXIX, da Constituição) […] É empresa de tecnologia que explora plataformas tecnológicas de conexão de pessoas por meio do fornecimento de serviços de intermediação digital, possibilitando uma interação dinâmica de mútuo proveito. Tal fato, por si, demonstra de forma cabal e inquestionável que o aplicativo e o software utilizados […] são o seu grande diferencial e o principal produto por ela oferecida a seus consumidores (motoristas e usuários). Resta evidente, de plano, que o código-fonte do algoritmo é protegido pelas questões de patente, propriedade intelectual e concorrencial, uma vez que se trata de peça primordial (para não se dizer a mais importante) do produto que é disponibilizado pela [impetrante] […] O segredo de negócio é, em essência, um conhecimento aplicável à indústria, ao comércio ou à prestação de serviços […] apto a dar ao empresário uma posição de vantagem frente aos concorrentes. Esse conhecimento constitui bem imaterial e integra o fundo de comércio do titular […] A ordem jurídica, inclusive constitucional, protege a inovação em si mesma e também pelo interesse público em fomentar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. Além disso, o segredo de negócio também consiste na informação confidencial apta a dotar de valor competitivo um determinado produto mediante o sigilo […] Nesse sentido, é fundamental destacar que o Acordo TRIPS, acordo internacional adotado pela Organização Mundial do Comércio sobre aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, cuja emenda mais recente foi inserta no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 9.289/18, concedeu ao segredo industrial proteção internacional efetiva, por meio das normas de repressão à concorrência desleal, conforme dispõe o artigo 39 do referido acordo. Um dos pilares básicos do acordo (que possui forca supralegal) é a manutenção do sigilo do segredo de mercado, tarefa merecedora de todos os esforços por parte do seu titular. Na sofisticada área da informática, normas de segurança são criadas e aperfeiçoadas constantemente para garantir os segredos de empresa […] O segredo de negócio é tão importante que sua proteção já é consagrada pelo atual ordenamento juridico brasileiro. Nessa esteira, destaca a importância dada ao tema através da Lei 12.527/11 (lei de acesso à informação), a qual estabelece que o amplo acesso à informação não exclui as hipóteses de segredo industrial decorrentes da exploração direta de atividade econômica […] O próprio Supremo Tribunal Federal, mesmo no contexto de pleno acesso à informação estabelecido pela Lei 12.527/11, mantém o sigilo de seus algoritmos de distribuição […] Ainda que as disposições da Lei 12.527/11 se apliquem apenas ao Estado ou a pessoas fisicas e entidades privadas que tenham qualquer vinculo com o poder público […], tem-se que, por analogia, a preservação do segredo industrial (ou a vantagem competitiva) deve ser posicionamento a ser seguido por todo o ordenamento jurídico […]”
A autora mandamental defende, portanto, a tese de que a perícia requerida pode trazer prejuízos imensuráveis ao seu negócio, na medida em que exporá seu segredo empresarial.
De fato, como bem enunciado na inicial deste mandamus, a perícia técnica dos algoritmos pode tornar vulneráveis propriedades intelectuais e industriais, o segredo de indústria, aquilo que comumente denomina-se “segredo do negócio”. Conquanto a engenharia computacional seja capaz de programar correlações algorítmicas similares (e o mercado está cheio delas), é certo que, exatamente por similares, não se equivalem, na medida em que algum grau de desenvolvimento técnico do conhecimento humano, algum patamar de know how as diferencia, que, evidentemente, precisa ser protegido em homenagem à livre iniciativa e à concorrência.
A Lei 9.279/96 regula essa proteção. Mas é a própria lei que permite e estabelece critérios para a quebra dessa mesma proteção. A tanto, basta simples leitura do artigo 206 (na hipótese de serem reveladas, em Juízo, para a defesa dos interesses de qualquer das partes, informações que se caracterizem como confidenciais, sejam segredo de indústria ou de comércio, deverá o Juiz determinar que o processo prossiga em segredo de justiça, vedado o uso de tais informações também à outra parte para outras finalidades).
Fato, vale dizer, que esmorece outra argumentação da impetrante, que num cenário aparente, tenta fazer crer que se está diante de conflitos de interesse coletivo a proteger a integridade do conhecimento patenteado e de interesse individualizado restrito a um determinado trabalhador demandante judicial. Ao contrário, e ao se partir da inquestionável natureza ontológica do trabalho, e da exigência de submissão da universalidade social para a própria reprodução, é o trabalho, aqui (e a relação empregatícia, embora a principal, é só uma de suas vertentes), o ente coletivizado, o direito humano fundamental sob questão.
A se recuperar a gênese coletiva do direito do trabalho, compreendendo-se, portanto, que a proliferação das demandas individuais constituem, na verdade, atrofia ainda a ser sanada, descortina-se, assim, a fragilidade da argumentação da impetrante. Acaso necessário fosse, poder-se-ia dizer de antemão, inclusive, que o segredo que defende a impetrante cede frente ao interesse social público e à transcendência, à coletivização do interesse subjacente à discussão de fundo, que assola não só nossa comunidade laboral, empresarial, acadêmica e jurídica, como a todos numa esfera global, a se definir com a maior segurança e certeza possível o caráter, a gênese, enfim, a natureza da relação entre motoristas, aplicativos e clientes.
Aqui, a pergunta que dá título ao plano de análise 2 é respondida negativamente, na medida em que, apesar da proteção legal, acaso útil e necessária, a perícia técnica não pode ser inviabilizada no caso, tendo em vista que a própria legislação se encarrega de estabelecer parâmetros a compor proporcionalmente o direito coletivo à investigação e o direito individualizado à garantia do sigilo industrial.
Plano analítico 3. Se a perícia é útil e necessária, e se pode ela ser realizada, quais os parâmetros a serem adotados pelo Juízo responsável a fim de garantir o sigilo legal?
Alega, por fim, a impetrante, que
“[…] A proteção pelo regime legal de segredo não impediria que terceiro que venha a desenvolver a mesma tecnologia ou solução possa utilizá-la livremente, daí a importância de cautela máxima na proteção a este tipo de sigilo de intenso valor patrimonial. Perceba- se que até mesmo a Lei 13.709/19 (lei geral de proteção de dados), que tem por objetivo estabelecer obrigações de controladores de dados e garantir direitos de titulares de dados pessoais, limitou direitos de acesso aos segredos comercial e industrial (artigos 6º, VI, 9º, II, 19, § 3º, e 20, § 1º). Isto é, tampouco nessa recentíssima legislação […] se cogitou de conferir direito de acesso a algoritmos utilizados por empresas como a impetrante […] A realização de perícia viola o segredo de negócio não apenas da impetrante, mas, principalmente, das entidades do grupo localizadas no exterior, que são as reais proprietárias do algoritmo a ser periciado […] A entidade brasileira sequer possui a propriedade do algoritmo utilizado. O software utilizado é de propriedade da Uber International BV, sendo a Uber do Brasil mera licenciada do uso desse software [o Id. 25f7703 mencionado pela impetrante não se refere a estes autos mandamentais], não possuindo a entidade brasileira qualquer tipo de gestão ou controle sobre o algoritmo a ser periciado […] É fundamental destacar a incompetência da Justiça brasileira para determinar a realização de perícia no exterior, salvo por carta rogatória […]”
Exatamente porque útil e necessária, e porque, como exposto na linha anterior, o artigo 206 da Lei 9.279/96 admite a revelação de segredos empresariais em Juízo para a defesa de interesse de quaisquer das partes, exigindo-se apenas o segredo de justiça e a vedação ao uso dos dados para outras finalidades, cabe salientar quais os parâmetros necessários à proteção legal.
Aqui, valho-me, por oportuno, da bem lançada decisão proferida nos autos da reclamação trabalhista 0000335-45.2020.5.09.0130 (5ª Vara do Trabalho de São José dos Pinhais – TRT da 9ª Região), proferida pelo Exmº. Juiz do Trabalho Leonardo Vieira Wandelli, estudioso do assunto, recordando que a prova pericial sob comento deve ser adstrita “à análise das instruções, critérios e algoritmos inseridos no código-fonte do aplicativo utilizado”, inclusive no que se refere a “testes de metodologia, verificação de datasets, documentos de desenvolvimento do código-fonte e outros que a perícia encontrar necessários”.
Isso porque não há possibilidade de que seja proferida decisão judicial segura sem a análise, por exemplo, das (a) regras de alocação, critérios de preferências e restrições na distribuição de chamados. No mesmo sentido os (b) critérios de influência sobre a relação de prestação de serviços da avaliação do motorista pelos clientes e a (c) existência de mecanismos de avaliação do motorista pela ré e seu impacto na relação de prestação de serviços. Segue a mesma linha de abordagem as (d) regras de fixação dos valores cobrados dos clientes, dos valores retidos pela impetrante e, por consequência, daqueles repassados aos motoristas, as (e) f ormas de indução, premiação, restrições ou sanções decorrentes do tempo que o motorista fica à disposição da plataforma e da aceitação e recusa dos chamados, e a (f) existência e eventual método de mecanismos de indução (nudges) da conduta do motorista, por meio de mensagens, premiações ou restrições. Também o (g) conteúdo das mensagens enviadas pelo aplicativo ao motorista, orientações, sugestões, advertências e em quais situações são disparadas, os (h) dado s da atividade são controlados pela plataforma, tais como, entre outros, velocidade, número de frenagens, desvio da rota proposta pelo aplicativo, som ambiental, rastreamento por geolocalização, os (i) dados sobre o veículo, o motorista, a sua conduta, e sobre a viagem são solicitados aos passageiros, o (j) grau de acesso franqueado ao motorista quanto aos dados obtidos pela plataforma nas viagens realizadas, inclusive relativos aos clientes, e os (k) mecanismos e critérios para suspensão e/ou exclusão do acesso do motorista à plataforma etc.
Tornando ao i. Magistrado de São José dos Pinhais,
“[…] são esses os elementos que podem permitir [à d. autoridade apontada como coatora] elucidar o grau de controle da prestação de serviços do motorista pela [impetrante], a direção, controle e apropriação dos frutos da atividade econômica, a existência ou não de poder de direção, fiscalizatório e disciplinar sobre a prestação de serviços e/ou autonomia nesse tipo de trabalho […]”
Dados, vale repisar, fundamentais à discussão de fundo e estritamente documentados nos registros digitais.
E mais. Diante da instauração do segredo de justiça, não há qualquer dano à imagem e ao negócio da impetrante, considerando a restrição de acesso ao objeto periciado e as responsabilidades cíveis e criminais afetas a todos os envolvidos, decorrentes de possível violação do dever legal. O que, evidentemente, sequer se pode cogitar. Em que pese a descortesia da impetrante (um lampejo de deslize, ressalto e acredito, considerando o conjunto das argumentações), a questionar “se o real objetivo da perícia é a produção de uma prova relevante para a controvérsia ou se há um intuito de expor de forma absolutamente indevida sua marca e produto”, o que seria uma “postura condenável” do terceiro interessado, como seu “pedido infundado e esdrúxulo, na tentativa de pressioná-la a um acordo”. questionamentos devem ser encaminhados a outra esfera judicial. Data venia, tais questionamentos devem ser encaminhados a outra esfera judicial.
Acrescente-se que decisões judiciais, que se valem apenas do mundo performado nos autos, porque non quod est in actis non est in mundo (daí a necessidade de a prova técnica ser realizada), dos dados necessários obtidos na perícia, não ofendem a imagem social de quem quer que seja, porque, instaurado o respectivo segredo, não se expõem quaisquer dados privados à publicidade.
Não custa relembrar que o acesso direto ao código-fonte, aos documentos de seu desenvolvimento e a datasets é restrito à equipe pericial do Juízo, de forma reservada, que deve trasladar ao laudo apenas as informações pertinentes ao objeto a ser esclarecido. SegundoBARBOSA, Denis Borges, in O que um perito precisa saber de direito num caso de violação de patentes (artigo citado pelo i. Juiz Leonardo Vieira Wandelli e disponível em: http://denisbarbosa. addr.com/paginas/200/propriedade.html – acesso em: 17 out. 20),
“[…] obviamente, não poderão ser admitidos às diligências de busca e apreensão ou pré- constituição de provas, de caráter invasivo, a parte autora, seus técnicos, empregados, diretores etc., que não os adstritos pelos compromissos de sigilo e resguardo, impostos, aliás, pelo artigo 206 da Lei 9.279/96. O perito que, sem tal resguardo, permita o acesso, certamente enfrentará a responsabilidade, com seu patrimônio, pela eventual violação do segredo […]”
Os parâmetros acima expostos além de responderem à pergunta que intitula o plano 3, corrobora as respostas dadas aos dois primeiros.
A impetrante ainda alega que os algoritmos que utiliza não lhe pertencem, porque propriedade de terceiros, empresa sediada fora do território nacional, onde localizado o servidor em que armazenados. Nesse passo, além de suscitar a “incompetência” ou ausência de jurisdição, reafirma a impossibilidade da realização da prova técnica. Nota-se, no entanto, que ao conduzir a perícia, é o Juízo natural que deve definir a forma procedimental que a lei exigir. E isso sem levar em conta a desnecessidade de acesso físico aos servidores nos quais hospedados os registros a serem analisados, devendo-se fornecer exclusivamente ao perito do Juízo senha de acesso remoto ao código-fonte, documentos de desenvolvimento destes e dataset s.
Em conclusão, e sem querer adentrar o mérito em razão dos restritos limites verticais e horizontais desta ação mandamental, é do Juízo diretor do processo originário a análise a respeito do grau de necessidade das informações. E se a ele insuficientes, não há como tolher a decisão fundamentada pela necessidade de produção da prova pericial.
Poderia, no entanto, a parte interessada requerer ao menos fosse a referida prova sujeita a segredo ou sigilo de justiça, consoante artigo 189 do CPC e 28 da Resolução 185/13 do C. CNJ. Requerimento, vale dizer, mediante simples petição. Em que pese a completa ausência de risco à periclitação do direito, a impetrante, contudo, preferiu propor diretamente esta ação mandamental, sem ao menos questionar a d. autoridade apontada como coatora acerca da necessidade da realização da prova pericial, e menos ainda quanto à viabilidade da decretação de segredo ou sigilo judicial. Pedidos, repito, que, instrumentalizados de forma a mais simples possível, denotam a possibilidade de impugnação endoprocessual, atraindo, assim, reputo, a incidência da Súmula 267 do E. STF e da Orientação Jurisprudencial 92 da SDI-II do C. TST.
Sob este aspecto, seria mesmo o caso de não cabimento do writ. Contudo, e sem se descuidar da natureza ontológica do trabalho, elemento constitutivo do homem enquanto ser social, nota-se que a discussão estabelecida nos autos originários, ainda que operada pela atrofiada via juslaboral individual, indicia a possibilidade de grave violação a direito coletivo fundamental à relação de emprego, exigindo maior aprofundamento analítico possível (e necessário, é claro) a respeito dos mecanismos utilizados para consecução do objetivo que pode configurar fraude com enorme potencial coletivizador em detrimento do valor-trabalho.
Nesse passo, e conquanto similar, trago à baila decisão proferida em 09/12/19 pelo i. Ministro Luis Felipe Salomão, que levantou parcialmente o sigilo imposto a processo em que se discutia exatamente a análise da base dos algoritmos manejados por empresa de viação aérea para suposta prática de discriminação territorial.
Adequando aquele a este feito, é de se observar que as práticas discriminatórias desenvolvem-se no contexto da sociedade de risco e da informação por intermédio de algoritmos computacionais, e, se comprovadas, possuem potencialidade de causar danos a número incalculável de trabalhadores, em ofensa a direito social fundamental à livre e adequada colocação no mercado de trabalho e mesmo à ordem econômica. Ainda que individualizado o processo, tem ele extremo potencial coletivo, considerando as discussões que envolve, devendo, com mais razão ainda, ser moldado pelo princípio da informação e publicidade adequadas, segundo a qual a judicialização do tema deve ser de conhecimento de todos os trabalhadores, de todos os membros do grupo dos trabalhadores. A publicidade, erigida a norma fundamental pelo Código de Processo Civil (artigo 8º), garante transparência e torna efetivo o controle da atividade jurisdicional, motivo pelo qual também representa imperativo constitucional conforme se depreende do caput do artigo 37 e do inciso IX do artigo 93 da Constituição da República. Não se desconhece que, em casos excepcionais, é possível a decretação de segredo ou sigilo de processos judiciais, conforme dispõe o artigo 189 do CPC. No entanto, no caso, tendo em vista os princípios acima mencionados que informam o processo e as garantias constitucionais e legais que socorrem os trabalhadores, o que na verdade atende ao interesse público ou social é a publicidade do processo, que versa sobre possível prática de ideologização e discriminação nas relações de trabalho. Assim, e com o escopo de, a um só tempo, resguardar o interesse público e preservar direitos de propriedade intelectual, considero razoável a realização da prova pericial designada, sujeitando-a à decretação de sigilo de justiça no que diz respeito ao algoritmo sujeito à perícia.
Transcrevo abaixo a ementa da decisão do i. Ministro, cujo grau de concisão é suficiente a dar a inteireza necessária à questão:
Recurso ordinário em mandado de segurança. Ação civil pública. Decretação de segredo de justiça. Ilegalidade. Existência. Geodiscriminação. Geoprincing. Geoblocking. Processo coletivo. Publicidade. Necessidade, com resguardo apenas dos direitos de propriedade intelectual. 1. As práticas de geodiscriminação – discriminação geográfica de consumidores – com o geoprincing e o geoblocking, desenvolvem-se no contexto da sociedade de risco e da informação, por intermédio de algoritmos computacionais, e – se comprovados – possuem potencialidade de causar danos a número incalculável de consumidores, em ofensa ao livre mercado e à ordem econômica. 2. O processo coletivo, instrumento vocacionado à tutela de situações deste jaez, é moldado pelo princípio da informação e publicidade adequadas (fair notice), segundo a qual a existência da ação coletiva deve ser comunicada aos membros do grupo. 3. A publicidade, erigida a norma fundamental pelo novo Código de Processo Civil (artigo 8º), garante transparência e torna efetivo o controle da atividade jurisdicional, motivo pelo qual também representa imperativo constitucional conforme se depreende do caput do artigo 37 e do inciso IX do artigo 93. 4. Não se desconhece que, em hipóteses excepcionais, é possível a decretação de sigilo de processos judiciais, conforme dispõe o artigo 189 do CPC. No entanto, na hipótese, tendo em vista os princípios que informam o processo coletivo e as garantias constitucionais e legais que socorrem os consumidores, o que na verdade atende ao interesse público ou social é a publicidade do processo, que versa sobre possível prática de geodiscriminação. 5.Outrossim, conforme requerido pelo próprio Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, e com o escopo de, a um só tempo, resguardar o interesse público e preservar direitos de propriedade intelectual, considero razoável a manutenção do segredo de justiça tão somente no que diz respeito ao algoritmo adotado […] e à eventual perícia de informática relativa a tal algoritmo em toda a base de dados adotada para a operação do sistema de reservas eletrônicas. 6. Recurso ordinário em mandado de segurança e parcialmente provido (STJ – RMS 61306-RJ – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – Dec. 09/12/19).
Diante de todo o exposto, DEFIRO PARCIALMENTE a pretensão liminar, para determinar seja a perícia designada no feito originário consoante parâmetros aqui estabelecidos (restringindo-se a análise do perito do Juízo nomeado à análise das instruções, critérios e algoritmos inseridos no código-fonte do aplicativo utilizado pela impetrante, inclusive no que se refere a testes de metodologia, verificação de datasets, documentos de desenvolvimento do código-fonte e outros que o i. perito entender como necessários, sempre sob a direção da d. autoridade apontada como coatora, compondo-se o laudo pericial com informações estritas a respeito, a exemplo, das regras de alocação, critérios de preferências e restrições na distribuição de chamados; dos critérios de influência da avaliação do motorista pelos clientes; da existência de mecanismos de avaliação do motorista pela impetrante; das regras de fixação dos valores cobrados dos clientes, dos valores retidos pela impetrante e daqueles repassados aos motoristas; das formas de indução, premiação, restrições ou sanções decorrentes do tempo que o motorista fica à disposição da plataforma e da aceitação e recusa dos chamados; do conteúdo das mensagens enviadas pelo aplicativo ao motorista, orientações, sugestões, advertências e em quais situações são disparadas; dos dados da atividade controlados pela plataforma, tais como, entre outros, velocidade, número de frenagens, desvio da rota proposta pelo aplicativo, som ambiental, rastreamento por geolocalização; dos dados sobre o veículo, o motorista, sua conduta e sobre a viagem são solicitados aos passageiros; do grau de acesso franqueado ao motorista quanto aos dados obtidos pela plataforma nas viagens realizadas, inclusive relativos aos clientes; e dos mecanismos e critérios para suspensão e/ou exclusão do acesso do motorista à plataforma), sujeita a segredo de justiça a proteger o algoritmo utilizado pela impetrante.
Intimem-se, inclusive o terceiro interessado, XXXXXXXXXX, a/c do d. advogado dr. Humberto Marcial Fonseca – OAB/MG 55.867, que o assiste nos autos originários.
Comunique-se à autoridade apontada como coatora, dando-lhe ciência desta decisão, solicitando as informações de praxe, na forma do inciso I do artigo 7º do Lei 12.016/09.
Independentemente do prazo recursal, e considerando a transcendência jurídica e social da questão, dê-se, desde já, ciência ao Ministério Público do Trabalho.
RIO DE JANEIRO/RJ, 19 de outubro de 2020.
RAQUEL DE OLIVEIRA MACIEL
Desembargadora Federal do Trabalho