Por Valerio de Oliveira Mazzuoli – Professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro Consultor da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB.
A questão da transferência da execução de pena imposta a brasileiros natos no exterior tem sido discutida no Brasil e sobre ela este texto pretende se debruçar, esclarecendo o porquê da impossibilidade de se aplicar a um brasileiro nato, que está em território brasileiro, pena criminal imposta em país estrangeiro, sobretudo – e especialmente – no que tange ao “Caso Robinho” à luz das relações de cooperação envolvendo Brasil e Itália.
O jogador Robinho foi condenado na Itália por crime de estupro coletivo e condenado, em última instância, a nove anos de prisão. Ele, contudo, se encontra em território brasileiro. A Itália pretende exercer o seu direito legítimo de impor a pena ao condenado; será, contudo, necessário saber se a legislação brasileira e o tratado de cooperação judiciária em matéria penal com a Itália permitem a medida pretendida pela Itália.
Não há dúvidas de que, sendo o jogador um brasileiro nato, não poderá ser extraditado para a Itália, por proibição expressa da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LI). No entanto, questiona-se se poderia operar no caso o instituto da transferência da execução da pena, previsto na Lei de Migração brasileira (Lei nº 13.445/2017). Por meio desse instituto, o condenado em país estrangeiro teria a sua pena transferida para o Brasil, e aqui cumpriria a pena imposta alhures.
O instituto é regulado pelo art. 100, caput, da Lei de Migração, que assim dispõe:
“Nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória, a autoridade competente poderá solicitar ou autorizar a transferência de execução da pena, desde que observado o princípio do non bis in idem”.
Como se nota com total clareza, o art. 100, caput, da Lei de Migração somente autoriza a transferência da execução da pena quando “couber solicitação de extradição executória”. Portanto, a norma não se aplica aos brasileiros natos, pois há impeditivo constitucional para que sejam extraditados, seja para responderem a processo no exterior (extradição instrutória) ou para cumprirem pena se ali já condenados (extradição executória). A Lei se refere a esta última modalidade de extradição, que – da mesma forma – não atinge os brasileiros natos, como é o caso do conhecido jogador condenado na Itália.
Assim, nos termos da lei brasileira em vigor, um brasileiro nato que foi condenado em país estrangeiro, estando em território brasileiro, não poderá cumprir a sentença estrangeira em nosso país pela via da transferência da execução da pena, pois não cabe solicitação de extradição executória a brasileiro nato. Sequer se está a discutir aqui – e a discussão é também importante – a natureza da Lei de Migração neste ponto, que, por ser mais gravosa à pessoa condenada, não poderia retroagir para prejudicá-la.
Ademais, há uma regra clássica no direito do conflito de leis que encoraja os Estados a conhecerem a legislação dos demais Estados com que mantêm relações diplomáticas. Não se pode, evidentemente, subestimar a diplomacia italiana, seus assessores jurídicos e procuradores, que – não há quaisquer dúvidas – bem conhecem o mandamento constitucional brasileiro segundo o qual veda-se a extradição de brasileiros natos. Tanto à luz do expectador brasileiro quanto do italiano resta claro que não cabe a extradição executória para brasileiros natos.
Um pedido de extradição do jogador feito ao Brasil será mais uma tática diplomática italiana – que pretende dar resposta ao país sobre o cumprimento da pena do crime grave que o brasileiro ali cometeu – que desconhecimento das nossas normas jurídicas, pois a diplomacia italiana guarda alto nível de conhecimento jurídico, especialmente da legislação dos Estados com que mantém relações diplomáticas. Parece certo que a Itália irá querer ao Brasil a transferência da execução da pena do jogador, mas o pleito é descabido – a diplomacia italiana tem conhecimento do assunto, não há dúvidas – à luz da Lei de Migração brasileira.
O sentido da norma insculpida no art. 100, caput, da Lei de Migração – que não pode ser desvirtuado – é muito claro: quando não couber extradição executória (este é o caso dos brasileiros natos) também não cabe a transferência da execução da pena. Essa foi a opção do nosso legislador em 2017, não havendo outra interpretação possível. Tollitur quaestio.
Perceba-se que, no art. 105, § 2º, da Lei de Migração, ao cuidar da transferência de pessoa condenada, a regra é a mesma: “Não se procederá à transferência quando inadmitida a extradição” [grifo nosso]. Que se vá adiante em outros dispositivos da mesma Lei. De fato, a mesma regra aparece em norma sobre deportação (art. 53): “Não se procederá à deportação se a medida configurar extradição não admitida pela legislação brasileira” [grifo nosso]. Também, no que tange à expulsão, prevê o art. 55, I, da mesma Lei: “Não se procederá à expulsão quando a medida configurar extradição inadmitida pela legislação brasileira” [grifo nosso]. Note-se, portanto, que no espírito da Lei a regra da não extraditabilidade de brasileiros natos é impeditiva das medidas referidas, dentre elas, a transferência da execução da pena
O art. 100, caput, da Lei de Migração não está fora desse mosaico normativo uniforme – que deve ser interpretado sistemático e teleologicamente – e que claramente impede as medidas de deportação, expulsão, transferência da execução da pena e transferência de pessoa condenada nos casos em que for inadmitida a extradição. Assim como não há contestação da regra nas outras hipóteses legais, também não há como contestar no caso da transferência da execução da pena, pois essa foi a opção do legislador brasileiro e que está em vigor entre nós.
Portanto, da mesma forma que o Brasil jamais deportará, expulsará ou transferirá um brasileiro nato condenado para o exterior, também não autorizará a transferência da execução da pena a que foi condenado um brasileiro nato em país estrangeiro. A lógica dos dispositivos é a mesma, e qualquer interpretação contrária demonstra desconhecimento do conjunto normativo que está diante do intérprete.
Apenas tratados internacionais específicos podem disciplinar a questão de modo contrário – não para autorizar a extradição de brasileiros natos, obviamente – e permitir que, estando o brasileiro nato no Brasil, cumpra aqui a pena imposta no Estado estrangeiro. Em casos tais, não se estaria violando o impedimento de extradição de brasileiros natos e o problema se resolveria. Se não houver norma internacional (convencional) em vigor permissiva, a homologação da decisão estrangeira pelo STJ, para efeitos de transferência de execução da pena, será contra legem.
Ocorre que, justamente com a Itália, o único tratado de cooperação judiciária em matéria penal existente prevê, no seu art. 1º, § 3º, que a cooperação entre os dois países em matéria penal “não compreenderá a execução de medidas restritivas da liberdade pessoal nem a execução de condenações” [grifo nosso]. Foi uma opção das duas soberanias, na cooperação internacional judiciária em matéria penal, excluir a execução de medidas restritivas da liberdade e a execução de condenações.
Este tratado foi celebrado em 17 de outubro de 1989 e entrou em vigor no Brasil em 1993, tendo sido utilizado normalmente nas relações de cooperação judiciária em matéria penal entre Brasil e Itália há vários anos. Se houver outro tratado sobre a mesma matéria, disciplinando a questão de modo diverso entre as partes, o problema se resolve à luz do art. 30 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que regula a “aplicação de tratados sucessivos sobre o mesmo assunto”. Não parece, contudo, ser o caso de Brasil e Itália, haja vista a inexistência de outro tratado de cooperação judiciária em matéria penal aplicável às relações de ambos.
O pleito do Estado estrangeiro para a transferência da execução da pena é recebido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que, nos termos do art. 281 do Decreto que regula a Lei de Migração (Decreto nº 9.199/2017), exercerá a função de autoridade central “e realizará o exame da presença dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos na legislação brasileira ou em tratado de que o País faça parte, a fim de que o pedido de transferência de execução da pena possa ser processado…”. Portanto, o tratado entre Brasil e Itália deverá ser estritamente observado por este órgão executivo, para o fim de não admitir o pedido de transferência de execução da pena do jogador.
Se houver permissão em tratado, o órgão executivo encaminha o pedido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para a homologação da decisão estrangeira, para que surta efeitos no Brasil. Contudo, repita-se, no caso entre o Brasil e a Itália o Ministério da Justiça e Segurança Pública deverá observar o tratado de cooperação os dois países e concluir pela inadmissibilidade de eventual pleito italiano ao Brasil, pois a norma internacional em vigor nega expressamente a transferência da execução da pena nas relações bilaterais entre ambas as potências.
Se, inadvertidamente, o Ministério da Justiça e Segurança Pública enviar o pleito ao STJ para homologação, a Corte Superior deverá observar o tratado entre o Brasil e a Itália, sob pena de julgamento contra legem. Assim também deverá fazer o STF em eventual julgamento de recurso que leve o caso ao conhecimento do Pretório Excelso.
Já houve casos em que a Corte Superior não observou devidamente a Lei de Migração – casos envolvendo outros países com os quais o Brasil não tinha tratado expresso – e autorizou a transferência da execução da pena, mas tal deverá ser corrigido de pronto, dado que, também ali, não se observou que a Lei de Migração brasileira só admite a medida quando for possível a extradição executória. No caso do jogador brasileiro, a questão se completa pela existência de tratado entre os dois Estados, que não há de passar desapercebido do âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública quando da análise dos requisitos de admissibilidade do pedido.
Poderia, no entanto, haver promessa de reciprocidade no lugar de tratado entre Brasil e Itália? Para brasileiros natos, a resposta é também negativa. De fato, a Lei de Migração admite, no art. 100, parágrafo único, inciso V, ser um dos requisitos para a transferência da execução da pena que haja “tratado ou promessa de reciprocidade”. Para que a promessa de reciprocidade tenha lugar ao caso, deverá, evidentemente, amoldar-se à hipótese permissiva do caput do art. 100, isto é, quando for possível a transferência da execução da pena nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória.
Ademais, a promessa de reciprocidade só é possível quando não houver tratado internacional em vigor em sentido contrário, pois nenhuma promessa diplomática pode superar previsão expressa em norma internacional firmada e ratificada pelo Brasil com outro Estado estrangeiro. Qualquer promessa de reciprocidade que viole tratado internacional em vigor é inválida, por afrontar norma aprovada pelo Congresso Nacional – expressão da democracia brasileira e da soberania popular – e vigorante entre os dois Estados.
Além disso, uma promessa de reciprocidade sempre poderá ser revogada ou refeita pelas autoridades centrais ou diplomáticas a qualquer momento, o que não ocorre com os tratados internacionais stricto sensu, que somente podem deixar de valer por ato formal de denúncia do Presidente da República, antes aprovado pelo Parlamento Federal. Esta última questão está em debate no STF, no julgamento da ADI 1625/DF, relativa à denúncia da Convenção nº 158 da OIT, em que se defende a impossibilidade de denúncia sem o assentimento prévio do Congresso Nacional (já com vários votos pela procedência da ação). Só por isso já se veem as diferenças entre um simples ato diplomático e uma denúncia de tratado internacional de que o Estado é formalmente parte, o que faz compreender que as promessas de reciprocidade não podem valer mais do que as leis ou tratados internacionais em vigor no Brasil.
Portanto, quando não couber solicitação de extradição executória – e, ainda mais, como é o caso da Itália, havendo tratado não permissivo da transferência da execução da pena – também não será possível que se opere a medida no direito brasileiro. Perceba-se que há uma uniformidade de temas versados pela lei e por instrumento internacional de que o Brasil é parte, que, sistemática e teleologicamente, perfaz um todo coerente à conclusão do entendimento jurídico, ainda que se possa criticar a decisão do legislador (nacional ou internacional).
Assim, à luz tanto de tratado internacional específico entre Brasil e Itália quanto da Lei de Migração brasileira – cuja regra se ampara em mandamento constitucional – não será juridicamente possível que o jogador brasileiro condenado na Itália cumpra a pena no Brasil. O instituto da transferência da execução não é uma alternativa às hipóteses em que não cabe a extradição de nacionais, e sim medida coerente com todas as demais normas da Lei de Migração – desde há muito na tradição do direito brasileiro – que impedem ações restritivas transfronteiras quando vedada a extradição de brasileiros natos.
Este será um tema que o Congresso Nacional poderá revisitar futuramente, bem assim a diplomacia brasileira na negociação de outro tratado bilateral com a Itália ou outros países. Contudo, no atual estágio do direito brasileiro as regras são bem claras e quaisquer decisões executivas ou judiciárias em sentido contrário serão absolutamente contra legem. Não se duvide, porém, de que elas poderão vir. Mas isso, como diria Kipling, é uma outra história.