Coluna Observatório do STF
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Origem do impeachment
O impeachment tem origem na Inglaterra. Instituto penal, no início, adquiriu depois natureza política, como forma de afastamento do Gabinete e sua substituição, por indicação do Parlamento[1]. Transplantado para os Estados Unidos, num sistema presidencialista, readquiriu em certa medida natureza punitiva, embora político/administrativa também, com a destituição, e perda de direitos políticos, pela conduta contrária a certos preceitos do direito constitucional e administrativo. Dali, expandiu-se para outros países presidencialistas da América Central e do Sul, inclusive para o Brasil, após a proclamação da República, perdendo a razão de ser nos sistemas parlamentaristas.
O impeachment passou a fazer parte dos checks and balances, ou balança do poder, mecanismo pelo qual um dos órgãos de poder do estado se investe atipicamente da função precípua de outro, para alterar a determinação de vontade do primeiro. Tal como se põe hoje, talvez não esteja mesmo apto aos fins a que se propõe, conforme vários e importantes autores.
Houve diversas tentativas de instauração de processo de impeachment contra Presidentes da República no Brasil. Nenhum pedido chegou ao Senado Federal, exceto o de Fernando Collor de Melo, em 1992.
Sua natureza divide ainda os estudiosos.
De um lado, Brossard, em obra clássica[2], na esteira da doutrina tradicional, afirma que o processo “tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado segundo critérios políticos – julgamento que não exclui, antes supõe, é óbvio, a adoção de critérios jurídicos.”. Ilustra o raciocínio com uma comparação: na Inglaterra o impeachment atinge a autoridade e castiga o homem; nos EUA fere apenas a autoridade.
Como processo estritamente político, tem caráter discricionário, separado do arbítrio pelo aspecto processual. Essa discricionariedade se pauta por juízo de conveniência e oportunidade, quanto ao mérito, tal qual a tradicional doutrina do direito administrativo. Daí, a afastabilidade de exame de mérito pelo Poder Judiciário. Menciona, na República Velha, doutrina que lhe pareceu uníssona no sentido de que a decisão do Senado, e mesmo da Câmara, em matéria de impeachment, não pode ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal. Admite, no entanto, que o STF nem sempre esteve nessa posição, como ocorreu em 1916, no caso Habeas Corpus 4.091, do Mato Grosso. Para ele, depois de 1946, a doutrina do STF estaria em fórmula de conciliação – processo misto, isto é, político/ penal.
Constituição Federal
Atualmente, a Constituição do Brasil, em seu art. 52, diz que compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade. O art. 85 arrola, indicativamente, tais crimes, que devem ser definidos por lei especial, versando sobre processo e julgamento. A lei ainda em vigor é a 1.079/50, recebida pela Constituição de 1988, exceto em alguns pontos, aliás importantes. O art. 86, cabeça, da Lei Maior, dispõe que compete ao Senado julgar o Presidente da República em tais casos, sem referir o processo.
A jurisprudência das últimas décadas do STF[3] afirma, a partir do caso Collor, que a acusação, juízo de pronúncia também é do Senado: por exemplo, o MS 21.623, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 17.12.1992. Por outro lado, no MS 26.062- AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes definiu-se a também a “Impossibilidade de interposição de recurso contra decisão que negou seguimento à denúncia”. Vale dizer, o Judiciário se afasta da decisão que tem relação com o mérito, mesmo no início. No mesmo sentido: MS 25.588- AgR, Rel. Min, Menezes Direito, julgamento em 2.4.2009. De outra parte, este ano, várias decisões, no caso Dilma Rousseff, afetaram o procedimento e o processo.
Recentemente, na ADPF 378/2016, o Supremo Tribunal Federal definiu, pelo voto condutor do Ministro Luís Roberto Barroso, que, ao admitir a instauração do processo “A Câmara exerce assim juízo eminentemente político”, e que,cabendo ao Senado Federal processar e julgar (art. 52 da C. F.), compete-lhe também fazer o juízo de admissibilidade do processo, isto é, do recebimento ou não da denúncia, que antes era feito pela Câmara. Por isso mesmo, nesse julgamento, o STF entendeu que não foram recepcionados pela Constituição de 1988 os arts. 23, § 1º e 5º, 80, 1ª parte, e 81 da Lei 1.079, que dispunham em sentido contrário. E, mais, que a instauração do processo no Senado se dá por maioria simples, por analogia do art. 47 da Lei 1.079, relativo ao processo de Ministros do STF e do Procurador Geral da República. E, finalmente, que, para a formação da Comissão Especial na Câmara de Deputados, não é possível apresentar chapa avulsa e somente por voto aberto.
Quanto ao mérito, não há no Brasil uma jurisprudência pacífica, podendo-se apontar decisão quase isolada: M.S. 21.689, DJ 7.4 1995. Isso porque o único caso a chegar ao Senado foi o de Fernando Collor de Mello, extinto antes do veredicto, com a renúncia.
A doutrina esteve mais inclinada a entender que a decisão de mérito do Senado Federal é insindicável pelo Poder Judiciário. Paulo Brossard[4] afirma que a Constituição, explícita e implicitamente, repele a interferência do Poder Judiciário em assuntos de impeachment, seja por via de recurso seja por via de revisão. Ou mesmo, por outro lado, a interferência do Poder Executivo, por anistia, indulto ou comutação. Apoia-se na doutrina fixada no Corpus Juris Secundum, nos EUA, na doutrina inglesa, norte-americana e na de brasileiros, como Ruy Barbosa, Carlos Maximiliano, e Epitácio Pessoa, com a exceção de Aurelino Leal.
Os argumentos colocados em dúvida
Porém, os argumentos de Brossard – e de outros – podem ser postos em dúvida. Pontes de Miranda[5], o maior jurista brasileiro, manifesto opinião oposta, ao reproduzir comentário de João Barbalho, sobre o impeachment e a Constituição então vigente:
“(…) Aplicou ao acusado o salutar princípio que se lê no seu art. 72, § 15, e no art. 1º do Código Penal. E tirou, quer à Câmara dos Deputados, quer ao Senado, todo poder discricionário que nisto de outro modo lhes ficaria pertencendo. Deste feitio, ficou consagrado que o presidente denunciado deverá ser processado, absolvido ou condenado, não absque lege e por meras considerações de ordem política, quaisquer que sejam, mas por procedimento de caráter judiciário, mediante as investigações e provas admitidas em direito, e julgado secundum acta e probata. E de outro modo deturpar-se-ia o regime presidencial, podendo as câmaras, sob qualquer pretexto, demitir o presidente; dar-se-ia incontrastável predomínio delas. A posição de chefe da nação seria coisa instável e precária, sem independência, em garantias.” (grifei). Mais recentemente, Manoel Gonçalves Ferreira Filho[6], criticou a ideia de juízo meramente político da Câmara dos Deputados e sustentou que “o impeachment que não se fundar em figura descrita na lei carece de justa causa. Pode dar lugar assim a recurso ao Judiciário, por ensejar lesão a direito individual, com base no art. 5º, XXXV.”.
A acrescentar que o Poder Judiciário, no Brasil e muitos outros países, há algumas décadas, passou a entender que também os atos discricionários, e não somente os vinculados, podem sofrer, embora cum grano salis, o exame de mérito, quando houver desvio ou ausência de finalidade, ou motivação. A doutrina tradicional firmara-se antes do segundo pós-guerra, momento em que a teoria do direito sofreu importante alteração, com o chamado pós-positivismo, e o constitucionalismo de valores.
Por outro lado, a tese de impossibilidade de anistia da punição por meio de ato do Congresso Nacional também pode ser discutida. Brossard buscara apoio na doutrina norte-americana – um tanto hesitante – mas fora bem pouco além disso. O argumento perde consistência na medida em que o pressuposto do processo de impeachment, segundo ele, é o juízo de conveniência e oportunidade, o caráter discricionário que caracteriza a natureza política do processo. Assim, se num primeiro momento, por decisão discricionária, o Congresso considerou cabível o afastamento, porque num segundo momento não poderia aprovar a anistia por meio de decisão também discricionária? Restaria saber se a anistia teria o efeito de repor o Presidente no cargo, ou simplesmente apagar a perda de direitos.
Na Constituição do Brasil, o art. 48, VIII prevê como atribuição do Congresso Nacional suaconcessão por meio de lei ordinária, sujeito o projeto a sanção ou veto do Presidente da República. A anistia está voltada para crime político – conceito jurídico indeterminado, assim considerado em decisão do STF – podendo coincidir ou não com o crime de responsabilidade. De qualquer forma, sendo de natureza tipicamente política a anistia, quem poderá infirmar a decisão do Congresso que vê crime político como de responsabilidade?
Todos os raciocínios desenvolvidos até aqui são prioritariamente jurídicos. Mas a apreciação e definição sobre a natureza jurídica ou política ou jurídica do impeachment por um tribunal não está longe da política e da conjuntura. Pelo contrário. O próprio STF convalidou os atos praticados sob o amparo do AI 5, na ditadura militar. Nos momentos de crise, a política define o direito, e às vezes melhor que o direito, ao contrário do que queria Ruy Barbosa. Na Inglaterra, foi assim com o instituto do impeachment.
Se a situação política de um determinado país – o Brasil, por exemplo – atingir um determinado ponto de ebulição e pressão, em que um Presidente se veja afastado por uma decisão exclusivamente política – sem relação com a tipificação legal – nada obsta que se conceba que o Supremo Tribunal Federal, por critérios também discricionários de interpretação da lei, diante de uma crise agravada por diversos motivos, e as multidões nas ruas,reveja pontos de vista de muitas décadas, e infirme a decisão de mérito do Senado da República. Mormente em tempos de ativismo judicial. Aliás, no processo instaurado na Câmara, e iniciado no Senado, os argumentos para aprovação são bastante discutíveis, para não dizer improvisados.
Como se disse, não são poucos nem insignificantes os autores que dizem que o impeachment é inepto para os fins que anuncia. Talvez seja. Enquanto existir, porém, terá que haver algum grau de controle sobre ele. Mas a condição é sempre política.
[1] Maurice, Duverger. Os regimes políticos, DIFEL,1966, explica: “O mecanismo da evolução é por demais simples: os Comuns logo se habituaram a utilizar-se do impeachment para se livrar de um ministro cuja obra desaprovavam, sem qualquer crime da parte dele; aliás, sistema particularmente odioso, que chegava a aplicar a um inocente uma pena bastante grave (a decapitação para o Conde de Strafford[1] e o Arcebispo Land). Mas os ingleses logo encontraram uma saída por onde fugir desse inconveniente: logo que a Câmara agitava a ameaça de impeachment, provocava a demissão do ministro, instruído prudentemente pelo exemplo de seus predecessores.”.
[2] O Impeachment – aspectos da responsabilidade política do Presidente da República: Livraria do Globo: Porto Alegre, 1965.
[3] A Constituição e o Supremo, 3ª ed.- Brasília: STF, Secretaria de Documentação, 2010.
[4] Op. cit.
[5] Comentários à Constituição de 1967 com a emenda nº 1, tomo III., 3ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1987.
[6] Comentários à Constituição brasileira de 1988, v. 2. – São Paulo: Saraiva, 1992.
Marcus Vinicius Martins Antunes é Articulista do Estado de Direito – Responsável pela Coluna Observatório do STF, Advogado, Professor Titular e Doutor pela UFRGS.