Impeachment: soberania do Senado ou do Supremo Tribunal Federal?

Coluna Observatório do STF

Se você deseja se tornar um colunista do site Estado de Direito, entre em contato através do e-mail contato@estadodedireito.com.br
Créditos: Antonio Cruz/Agência Brasil

Créditos: Antonio Cruz/Agência Brasil

Origem do impeachment

O impeachment tem origem na Inglaterra. Instituto penal, no início, adquiriu depois natureza política, como forma de afastamento do Gabinete e sua substituição, por indicação do Parlamento[1]. Transplantado para os Estados Unidos, num sistema presidencialista, readquiriu em certa medida natureza punitiva, embora político/administrativa também, com a destituição, e perda de direitos políticos, pela conduta contrária a certos preceitos do direito constitucional e administrativo. Dali, expandiu-se para outros países presidencialistas da América Central e do Sul, inclusive para o Brasil, após a proclamação da República, perdendo a razão de ser nos sistemas parlamentaristas.

O impeachment passou a fazer parte dos checks and balances, ou balança do poder, mecanismo pelo qual um dos órgãos de poder do estado se investe atipicamente da função precípua de outro, para alterar a determinação de vontade do primeiro. Tal como se põe hoje, talvez não esteja mesmo apto aos fins a que se propõe, conforme vários e importantes autores.

Houve diversas tentativas de instauração de processo de impeachment contra Presidentes da República no Brasil. Nenhum pedido chegou ao Senado Federal, exceto o de Fernando Collor de Melo, em 1992.

Sua natureza divide ainda os estudiosos.

De um lado, Brossard, em obra clássica[2], na esteira da doutrina tradicional, afirma que o processo “tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado segundo critérios políticos – julgamento que não exclui, antes supõe, é óbvio, a adoção de critérios jurídicos.”. Ilustra o raciocínio com uma comparação: na Inglaterra o impeachment atinge a autoridade e castiga o homem; nos EUA fere apenas a autoridade.

Como processo estritamente político, tem caráter discricionário, separado do arbítrio pelo aspecto processual. Essa discricionariedade se pauta por juízo de conveniência e oportunidade, quanto ao mérito, tal qual a tradicional doutrina do direito administrativo. Daí, a afastabilidade de exame de mérito pelo Poder Judiciário. Menciona, na República Velha, doutrina que lhe pareceu uníssona no sentido de que a decisão do Senado, e mesmo da Câmara, em matéria de impeachment, não pode ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal. Admite, no entanto, que o STF nem sempre esteve nessa posição, como ocorreu em 1916, no caso Habeas Corpus 4.091, do Mato Grosso. Para ele, depois de 1946, a doutrina do STF estaria em fórmula de conciliação – processo misto, isto é, político/ penal.

 

Constituição Federal

constituição federal Governo GuaíraPR - Cópia

Crédtios: Governo de Guaíra/PR

Atualmente, a Constituição do Brasil, em seu art. 52, diz que compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade. O art. 85 arrola, indicativamente, tais crimes, que devem ser definidos por lei especial, versando sobre processo e julgamento. A lei ainda em vigor é a 1.079/50, recebida pela Constituição de 1988, exceto em alguns pontos, aliás importantes. O art. 86, cabeça, da Lei Maior, dispõe que compete ao Senado julgar o Presidente da República em tais casos, sem referir o processo.

A jurisprudência das últimas décadas do STF[3] afirma, a partir do caso Collor, que a acusação, juízo de pronúncia também é do Senado: por exemplo, o MS 21.623, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 17.12.1992. Por outro lado, no MS 26.062- AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes definiu-se a também a “Impossibilidade de interposição de recurso contra decisão que negou seguimento à denúncia. Vale dizer, o Judiciário se afasta da decisão que tem relação com o mérito, mesmo no início. No mesmo sentido: MS 25.588- AgR, Rel. Min, Menezes Direito, julgamento em 2.4.2009. De outra parte, este ano, várias decisões, no caso Dilma Rousseff, afetaram o procedimento e o processo.

Luis Roberto Barroso

Ministro Luís Roberto Barroso | Céditos: Sampaio/SCO/STF

Recentemente, na ADPF 378/2016, o Supremo Tribunal Federal definiu, pelo voto condutor do Ministro Luís Roberto Barroso, que, ao admitir a instauração do processo “A Câmara exerce assim juízo eminentemente político”, e que,cabendo ao Senado Federal processar e julgar (art. 52 da C. F.), compete-lhe também fazer o juízo de admissibilidade do processo, isto é, do recebimento ou não da denúncia, que antes era feito pela Câmara. Por isso mesmo, nesse julgamento, o STF entendeu que não foram recepcionados pela Constituição de 1988 os arts. 23, § 1º e 5º, 80, 1ª parte, e 81 da Lei 1.079, que dispunham em sentido contrário. E, mais, que a instauração do processo no Senado se dá por maioria simples, por analogia do art. 47 da Lei 1.079, relativo ao processo de Ministros do STF e do Procurador Geral da República. E, finalmente, que, para a formação da Comissão Especial na Câmara de Deputados, não é possível apresentar chapa avulsa e somente por voto aberto.

Quanto ao mérito, não há no Brasil uma jurisprudência pacífica, podendo-se apontar decisão quase isolada: M.S. 21.689, DJ 7.4 1995. Isso porque o único caso a chegar ao Senado foi o de Fernando Collor de Mello, extinto antes do veredicto, com a renúncia.

A doutrina esteve mais inclinada a entender que a decisão de mérito do Senado Federal é insindicável pelo Poder Judiciário. Paulo Brossard[4] afirma que a Constituição, explícita e implicitamente, repele a interferência do Poder Judiciário em assuntos de impeachment, seja por via de recurso seja por via de revisão. Ou mesmo, por outro lado, a interferência do Poder Executivo, por anistia, indulto ou comutação. Apoia-se na doutrina fixada no Corpus Juris Secundum, nos EUA, na doutrina inglesa, norte-americana e na de brasileiros, como Ruy Barbosa, Carlos Maximiliano, e Epitácio Pessoa, com a exceção de Aurelino Leal.

 

Os argumentos colocados em dúvida

Porém, os argumentos de Brossard – e de outros – podem ser postos em dúvida. Pontes de Miranda[5], o maior jurista brasileiro, manifesto opinião oposta, ao reproduzir comentário de João Barbalho, sobre o impeachment e a Constituição então vigente:

“(…) Aplicou ao acusado o salutar princípio que se lê no seu art. 72, § 15, e no art. 1º do Código Penal. E tirou, quer à Câmara dos Deputados, quer ao Senado, todo poder discricionário que nisto de outro modo lhes ficaria pertencendo. Deste feitio, ficou consagrado que o presidente denunciado deverá ser processado, absolvido ou condenado, não absque lege e por meras considerações de ordem política, quaisquer que sejam, mas por procedimento de caráter judiciário, mediante as investigações e provas admitidas em direito, e julgado secundum acta e probata. E de outro modo deturpar-se-ia o regime presidencial, podendo as câmaras, sob qualquer pretexto, demitir o presidente; dar-se-ia incontrastável predomínio delas. A posição de chefe da nação seria coisa instável e precária, sem independência, em garantias.” (grifei). Mais recentemente, Manoel Gonçalves Ferreira Filho[6], criticou a ideia de juízo meramente político da Câmara dos Deputados e sustentou que “o impeachment que não se fundar em figura descrita na lei carece de justa causa. Pode dar lugar assim a recurso ao Judiciário, por ensejar lesão a direito individual, com base no art. 5º, XXXV.”.

A acrescentar que o Poder Judiciário, no Brasil e muitos outros países, há algumas décadas, passou a entender que também os atos discricionários, e não somente os vinculados, podem sofrer, embora cum grano salis, o exame de mérito, quando houver desvio ou ausência de finalidade, ou motivação. A doutrina tradicional firmara-se antes do segundo pós-guerra, momento em que a teoria do direito sofreu importante alteração, com o chamado pós-positivismo, e o constitucionalismo de valores.

Por outro lado, a tese de impossibilidade de anistia da punição por meio de ato do Congresso Nacional também pode ser discutida. Brossard buscara apoio na doutrina norte-americana – um tanto hesitante – mas fora bem pouco além disso. O argumento perde consistência na medida em que o pressuposto do processo de impeachment, segundo ele, é o juízo de conveniência e oportunidade, o caráter discricionário que caracteriza a natureza política do processo. Assim, se num primeiro momento, por decisão discricionária, o Congresso considerou cabível o afastamento, porque num segundo momento não poderia aprovar a anistia por meio de decisão também discricionária? Restaria saber se a anistia teria o efeito de repor o Presidente no cargo, ou simplesmente apagar a perda de direitos.

Fonte: commons wikimedia

Fonte: commons wikimedia

Na Constituição do Brasil, o art. 48, VIII prevê como atribuição do Congresso Nacional suaconcessão por meio de lei ordinária, sujeito o projeto a sanção ou veto do Presidente da República. A anistia está voltada para crime político – conceito jurídico indeterminado, assim considerado em decisão do STF – podendo coincidir ou não com o crime de responsabilidade. De qualquer forma, sendo de natureza tipicamente política a anistia, quem poderá infirmar a decisão do Congresso que vê crime político como de responsabilidade?

Todos os raciocínios desenvolvidos até aqui são prioritariamente jurídicos. Mas a apreciação e definição sobre a natureza jurídica ou política ou jurídica do impeachment por um tribunal não está longe da política e da conjuntura. Pelo contrário. O próprio STF convalidou os atos praticados sob o amparo do AI 5, na ditadura militar. Nos momentos de crise, a política define o direito, e às vezes melhor que o direito, ao contrário do que queria Ruy Barbosa. Na Inglaterra, foi assim com o instituto do impeachment.

Se a situação política de um determinado país – o Brasil, por exemplo – atingir um determinado ponto de ebulição e pressão, em que um Presidente se veja afastado por uma decisão exclusivamente política – sem relação com a tipificação legal – nada obsta que se conceba que o Supremo Tribunal Federal, por critérios também discricionários de interpretação da lei, diante de uma crise agravada por diversos motivos, e as multidões nas ruas,reveja pontos de vista de muitas décadas, e infirme a decisão de mérito do Senado da República. Mormente em tempos de ativismo judicial. Aliás, no processo instaurado na Câmara, e iniciado no Senado, os argumentos para aprovação são bastante discutíveis, para não dizer improvisados.

Como se disse, não são poucos nem insignificantes os autores que dizem que o impeachment é inepto para os fins que anuncia. Talvez seja. Enquanto existir, porém, terá que haver algum grau de controle sobre ele. Mas a condição é sempre política.

 

[1] Maurice, Duverger. Os regimes políticos, DIFEL,1966, explica: “O mecanismo da evolução é por demais simples: os Comuns logo se habituaram a utilizar-se do impeachment para se livrar de um ministro cuja obra desaprovavam, sem qualquer crime da parte dele; aliás, sistema particularmente odioso, que chegava a aplicar a um inocente uma pena bastante grave (a decapitação para o Conde de Strafford[1] e o Arcebispo Land). Mas os ingleses logo encontraram uma saída por onde fugir desse inconveniente: logo que a Câmara agitava a ameaça de impeachment, provocava a demissão do ministro, instruído prudentemente pelo exemplo de seus predecessores.”.

[2] O Impeachment – aspectos da responsabilidade política do Presidente da República: Livraria do Globo: Porto Alegre, 1965.

[3] A Constituição e o Supremo, 3ª ed.- Brasília: STF, Secretaria de Documentação, 2010.

[4] Op. cit.

[5] Comentários à Constituição de 1967 com a emenda nº 1, tomo III., 3ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1987.

[6] Comentários à Constituição brasileira de 1988, v. 2. – São Paulo: Saraiva, 1992.

 

 Marcus Vinicius Martins AntunesMarcus Vinicius Martins Antunes é Articulista do Estado de Direito – Responsável pela Coluna Observatório do STF, Advogado, Professor Titular e Doutor pela UFRGS.

 

Picture of Ondaweb Criação de sites

Ondaweb Criação de sites

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua. Ut enim ad minim veniam, quis nostrud exercitation ullamco laboris nisi ut aliquip ex ea commodo consequat. Duis aute irure dolor in reprehenderit in voluptate velit esse cillum dolore eu fugiat nulla pariatur. Excepteur sint occaecat cupidatat non proident, sunt in culpa qui officia deserunt mollit anim id est laborum.

Cadastra-se para
receber nossa newsletter