Gandhi e a verdadeira r-evolução

Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

 

Giancarla Brunetto*

 

Era uma noite fria, com muito vento e chuva forte. Período de férias letivas na UFRGS. O filme, com 188 minutos de duração, poderia ser um convite ao sono. Mas o que se viu diante da tela grande, na Sala Redenção, foi uma pacífica, emocionante e revolucionária viagem de um homem, o Grande Espírito. Uma revolução em busca da verdade, da libertação de seu País, e da própria humanidade, mediante a valorização de uma ética baseada na não-violência e na justiça. Refiro-me ao filme Gandhi, coprodução Índia e Reino Unido realizada em 1982 sob a direção de Richard Altenborough. Dos onze Oscars aos quais concorreu, ganhou oito, além de vários outros prêmios. E ganha sempre plateias atentas e comovidas diante da biografia dramática de um dos grandes líderes pacifistas, o indiano Mohandas Gandhi.
Gandhi formou-se em Direito em Londres, e anos mais tarde passou a enfrentar discriminações na África do Sul e protestar contra a discriminação racial. Suas iniciativas eram ousadas e por isso mesmo impensáveis em uma época de total domínio colonial do Reino Unido. Sem usar de ações violentas, mesmo nas várias vezes em que sofreu violência policial e do governo britânico, Gandhi começava através de seus gestos e exemplos uma vida devotada à causa da independência da Índia, o que significa, mais profundamente, a causa da independência humana de qualquer forma de tirania ou opressão.
É de Gandhi a afirmação “Há coisas pelas quais estou disposto a morrer, porém não há nenhuma pela qual estou disposto a matar”. Diante do opressor, a não-violência é a maior forma de expressão de superioridade moral. Resistir, resistir sempre. Pacificamente, mas não passivamente. A resistência é uma ação, a não aceitação da violência mediante a não retribuição da violência (“a-himsa”, ou persistência pela verdade) e a busca de uma vida em harmonia, justa e correta (“satiagraha”, ou viver em santidade). Para Gandhi, a não-violência implica em não provocar, não matar, mas também implica em não obedecer uma lei injusta, e estar disposto a sacrificar-se por uma causa: “Eles vão ter o meu corpo morto, não a minha obediência”. A não-violência implica, pois, em sofrimento consciente. Um nível elevado de consciência, de evolução espiritual, quando os oprimidos, colonizados, discriminados, unem-se enquanto coletivo, e purificam-se individualmente, para opor-se a um regime injusto. Estamos diante de um processo revolucionário, emancipatório, liderado na Índia por Gandhi através da não-violência e da desobediência civil.
Entende-se por desobediência a oposição à obediência. Em um ordenamento jurídico, desobedecer significa estar “fora-da-lei”, não cumprir com as obrigações legais, políticas, constitucionais. Entretanto, Norberto Bobbio faz uma distinção entre a desobediência comum e a desobediência civil. A primeira refere-se a atos de transgressão, sem finalidade social. Já a desobediência civil é uma forma de manifestação diante do que se considera como lei injusta ou como lei ilegítima, ou ainda, como lei inválida ou inconstitucional. Quem pratica atos de desobediência civil pretende modificar o ordenamento jurídico, e mesmo sendo desobediente, não considera ser transgressor, na medida em que está tentando mostrar exatamente a injustiça do ordenamento vigente. O desobediente civil é o cidadão que se sente no dever moral de acatar as leis justas, e confrontar as leis injustas.
Há várias formas de manifestar o descontentamento diante de políticas colonialistas, imperialistas de dominação, de atos autoritários, ditatoriais. A sociedade civil organiza-se mediante a organização de piquetes, boicotes, ocupações, não cooperação. Embora uma parcela da própria sociedade muitas vezes critique essas ações, considerando-as ilegais, ou mesmo atos de vandalismo, na verdade são respostas democráticas de não aceitação de situações consideradas opressoras. Assim foi, por exemplo, quando jovens americanos queimaram convocações para ir lutar na Guerra do Vietnã, ou quando a negra Rosa Parks foi presa no Alabama por não ceder seu assento a um branco. Gandhi foi desobediente civil ao realizar protestos em nome dos direitos civis da minoria hindu, ao agir contra a segregação racial na África do Sul, e liderar a Marcha para o Sal, pela independência da Índia. Ao fazer jejum diante de ações violentas, o que ele não aceitava em qualquer hipótese. Foi preso inúmeras vezes, foi acusado de subversivo, foi testemunho de massacres cometidos pelos ingleses nas tentativas de conter uma massa já convencida de seu poder revolucionário em busca da independência, pela não-violência e auto-sacrifício. A Índia, finalmente liberta do controle britânico, ficou dividida com a fundação do Domínio do Paquistão, em 1947, numa porção leste e outra à noroeste da Índia. Era evidentea decepção de Gandhi com essa cisão entre muçulmanos e hindus, como era também fato que ele continuou a acreditar na não-violência e no diálogo como busca de convencimento no processo revolucionário.
Thoreau já havia escrito em seu ensaio Civil Disobedience que “existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até a sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente?”. A vida, o exemplo e as ações de Gandhi ficam como referências que apontam a possibilidade, sempre, de buscar novos horizontes. Em qualquer tempo, lugar e situação. Resistir, desobedecer, recusar o injusto, almejar o justo. Transgredir, para evoluir.

 

*Cineasta e escritora. Mestranda em Educação/UFRGS. Coordenadora da Liga dos Direitos Humanos da UFRGS.

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