Função punitiva e Direito Privado: outros rumos para uma discussão

Coluna Direito Privado no Cotidiano

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Foto: TRT-2

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Função punitiva

O Direito Privado é, tradicionalmente, conhecido como área do Direito que se ocupa de reparações, de compensações e de restituições. A função punitiva, ainda que não lhe seja estranha – e isso prova-se pela restituição em dobro da cobrança indevida feita de má-fé, pela cláusula penal punitiva, pela pena por sonegação de bens em inventário, dentre outros institutos –, consiste em manejo excepcional e muito pontual do Direito Privado. A função punitiva tem sido objeto de debate especialmente ante a discussão a respeito da fixação de acréscimo pecuniário a ser pago cumulativamente à indenização por dano ou, ainda, no caso de responsabilização civil na ausência de dano.

Inadequadamente, em verdadeira contraditio in terminis, fala-se muito sobre indenização punitiva, descurando-se do caráter reparatório/compensatório do próprio termo indenização que significa “sem dano”. O uso da expressão indevida, aliás, apenas revela e promove a confusão da natureza da condenação, misturando-se indevidamente as funções compensatória e punitiva.

Para que haja uma autêntica pena privada, deve ocorrer a distinção entre a reparação/compensação devida e o plus devido a título de pagamento devido a título de punição. A reparação do dano material e a compensação do dano imaterial possui fundamentos e quantificação própria, medindo-se pela extensão do dano, ao passo que a punição representa um juízo de censura, fundamentando-se em motivação diversa e com critérios de dosimetria diversos daqueles relativos ao dano em si.

A responsabilização civil de caráter punitivo enseja debates muito mais complexos do que vem sendo irresponsavelmente alardeados pelo senso comum teórico. A começar pela ausência de correlação entre dano moral e punição. O dano moral deve, por si só, ser indenizado. A pena privada é aplicável cumulativamente com dano material, imaterial e até mesmo ante a absoluta ausência de dano. A ligação entre dano moral e punição decorre muito mais da ausência de desvencilhamento de uma época na qual se tinha incerteza sobre o caráter autônomo de uma indenização por dano imaterial do que de uma real natureza híbrida da indenização. Hoje, sem dúvida alguma, o dano não-patrimonial é indenizável de per se, o que torna altamente duvidosa a utilidade e a correção do recurso ao caráter punitivo que pode assumir o Direito Privado.

A punição, diferentemente do que ocorre com as compensações, reparações e restituições, depende de uma razão muito mais intensa para justificar-se, vez que deriva de juízo repressivo –  e não da reposição do status quo ante. A repreensão, assim, emerge de uma aferição circunstanciada da ação, do resultado e da motivação – cognição dispensável no âmbito tradicional do Direito Privado.

A dimensão punitiva do jus privatum demanda uma série de debates que há muito são feitos na Common Law e na Civil Law em território europeu. Afinal: a) dada a pessoalidade da pena, a morte do condenado extingue o débito oriundo da condenação?, b) o valor  de uma pena deveria ser entregue para a vítima, para o Estado, para um fundo?, c) a função punitiva deve ser desempenhada em situações específicas ou seria possível uma cláusula geral repressiva?, d) dependendo de razões específicas, quais?, d) a responsabilidade objetiva é compatível com um juízo punitivo?, e) a pena privada é aplicável cumulativamente com a sanção administrativa? f) deduz-se da responsabilidade civil punitiva o quantum já pago a título de sanção administrativa ou até mesmo de pena pecuniária criminal?

Conclusão

As questões acima são muito delicadas e não há consenso sobre elas. Não iremos, aqui neste espaço, enfrentá-las. É certo, contudo, que a aplicação de uma pena privada na responsabilidade civil, porém, dá-se em termos completamente diversos do que a alardeada função punitiva da indenização por dano moral. A mera contemplação dos problemas acima expostos já revela o absoluto descontrole da aplicação da pena privada no país onde tais aspectos sequer são abordados.

Longe de propor soluções, apenas gostaria de apontar o problema de que os pressupostos e meios de implementação das penas privadas sequer são discutidos no Brasil, ao mesmo tempo em que virou lugar-comum advogar-se uma função punitiva no âmbito da responsabilidade civil por dano imaterial.

Referências

ALPA, Guido. Che cos’è il diritto privatto? Roma: Laterza, 2007.
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Derecho y Economía. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1999.
GALLO, Paolo. Pene Private e Responsabilità Civile. Milano: Giuffrè, 1996.
MICHELON JR., Cláudio Fortunato. Um ensaio sobre a autoridade da razão no direito privado. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. 21, março/2002.
ROSENVALD, Nelson. As funções da Reponsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
VAZ, Caroline. Funções da Responsabilidade Civil: da reparação à punição e dissuasão: os punitive damages no Direito Comparado e Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

 

Tiago Bitencourt De David é Articulista do Estado de Direito, Juiz Federal Substituto da 3ª Região, Mestre em Direito (PUC-RS), Especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo, Espanha). Bacharel em Filosofia pela UNISUL.
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