França: controle de constitucionalidade. E no Brasil: controle preventivo?

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A França e o controle de constitucionalidade

A França, dentre os países de projeção internacional e tradição constitucionalista, foi dos últimos a introduzir o controle de constitucionalidade. Até então, isto é, até 1946, como em outros países, prevalecia a ideia de Etat Légal, que compreendia, entre outras características, a soberania legislativa dos representantes em assembleia.

Uma razão, sempre apresentada, que, em parte, explica, de fato: a França desenvolvera uma particular desconfiança em relação aos juízes, em razão de seu comprometimento e conduta durante o Ancien Régime.

A própria Corte de Cassação, hoje existente com função distinta, fora criada, logo após a Revolução de 1789, para proibir toda e qualquer interpretação das leis pelos juízes, conforme explica Cappelletti[1], retomando a sempre lembrada expressão de Montesquieu – eles deveriam ser “les bouches qui prononcent les paroles de la loi”, bocas inanimadas, sem vontade e criação.

O controle de constitucionalidade na França é tradicionalmente preventivo. Há que esclarecer: é, entre os países citados inicialmente, com exceção de Portugal (que o possui um tanto mais restritamente), o único que possui um controle material preventivo. Ou seja, os projetos de lei já aprovados, mas não promulgados, podem ser objeto de pronúncia de inconstitucionalidade, em razão de seu conteúdo.

Mesmo assim, esta afirmação tem de ser relativizada, por força da revisão da Constituição, em julho de 2008, que introduziu o controle a posteriori, ou repressivo, de natureza incidental, mas não de exceção, como se demonstra adiante. Este incidente, denominado “question prioritaire de constitutionnalité”, pela Lei Orgânica de 10 de dezembro de 2009, foi logo chamada QPC, no uso corrente.

Esta questão é suscitada somente pelas partes, em qualquer momento do processo, mas somente pode ser transmitida, em decisão motivada, pela Corte de Cassação ou pelo Conselho de Estado, dois órgãos máximos contenciosos, isto é, de exame de litígios, de casos concretos. E o juiz do caso que dá origem não pode suscitar a questão de ofício.

 

Conselho Constitucional

O órgão de estado que possui o monopólio da pronúncia de inconstitucionalidade é o Conselho Constitucional, criado em 1958, constituído de nove integrantes, mais todos os ex-presidentes da República.

Conselho Constitucional em Paris

Conselho Constitucional em Paris

Dos nove, um terço é de indicação do Senado, um terço, da Assembleia Nacional e um terço, do Presidente da República, que ocupa, mais ou menos, posição intermediária entre os Presidentes, nos chamados regimes presidencialistas, e o Primeiro Ministro, no sistema parlamentarista. O mandato é de nove anos, sem possibilidade de recondução.

Podem ser objeto de impugnação as leis, os regulamentos das assembleias e os tratados internacionais, em face da Constituição. Os projetos de Lei Orgânica (no sentido que o termo possui na França), e outros, previstos no artigo 11 da Constituição, antes do referendo por que devem passar, são obrigatoriamente levados a exame desse Conselho.

Podem propor o controle a priori o Presidente da República, os Presidentes das assembleias parlamentares, isto é, do Senado e da Assembleia nacional, ou, desde 1974, sessenta deputados. Esta última possibilidade abriu caminho de acesso das minorias ao sistema, democratizando-o.

O Conselho Constitucional já decidiu que não ter competência para o controle de convencionalidade, isto é, da compatibilidade das leis com os tratados e convenções internacionais concertados pela França, mesmo que estes últimos sejam hierarquicamente superiores, nos expressos termos do art. 55 da Constituição.

No entanto, o Conselho de Estado, órgão de muita importância na construção jurisprudencial constitucional anterior à criação daquele Conselho, e de alguma forma por ele induzido, entendeu-se competente, a partir de decisões em 1975 e 1979, para a verificação de compatibilidade das leis francesas com a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. E, sobretudo, mais recentemente, com a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, aprovada pelo Tratado de Lisboa, em 2007.

De outro lado, a partir de uma decisão do próprio Conselho Constitucional, em 1971, esse controle tem por parâmetro o chamado bloco de constitucionalidade, ou seja, o texto da Constituição de 1958, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, o Preâmbulo da Constituição de 1946, o preâmbulo da Constituição de 1958, e a Carta do Meio Ambiente, de 2004.

Trata-se de um conceito histórico-cumulativo, aplicado (erradamente, naquele caso, em nosso ver), na célebre decisão que reconheceu constitucional a proibição do uso da burca, nas vias públicas.

As decisões de procedência do Conselho, quando faz exame a priori, têm efeito vinculante, eficácia erga omnes e efeito ex nunc, não anulando os atos do processo legislativo, mas impedindo a entrada em vigor da lei não promulgada ainda. O controle a priori também tem efeito vinculante e contra todos.

Portanto, continua a não existir na França a pronúncia de exceção, com exclusão da lei apenas para o caso que deu origem à saisine. No caso de procedência, temporalmente, tem eficácia ex nunc ou efeito diferido para momento posterior, nos termos da nova redação do art. 62 da Constituição. Isso, segundo a jurisprudência dessa Corte, mediante justificativa própria e específica.

No novo âmbito da questão prioritária constitucional, o Conselho Constitucional tem proferido, em sessões fechadas, 60 decisões por ano, em média, publicadas com ementas de breves consideranda, sem indicação de votos. Até 2013, a maioria das decisões, 137, foi pela constitucionalidade (“conformité à la constitution”); pela constitucionalidade com reserva, 8; sem exame de mérito, 14; pela inconstitucionalidade total, 43; pela inconstitucionalidade parcial, 23.

Michel Verpeaux

Michel Verpeaux

A declaração de inconstitucionalidade com reserva de interpretação parece muito próxima de nossa interpretação conforme a constituição. Tais dados, e uma precisa apresentação do tema, se encontram em clara obra do professor Michel Verpeaux[2], da Université Paris 1, Panthéon Sorbonne, sobre o novo sistema.

Por outro lado, segundo dados do próprio Conselho Constitucional, em sua função tradicional de controle preventivo, até agosto 2015, deram-se 716 pronúncias, entre a não conformidade, a conformidade parcial e a conformidade integral. São dados bastante reduzidos, em comparação com o Supremo Tribunal Federal, mas relativamente próximos das estatísticas da Suprema Corte estadunidense.

O objetivo dessa descrição, bastante breve, em artigo, é indicar um avanço bastante nítido do sistema de controle de constitucionalidade francês. E apontar, também, para outra direção: o que se apontava como defeito – o controle preventivo – é apenas uma insuficiência. E, sem contradição ou paradoxo, uma virtude do sistema, que foi completado, ao se fechar o círculo. E há um terceiro propósito: cogitar desse modelo para fora da França.

Chama, por isso mesmo, atenção o fato de que existem resistências muito fortes, quase sistemáticas, na maioria dos países de tradição constitucional, à adoção do controle preventivo de constitucionalidade.

Na doutrina nacional e estrangeira, a par de certo desprezo pelo exame do assunto, aparecem objeções mais ou menos constantes e similares. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho[3]

“A experiência revela que toda a tentativa de organizar um controle preventivo tem por efeito politizar o órgão incumbido de tal controle, que passa a apreciar a matéria segundo o que entende ser a conveniência pública e não segundo a sua concordância fundamental com a lei fundamental.”

Isso não está demonstrado no caso francês, inclusive tomando por base a estatística apontada acima.

A crítica de Cappelletti, processualista comparatista, se dirige ao caráter limitado do controle a priori na França, e à falta de um controle repressivo, dado o caráter dinâmico e evolutivo da lei e da própria Constituição, e ante da mutabilidade dos fatos, que pode alterar negativamente a relação de compatibilidade necessária.

No entanto, a obra do autor é anterior ao avanço da jurisprudência do Conselho Constitucional, da própria revisão constitucional de 2008, e das leis orgânicas respectivas que se seguiram.

A França, que se considerava atrasada, parece agora estar à frente, já que o círculo de controle de constitucionalidade está completo, ao menos no aspecto sistêmico. Isso parece estar sendo desprezado, até certo ponto, pela doutrina. Haverá mesmo razões consistentes para não adotar o controle a priori? Porque da resistência aludida? É difícil responder a esta última indagação. Parece necessário melhor pesquisar, no âmbito da sociologia e da psicologia jurídica e judiciária.20110217181546406_0001

Junto com a França, Portugal também dispõe de um controle preventivo sobre certos atos normativos, previsto no art. 278 da Constituição, ao lado do sistema repressivo, ambos praticados pelo Tribunal Constitucional. Não parece haver inconformidade com isso nesse país, pelo menos a julgar por dois de seus (ou os dois mais) destacados constitucionalistas.

José Joaquim Canotilho[4], por exemplo, faz uma crítica a meias, referindo a possibilidade de politização das decisões. Mas não cita casos em que isso tenha ocorrido. Por outro lado, admite a tese do mal menor, que é a própria virtude do sistema.

Jorge Miranda[5] o admite sem reservas, referindo o controle preventivo como:

“Instrumento de defesa da Constituição contra violações grosseiras e inequívocas vindas de actos normativos mais importantes.”

Poderia o Brasil também fazer o fechamento do círculo de controle e adotar o sistema preventivo?

 

Controle político X Controle preventivo

Entre nós, o professor Anderson Cavalcante Lobato[6] defendeu a ideia, há mais tempo, em artigo muito consistente. Entre outras considerações, procura dissipar a falsa confusão entre controle político e controle preventivo. Mesmo porque o mesmo receio é manifestado em relação ao controle judicial: a politização do órgão competente. E temos assistido alguma inclinação para isso no Supremo Tribunal Federal.

STF

Anos atrás, diante da sobrecarga do Supremo Tribunal Federal, e com vista à celeridade e economia, o Ministro Cezar Peluso, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, sugeriu, no encontro do “Terceiro Pacto Republicano”, a adoção do controle judicial preventivo. Porém, sob pressão, desistiu.

O controle de constitucionalidade preventivo goza de uma presunção lógica de vantagem, que não pode ser desconhecida, como se tem insistido em fazer. Por que não pensar mais seriamente, aqui no Brasil (e em outros países), também em suas óbvias vantagens de economia e segurança jurídica? O debate, que não devia ter sido subestimado, deve ser reaberto.

 

[1] Cappelletti, Mauro. O controle de constitucionalidade das leis no direito comparado. – Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992.

[2] La question prioritaire constitutionnel. – Paris: Hachette supérieur, 2013.

[3] Curso de direito constitucional, 33 ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2007.

[4] Direito constitucional e teoria da constituição.- Livraria Almedina: Lisboa, 1998.

[5] Manual de direito constitucional, tomo II, 2ª ed., revista.   Coimbra: Coimbra Editora, 1983.

[6] Para uma nova compreensão do controle misto: aceitação do controle preventivo. – Revista de Informação Legislativa, ano 31, nº 124. – Brasília, out./dez. 1994.

 

Marcus Vini1d70dbecius Martins Antunes é Professor titular da PUCRS. Doutor em Direito, Especialista em Ciência Política. Membro do Instituto dos Advogados do Brasil. Membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul. Advogado especialista em Direito Público.

 

 

Artigo publicado na 48ª edição do Jornal Estado de Direito. Acesse aqui!

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