Comentários sobre o anteprojeto de Lei Anticrime apresentada pelo Ministério da Justiça

Foto: Open Source

Coluna Direito como Resistência

COMENTÁRIOS SOBRE O ANTEPROJETO DE LEI ANTICRIME APRESENTADA PELO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA[1]

A normativa enviada pelo Poder Executivo, altera de maneira concisa 14 (quatorze) leis federais que tratam das matérias de direito penal e processual penal sem o necessário debate com a sociedade civil, a discussão com os especialistas, a maturação do anteprojeto de lei em audiências públicas e seminários, firmando um documento autoritário, autocentrado e em descompasso com o Estado Democrático de Direito.

De pronto, salta aos olhos que um anteprojeto que causa significativas alterações ao ordenamento jurídico pátrio, que foi respaldado de anúncio oficial para imprensa, de coletivas e entrevistas oficiais para os principais veículos de comunicação do país, sequer tenha uma exposição de motivos para respaldar e esclarecer seu significado e justificativa, bem como os elementos técnicos, teóricos que norteiam o material que, caso aprovado, transformará profundamente a vida da população brasileira.

Dentre a alteração de inúmeras legislações de longas jornadas de debate, o anteprojeto em discussão procura cambiar artigos do Código Penal de 1940. Ressalte-se que a última grande reforma no presente código foi realizada pela Lei 7.209/1984 em anteprojeto de redação de Nelson Hungria, cumprindo fazer menção a Comissão Revisora do projeto, onde juristas do peso de Hélio Tornaghi, Roberto Lyra, Aníbal Bruno e Heleno Fragoso trabalharam incessantemente em uma legislação que é contemporânea aos estudos científicos do direito penal[2], legislação que passou por seminários e debates contínuos entre sociedade civil e especialistas.

Foto: Agência Brasil

Cumpre informar que texto produzido pelo Ministério da Justiça, equivocadamente clama para a estratégia normativa e ultrapunitivista, a partir do endurecimento da legislação penal e da diminuição das garantias processuais aos réus, soluções essas, que há tempos são demonstradas pela ciência penal como meramente populistas e inócuas para lidar com os conflitos sociais, servindo apenas para inflar o sistema carcerário e reforçar o ciclo da violência.

O equivocado e mal redigido anteprojeto parte do pressuposto que a lei controlará a sociedade, sem avaliar os reflexos secundários que as alterações legislativas terão no cotidiano da sociedade brasileira e no dia-a-dia da justiça do país, e assim, na ganância por punição desmedida, olvida-se da misericórdia e da redenção.

Pergunte-se: Haverá justiça na sede de vingança?

De pronto, o anteprojeto transparece a intenção de oficializar eventuais “lacunas” legislativas, supridas por agentes estatais, à margem da legislação pátria, por aquilo que cientificamente se denomina ativismo judicial.

Quanto ao ponto, chama atenção à alteração legislativa que tende a esclarecer o que é, e quando pode ser utilizada a execução provisória da pena no Código de Processo Penal, o que se repise, não tem qualquer disciplina na legislação pátria e foi aplicada por interpretação criativa dos magistrados brasileiros.

Não é distinto quando o anteprojeto procura oficializar os convênios, acordos e compartilhamento de provas entre órgãos investigativos nacionais e estrangeiros, não exigindo qualquer previsão em tratado internacional assinado pelo Brasil com a justiça conveniada ou qualquer formalização ou autenticação especial para o compartilhamento de tais informações, o que também causa estranheza, vez que é uma questão delicada e sigilosa da operação lava jato.

As alterações propõe ainda a hipertrofia do Ministério Público, a partir da experiência anglo-saxônica do plea-bargaining, autorizando a proposição de acordos de não investigação ou mesmo de aplicação imediata da pena pelo Parquet à defesa, a partir da confissão do delito pelo réu, o que ademais de fortalecer em demasia o órgão ministerial, potencializa a arbitrariedade da autoridade, uma vez que o acordo poderá (e não deverá!), ser oferecido. Não obstante que, em um país de imensa desigualdade no acesso à justiça, transformará o instrumento em acordos forçados com réus fragilizados sem a devida assistência de seu defensor, servindo o instrumento para, mais uma vez, favorecer os polos mais fortes da relação jurídica.

Foto: Wikipédia

Quanto aos mencionados equívocos técnicos de redação, o texto cria novas excludentes de punição penal, a partir de expressões subjetivas como “medo” e “surpresa”, termos pouco técnicos e permeados de dubiedade, que empoderam a já hipertrofiada autoridade judiciária, possibilitando-a absolver ou condenar o cidadão em face da diferente experiência emocional vivida pelo magistrado.

No mesmo sentido causa profunda preocupação que as excludentes do medo, surpresa e violenta emoção, sirvam, para bem da verdade, como instrumentos que reforcem o preconceito e a perseguição de vulneráveis a partir da rotulação e da estigmatização social de raça/cor, orientação sexual, religião e gênero, gerando a impunidade dos varões sob a alcunha do receio, do espanto e da defesa da honra.

Ainda, é importante mencionar que toda legislação criada no país deve acordar com posições pacificadas nas cortes superiores e, por esse sentido, a melhor técnica desaconselha que temas em dissonância com decisões recorrentes, sumuladas e por muitas décadas assentadas, sejam apresentados como nova legislação, sob pena de gerar significativo conflito nos tribunais, gerando lentidão e tumulto no Poder Judiciário.

Apesar do exposto, ao elaborar o texto, o poder executivo estabeleceu o regime obrigatoriamente fechado em diversas situações, impondo o regime inicial fechado em outras e vedando as saídas temporárias aos aprisionados, o que se sabe, é vedado pela própria Constituição Federal, pois viola o princípio da individualização das penas, consagrado no Art. 5º XLVI da CF.

Foto: Fotos Públicas

No mesmo caminho, propôs ao estabelecimento prisional federal um sistema de execução penal típico do Regime Disciplinar Diferenciado, ocorre, pois, que o RDD tem limite temporal (360 dias) e somente ocorre em caso de falta grave, não havendo qualquer dispositivo legal que autorize o tratamento distinto para as pessoas encarceradas em prisão federal, o que levará tumulto às cortes brasileiras e tratamento desigual para cidadãos do mesmo país.

Como mencionado, a normativa elaborada pelo ministério preza pela ambiguidade, dando significativa margem a interpretação do magistrado, o que sempre foi criticado pelo próprio redator ao longo de sua carreira forense. É possível perceber esse padrão legislativo quando do endurecimento do crime de resistência que passa para penas de 6 (seis) a 30 (trinta) anos quando causar risco de morte a autoridade, novamente hiperinflando o poder dos agentes do estado, que em regra tendem a reforçar o arbítrio estatal frente ao cidadão.

Ademais, é importante reforçar que qualquer proposição de alteração processual penal sem profunda discussão com os atores processuais causará profundos danos no cotidiano dos tribunais brasileiros, pois a visão de um único agente não pode refletir a complexidade do sistema processual brasileiro.

É importante reforçar o caráter ultrapunitivista da Lei Anticrime, sem negar o eventual respaldo sanguinário do senso comum, é a temperança e razão que se espera do ministério da justiça, e ao inverso do esperado, o ordenamento proposto vai à contramão do pensamento contemporâneo das ciências penais e é um sério agravante para um país que vive relevante crise econômica e significativos índices de encarceramento. Por esse sentido, avançar sob as reflexões de penas alternativas, o desencarceramento, o estímulo à mediação e alternativas para lidar com o conflito penal, são uma necessidade social e demonstram o grau de sapiência do administrador público.

Por esse sentido, a elaboração de uma melhor estratégia para o sistema penal brasileiro deve necessariamente passar por profundos debates com a sociedade civil organizada, com a Ordem dos Advogados do Brasil, com o Ministério Público, a Defensoria Pública, os diversos órgãos de representação da Magistratura, o próprio Ministério da Justiça, com o Congresso Nacional e com a Academia, em comunhão de ideais e espaço equânime para deliberação de problemas, expectativas, anseios e frustrações. A participação dessas entidades em longo e profundo debate se faz fundante para que qualquer alteração legislativa seja verdadeiramente democrática.

Dado o exposto, não há como fechar os olhos para o avanço das pesquisas, as experiências bem sucedidas de administração do sistema penal em outros países, fazendo-se necessário um olhar iluminado, voltado para as garantias ao cidadão e proteção do indivíduo, e não para o pensamento obscuro que apenas fortalece o despotismo e a tirania.

Notas:

[1] Trata-se de texto base, em versão original, redigido pelo autor, e que serviu de base para a nota técnica da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, alterada coletivamente e publicada em http://www.comissaojusticaepazdf.org.br/anteprojeto-de-lei-anticrime-do-governo-federal-nota-tecnica-da-cjp-df/.

[2] http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7209-11-julho-1984-356852-exposicaodemotivos-148879-pl.html

 

Eduardo Xavier Lemos, Mestre em Direito, Estado e Constituição – UnB. Especialista em Ciências Penais. Articulista do Jornal Estado de Direito, responsável pela coluna Direito como Resistência. – PUC-RS. http://lattes.cnpq.br/5217401632601710

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