O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu no último dia 19 não cabe à Corte julgar conflitos de atribuição entre o Ministério Público Federal e os Ministérios Públicos dos Estados.
Por maioria, os Ministros não conheceram das Ações Cíveis Originárias nºs. 924 e 1394 e das Petições nºs. 4706 e 4863, com o entendimento de que a questão não é jurisdicional, e sim administrativa, e deve ser remetida ao Procurador-geral da República.
O relator, Ministro Luiz Fux, levantou questão preliminar sugerindo que não havia conflito federativo e, portanto, o Supremo Tribunal Federal não devia conhecer do feito. Seguiram esse entendimento os Ministros Teori Zavascki, Joaquim Barbosa (aposentado), Luís Roberto Barroso e Rosa Weber. O Ministro Marco Aurélio abriu divergência, no sentido de conhecer do conflito e estabelecer a atribuição do Ministério Público Federal.
Ao trazer (aliás, muito tardiamente) o voto-vista convergente com o relator, o Ministro Dias Toffoli observou que o encaminhamento dos conflitos de atribuição ao Supremo Tribunal Federal muitas vezes interrompe as investigações (por culpa, exatamente, da demora dos julgamentos dessas ações na própria Corte) “por anos a fio, às vezes décadas” (por que a demora mesmo?). Para ele, não compete ao Judiciário dirimir esses conflitos, e sim direcioná-los ao Procurador-geral da República, que, na condição de chefe do Ministério Público, decida-os como entender de direito. Para o Ministro Toffoli, os conflitos de atribuição são uma questão interna da instituição: “Em que pese a irradiação de suas atribuições em vários órgãos, o MP é uma instituição una e indivisível, e conta com um órgão central, o procurador-geral da República”, afirmou, fazendo um paralelo com a atribuição do Procurador-Geral da República, de caráter de nacional, para propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade, escolher o representante dos Ministérios Públicos estaduais no Conselho Nacional de Justiça e de apresentar ao Supremo Tribunal Federal pedidos de intervenção nos Estados.
O Presidente da Corte observou que, além de se tratar de matéria administrativa, e não jurisdicional, o Supremo “não tem condição de dar vazão à miríade de pedidos de solução de conflitos de competência (sic) em tempo hábil”, e muitos casos podem sofrer a prescrição diante da demora involuntária na sua solução. Eles destacou, porém, o princípio da inafastabilidade da jurisdição. “Caso o Procurador-Geral da República profira uma decisão considerada teratológica ou contrária ao direito das partes, sempre caberá recurso ao Supremo Tribunal Federal”, afirmou.
O Ministro Marco Aurélio, relator das Petições nºs, 4706 e 4863, reiterou o voto já proferido nas Ações Cíveis Originárias no sentido de que, quando a Constituição da República não designa o órgão competente para dirimir um conflito, cabe ao Supremo Tribunal Federal fazê-lo. Ele ressaltou que o Procurador-geral da República é chefe do Ministério Público Federal, mas não dos estaduais, que são chefiados pelo Procurador-Geral de Justiça.
Vejam: mais um erro flagrante da Corte Constitucional brasileira, e, também mais uma vez, seguindo entendimento do Procurador-Geral da República. Acertou apenas o Ministro Marco Aurélio.
Não que entendamos que se trate de um conflito federativo. Óbvio que não! A questão é que não cabe nem ao Superior Tribunal de Justiça dirimir tal conflito (por ausência de previsão constitucional), tampouco às chefias dos Ministérios Públicos da União e dos Estados, por se tratarem de Instituições absolutamente independentes entre si, razão pela qual desde 1995 o Supremo Tribunal Federal havia assumido esta competência.
Aliás, a Suprema Corte, ainda no final do ano passado, julgando uma Ação Cível Originária, cuja relator foi o Ministro Celso de Mello, afirmou que “implicava ofensa à autonomia institucional do Ministério Público dos estados, exigir-se que a sua atuação processual se faça por intermédio do senhor procurador-geral da República, que não dispõe de poder de ingerência na esfera orgânica do ‘parquet’ estadual, pois lhe incube, unicamente por expressa definição constitucional a chefia do Ministério Público da União”, acrescentando que “o Ministério Público estadual não é representado, muito menos chefiado, pelo senhor procurador-geral da República, eis que é plena a autonomia do ‘parquet’ local em face do eminente chefe do Ministério Público da União”.
O relator frisou ainda que o Ministério Público dos Estados não está vinculado nem subordinado, no plano processual, administrativo ou institucional, à Chefia do Ministério Público da União, por isso tem direito de postular, autonomamente, em sede originária, perante o Supremo: “Tais são as razões pelas quais também não compete ao eminente senhor procurador-geral da República o poder para dirimir conflitos de atribuições entre membros de Ministérios Públicos estaduais entre si ou, ainda, entre integrantes do Ministério Público da União e agentes do Ministério Público dos estados-membros, eis que, em referidas situações de antagonismo, a atribuição originária para resolver eventuais conflitos (positivos ou negativos) pertence ao Supremo Tribunal Federal.”[1]
Quanto coerência! Quanto integridade nos julgamentos! Ora, o Procurador-Geral da República chefia o Ministério Público da União e não pode ter qualquer ingerência nas atribuições dos membros do Ministério Público estadual (é só conferir o art. 128, I e II da Constituição Federal e, obviamente, não ser um analfabeto funcional). Aquelas atribuições do Procurador-Geral da República referidas no voto-vista do Ministro Dias Toffoli estão expressamente previstas na Constituição Federal e, portanto, não servem como argumento para a conclusão.
Não há falar-se em hierarquia entre Ministério Público da União e Ministério Público do Estado. O Procurador-Geral da República não pode decidir acerca da atribuição de um Promotor ou de um Procurador de Justiça. Isso é inconstitucional. É desconhecer a Constituição Federal e, de certo modo, até o pacto federativo.
Restava mesmo apenas ao Supremo Tribunal Federal resolver este conflito. Esta é uma posição defendida há mais de duas décadas pelos Professores Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[2] e Afrânio Silva Jardim[3].
O Supremo Tribunal Federal já havia decidido neste sentido pela primeira vez no julgamento da Petição nº. 3.528-3 – BA (em 1995), tendo como Relator o Ministro Marco Aurélio. A partir deste julgamento, várias outras decisões se sucederam.
É bem verdade que nem concordamos na judicialização desta questão, mesmo porque, repita-se, não é um caso de conflito federativo. Mas, tampouco, aceitamos caber ao Procurador-Geral da República dirimi-lo.
De lege ferenda, entendemos que seria mais adequado, seja do ponto de vista do acima analisado sistema acusatório (art. 129, I, da Constituição Federal), seja sob o prisma institucional (art. 127, §§ 1º. e 2º., da Carta Magna), seja sob o aspecto constitucional (art. 130-A, § 2º. da Constituição Federal), que tais conflitos de atribuição fossem decididos pelo Conselho Nacional do Ministério Público, órgão constitucionalmente legitimado para o controle do “cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”.
Para tanto, acrescentar-se-ia ao art. 130-A, § 2º. da Constituição Federal, o inciso VI, com a seguinte redação: “dirimir conflitos de atribuições entre membros do Ministério Público de Estados diversos e entre estes e os membros do Ministério Público da União”.
Fica, portanto, a sugestão para um Projeto de Emenda à Constituição.
Notas e Referências:
[1] http://www.conjur.com.br/2015-dez-24/nao-compete-pgr-decidir-conflito-atribuicao-entre-mps-decide-stf
[2] O Ministério Público no Processo Civil e Penal, Rio de Janeiro: Forense, 5ª. ed., 1995, pp. 211 e segs.
[3] Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 10ª. ed., 2001, p. 233.