Filosofia do Martelo: santificação do riso e vias de fuga – III parte

Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

 

 

 

 

*Paola Cantarini Guerra

              “ANTÍGONA”, assim como as tragédias “ELECTRA” e “MEDEIA” representa  o feminino, o sagrado, a magia, aspectos fundamentais da política e do Direito atualmente, em especial ante a crise auto imunitária do Direito, que é também epistemo-ecológica, quando ocorre a perversão do Direito, tal como vem sendo trabalhada por filósofos e juristas, tomando tais personagens como exemplos de “homo sacer” (Giorgio Agamben), revelando por trás do véu das aparências, a fragilidade e ineficácia dos Direitos Humanos, o embuste da democracia representativa formalista, a farsa do Estado Democrático de Direito, e a verdadeira face do Direito – subordinado aos ditames do capital, o anti-Direito, estado de exceção mal disfarçado, a paródia do Direito, , junto à esquizofrenia da política e à pobreza da Filosofia, da experiência humana (W. Benjamin), traumatizada pela igualmente humana, demasiada e desmedidamente humana violência.Trata-se portanto, de se recuperar a ligação na verdade indissolúvel do Direito com a Arte e com a Filosofia, rompida na modernidade com o formalismo (e com o humanismo), corroborando para a construção de uma visão alternativa à visão tradicional do Direito como ciência e técnica, puro, cartesiano, mas do Direito como poiético, como criação, sendo essencial o estudo de tais obras, e portanto, um retorno à Antiguidade clássica, a fim de permitir uma cognição mais aprofundada do Direito e do ser humano e um estímulo ao pensamento crítico. Mas aquilo que não nos mata nos torna mais fortes, como bem diz Nietzsche em seu livro “Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo”. Tratar-se-á dessa filosofia do martelo, antídoto para a doença do mundo, ou doença do homem no mundo.

            Haveria então, uma diferenciação, entre “Thémis” e “Diké” segundo Homero, bem como de acordo com o estudo etimológico de tais palavras pois Thémis se relaciona ao ‘por no lugar’, ‘acertar’, donde a palavra derivada thémose, significando ‘pôr o barco na rota certa’ (Cf. Odisséia, IX, 486). Contudo, segundo Esquilo as expressões são utilizadas de forma indiferenciada. De acordo com o grande lingüista Émile Benveniste, a palavra Diké, que viria a significar ‘justiça,’ designava primitivamente estas fórmulas pré-jurídicas, sendo cognata do latim dico, dicere (dizer) (cf. Le vocabulaire des institutions indo-européennes, Paris, 1969, vol. II, pp. 107ss.). “Thémis” é filha de Gaia, a terra, com Urano, o firmamento, da geração dos Titãs, deuses pré-olímpicos; trata-se do Direito relacionado às forças primordiais da natureza (Homero), deusa da ordem social, representando um padrão normativo do qual nem os deuses se desviavam. São referências a tal Deusa, oferecer rezas e libações aos deuses, honrar os mortos, o direito de dar um tratamento hospitaleiro aos forasteiros. Tratando-se da tragédia “Antígona”, vemos então tal heroína jovem representar aquela deusa, pois teria se insurgido contra o decreto imposto e injusto de Creonte, seu tio, justamente, por querer fazer respeitar os ritos sagrados de enterro dos mortos, para que alcançassem paz na travessia em direção a outra morada no pós morte. “Diké”, por outro lado, é resultante da deificação (hierofania) da noção abstrata de justiça, um desdobramento da titânica “Thémis”, relacionada a uma qualidade atribuível não apenas à sociedade humana, mas também ao mundo físico; é a portadora do Direito, o transmitindo do Olimpo para a terra. Representa a fusão das concepções religiosas, éticas e políticas gregas sobre a obrigação cívica, não tendo, contudo se diferenciado perfeitamente de um conjunto de regras seculares, algo como “ius”, em oposição ao “fas” romano. É retratada na tragédia “Medéia” por Eurípedes como a ordem geral da natureza, o modo como as coisas efetivamente ocorrem, e não como deveriam moralmente se portar. Na “Odisseia”, relaciona-se a atos de violência (Xl, 218; id., IV, 691); os povos que eram constituídos por dikaioi diferenciavam-se dos selvagens sem lei, bárbaros (cf. id., VI, 120; VII, 575; IX, 175; XII, 201; XII, 201 c/c XVIII 275 e em II, 52). Houve após uma transferência do termo Diké da linguagem poética para a judicial, passando a significar o processo judicial, as pretensões formuladas pelas partes (dikas: Odisseia, Xl, 570), a sentença (dikai), a sanção ou pena, e a norma jurídica em sentido lato, ou seja, o princípio geral do Direito. Por outro lado, para Hesíodo, em seu discurso poético-mitológico “Teogonia”, aparece uma terceira figura, nomos, englobando a ordem universal protegida por Zeus, dividida em dois setores, – o dos animais, irracional, e o dos homens, racional, ambos, porém, parte integrante da natureza (cf. “Teogonia”, versos 174 ss. p. 136). Nomos, que ao contrário de Diké e de Thémis, jamais foi personificado como uma divindade, designando uma determinada norma, enfeixando uma certa medida de direitos (subjetivos) que eram concedidos aos indivíduos. Outrossim, empregava-se o termo thesmós, embora mais em relação às regras solenes e sacramentais antigas, de certa forma semelhante com o sentido de nomos. A administração da justiça seria um ato não meramente cívico, mas também de caráter religioso e mágico. Os reis teriam a função e poder de pronunciar fórmulas normativas não-escritas (dikai), fórmula justa e eficiente, um dom concedido pelas Musas. A reta justiça seria pronunciar a fórmula correta com autoridade e incutir sua aceitação pelas partes envolvidas, assegurando a pacificação social e a ordem da natureza (pela mutualidade desta com a justiça).

   

         O resgate da importância do acervo grego de pensamento pré-socrático, que talvez melhor seria dizermos pré-platônico, entendemos que se deve muito a Nietzsche. Trata-se de postular também, e principalmente, não ser ele um anti-religioso, mesmo sendo nítido seu desprezo pelo cristianismo, não abrangendo, contudo, a pessoa de Cristo, como demonstra o seu livro, “O Anticristo”, dirigido sobretudo contra Paulo. Considerando-se o seu próprio método genealógico e fisiológico, revelador das verdadeiras e ocultas intenções dos que propugnam tábuas de valores fixadas religiosamente, a partir da determinação de sua origem em impulsos ou, “instintos”, oriundos da vontade de poder, torna-se plausível, verossímil caracterizar como religiosa esta pulsão fundamental em Nietzsche, focando agora no presente, no eterno retorno do mesmo, e não mais no passado e no futuro; visa-se verificar a superação da dicotomia, o dualismo e, pois, do pensamento simplificador e ilusório entre o que é bem e o que é mal, interiorizada pelo cristianismo, tarefa da qual teria se incumbido o A. Revela o A. uma nova forma de saber, surgida da coragem e do gosto pela aventura, pela experimentação (mesma raiz etimológica da palavra “perigo”), dando origem ao que Wolfgang Müller-Lauter, no último capítulo de sua obra clássica sobre nosso autor, valendo-se de uma expressão dele mesmo, denominou “religião das religiões”. Trata-se de uma “religião” – ou “anti-religião” -, que ao contrário das demais, até hoje produzidas, não é o resultado do medo, do terror diante da realidade, da natureza, mas que a aceita, ao invés de negá-la, produzindo “um outro mundo”. Esta seria a “religião” que, ao invés de dar suporte a uma moralidade de fracos, baseada em inverdades, preservaria o sentimento de poder, próprio do fervor religioso, resultante, porém, de uma fé no saber, saber de si e do mundo.

            A religião de Nietzsche, não seria então o resultado do terror diante da realidade, de seu “absolutismo”, de que fala Hans Blumenberg, por nos ser ameaçadora em quantos seres que se sabem finitos, terrificante mesmo, tornando-nos inseguros, donde a nossa tendência a negá-la, pelos mais diversos meios, sobretudo religiosos, mas a de que aceitemos a vida tal como ela se apresenta, com seu entrelaçamento de dor e prazer, sofrimento e alegria, em que prevalece o pólo positivo sobre o negativo, superando pelo êxtase – literalmente, supersticioso, da sobrevivência -, o nihilismo, tanto o positivo, da afirmação farisaica e romana da obediência às leis, como o negativo, do ressentimento vingativo dos que a elas estão assujeitados, sendo a expressão empregada por ele para traduzir tal sentimento aquela de amor fati, amor ao que se nos é destinado: aí bem que se poderia complementar a ideia nietzscheana com o “imperativo categórico” agostiniano, do “ama e fazes o que quiseres” (ama et fac quod vis). Dioniso é o deus da transformação, da transmutação, do devir, da parresia, do amor, da subversão, e nisso se opõe predominância do ser, à fascinação pela permanência, pela negação da velhice e da morte e, portanto, da própria vida, em sua plenitude. A religião de Nietzsche, então, vai se apresentar como uma religião sem igrejas, sem sacerdotes, sem uma vida no além e, mesmo, sem necessidade de divindades, embora elas possam ser reverenciadas e amadas pelo que nelas se manifesta de seus criadores, que as fazem a sua imagem e semelhança – numa inversão perfeita do Livro do Gênese: nós humanos.

            A transformação almejada, seja qual for, é resultado de uma prática orientada teoricamente, i. e., de um saber prático, mas produtivo, logo, “poiético” -, e não mera práxis, um saber-fazer (know-how) ou de uma “téc(h)n[(ét)ica]”, reprodutiva , exploradora de mundo, e neste sentido, a teologia é um saber prático, tal como considerada por John Duns Scot (1266 – 1308). Neste contexto é que se entende melhor o elogio que Nietzsche faz da força e nobreza dos romanos, em contraste com o “ressentiment par excellence” dos judeus, bem como a admiração ainda maior pelos gregos, capazes de enfrentar o aspecto trágico da existência com gratidão e alegria – isso até a disposição da ralé predominar, sob a influência de Sócrates, preparando o caminho para a posterior vitória do cristianismo (cf. “Para além do bem e do mal”, São Paulo: Companhia das Letras, 1992, § 49). Dioniso, sendo ele o deus da religião por vir, do que veio a se chamar de “pós-modernidade”. Ocorre que, para Nietzsche, se considerarmos seu pensamento, apesar de todas as modulações que atravessa, como fundamentalmente uno, ao que parece, o que nosso tempo, culturalmente doente, demandaria seria mesmo mais da ordem da Religião, enquanto Filosofia prática, do que de Filosofia teorética, pois esta última é avaliada, em um escrito praticamente juvenil, como adequada somente aos tempos de cultura saudável, como o dos gregos pré-socráticos (ou, mais precisamente, pré-platônico-aristotélicos), sendo o melhor que ela pode fazer, em uma época decadente como a nossa, é ajudá-la a decair, decaindo.

 

 

* Paola Cantarini Guerra. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.

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