A face monstruosa do capital

Coluna Democracia e Política

Se você deseja se tornar um colunista do site Estado de Direito, entre em contato através do e-mail contato@estadodedireito.com.br
Foto: wikipedia

Foto: Wikipedia

Em sua obra “O aberto” (Civilização Brasileira, 2017), o filósofo Giorgio Agamben procura definir a posição estratégica do ser vivo, a relação entre registros entre o homem e o animal e as consequências da polarização daí decorrentes. O autor inicia com a descrição de uma iluminura com cenas de caráter místico e messiânico do século XII depositada na Biblioteca Ambrosiana de Milão. A cena que contém o códice de toda a história da humanidade é dividida em duas metades na qual a superior estão os três animais presentes na origem do mundo segundo a tradição hebraica: o pássaro Ziz, o boi Behemoth e o grande peixe Leviatã.

Diz Agambem:

“A cena que interessa aqui, de modo particular, é a última em todos os sentidos…ela representa o banquete messiânico dos justos no último dia. À sombra de árvores paradisíacas e animados pela melodia de dois instrumentistas, os justos, com a cabeça coroada, sentam-se a uma mesa ricamente disposta…É surpreendente, no entanto, um detalhe que até agora não mencionamos: sob as coroas, o artista representou os justos não com semblantes humanos, mas com uma cabeça inconfundivelmente animal”.

A questão colocada para Agamben é: porque os representantes de toda a humanidade são retratados com cabeças animais? Ainda o autor recupere as diversas explicações no campo religioso e mistico , a opção de Agamben é em direção “ao tenebroso parentesco entre macrocosmo animal e microcosmo humano”. Essa relação não é tão simples como parece ser, e o autor acredita que o artista do manuscrito queria demonstrar, ao final, que “as relações entre animais e os homens serão compostas de uma nova forma e o próprio homem se reconciliará com a sua natureza animal”(p.12).

Em sua busca pelas origens desta representação, Agamben recupera o pensamento do filósofo Georges Bataille, também impressionado pelas representações de arcontes com cabeças de animais “Na mitologia gnóstica, os arcontes são as entidades demoníacas que criam e governam o mundo material”, diz. É sempre uma significação do “baixíssimo materialismo” gnóstico, que mistura formas humanas e bestiais. Bataille chegou a colocar na capa de sua revista Acéphale justamente um homem sem cabeça. O tema foi objeto da reflexão de outro pensador, Kojève, também preocupado com as relações do homem com a natureza “o mundo natural permanece aquilo que é desde toda a eternidade”, afirma.

Foto: wikipedia

Foto: Wikipedia

Tanto Bataille, Kojève e após, Baudrillard, são perseguidos pela ideia de “resto”, de algo que sobra da animalidade no humano e que nunca desaparece. O tema, por exemplo, emerge nas reflexões deste último sobre o resto na análise da reciclagem do lixo?—?cultural, simbólico e cognitivo?—?que para o autor dá mostras de que o tema retorna com vigor. Na cultura de massa não paramos de reciclar o mesmo lixo, retornar aos mesmos signos, afirma. O filósofo esloveno Slavoj Zizek também dedicou a esse tema atenção especial em seus documentários, ilustrando-se a famosa cena de onde, em um depósito de lixo urbano, o filósofo de Liubliana mostra o que queremos esconder  “Isto ( o lixo )na parte mais elementar de nossa experiência desaparece de nosso mundo. O problema é que o lixo não desaparece” (Examined Life, Direção Astra Taylor).

A ideia de “devir animal do homem” também esteve presente no pensamento do psicanalista Felix Guattari, para quem o desejo no campo social era o foco de sua análise. “Há toda uma política dos devires-animais, como uma política da feitiçaria: esta política se elabora em agenciamentos que não são nem os de família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles exprimiriam antes grupo minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas, mais secretos, ainda por serem extrínsecos, em suma anômicos” (Deleuze &Guattari, Mil Platôs 4, p. 31) Presença intima nas forças sociais, esse resto que sobra da animalidade, que Agamben afirma resistir na arte, no amor e no jogo que são em seu entendimento, expressões de uma natureza animal preservadas pelo homem, devem-se ao fato de que “os homens construirão seus edifícios e suas obras de arte como os pássaros constroem seus ninhos e as aranhas tecem suas teias”, citando Kojeve.

O retorno desta animalidade, seu fortalecimento, contudo, afirma Agamben, apresenta o caminho para o aniquilamento do homem, a começar pela “desaparição da linguagem humana, substituída por sinais sonoros ou mímicas comparáveis a linguagem das abelhas” (p.20). Essa volta a animalidade não está sendo observada nos fatos contemporâneos mais recentes? Não se trata do retrocesso da linguagem já observada junto aos jovens em seus smarthphones, em suas canções funks, cada vez mais tornando-se gutural e monossilábica? O que é a cena da Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, onde autoridades sérias debatiam-se “no tapa”, aos gritos, sobre a mesa da Presidência de Comissão se não a imagem aterradora de que também ela, a política, está retornando a animalidade? Não é também a própria ação politica que está se tornando animal? Nesse ponto, enquanto que Agambém persegue a tese do fim da história, sua análise não cabe também para o fim da politica propriamente dita?. Novamente, retornando ao pensamento de Kojève, Agamben reproduz a sentença definitiva:”O retorno do homem à animalidade aparece então não já como uma possibilidade futura, mas como uma certeza presente”(p.21).

Não é segredo na literatura que Agamben vale-se de figuras e estruturas religiosas como bases de análise da sociedade e da politica. Essa parece ser uma vertente de pensamento também em Slavoj Zizek, que dedicou alguns títulos de sua obra as relações do político com o religioso, sendo a obra “A monstruosidade de Cristo” (Editora Boitempo) a mais notável. Christian Dunker afirma que para Žižek a religiosidade é fundamental para entendermos a lógica da crença. Se a modernidade traz distanciamento das verdades teológicas, o capitalismo assume suas variáveis para consumo imediato“o capitalismo ecumênico, orientalista, new-age, ecológico, zen-budista, roots ou gótico-demonológico “. O retorno dos fundamentalismos e ódios étnicos, segundo a leitura de Dunker de Zizek, está na base de um certo “enfraquecimento ou de desimplicação generalizada de nossas formas de crença.” O que é feito da animalidade na pós-história, pergunta o autor de “O aberto”, que é também, para o autor, uma pergunta muito simples “o que é a vida?”.

Para Agamben o american way of life é a nossa atual modalidade de vida e a busca pela parcela animal presente ainda no capitalismo contemporâneo se dá para o autor em defini-lo como o campo onde se dão “ tensões dialéticas sempre já talhado por cortes que nele separam a cada vez a animalidade antropofóra e a humanidade que nela se encarna”(p.24). É fácil verificar que tudo no capitalismo inspira na animalidade: da pornografia a cultura do espetáculo, do consumismo exacerbado à exploração sem fim da natureza (Belmonte), não é sempre o capitalismo mostrando sua face…monstruosa, de animal, exatamente como descreve Agamben no personagem Teromorfo, esse ser metade humano, metade animal descrito no capítulo inicial de “O Aberto”? Agamben recupera a frase clássica do escritor Georges- Luis Buffon “Se os animais não existissem, a natureza do homem seria incompreensível”.

O capitalismo sabe que não conseguimos definir a vida e exatamente por isso, ele fornece algo que o articula, que lhe dá sentido. Aganmbem vê na crítica do american way life o primeiro lugar em que os filósofos puderam associar os vestígios da iconografia religiosa antiga na atualidade, esse homem meio humano e cabeça de animal é exatamente como o capital vê o homem , e por isto sua interpretação das iconografias clássicas se torna atual. Para os antigos, não se tratava de um animal qualquer, se tratava de mostrar que sob o homem pairam…monstros! Eles emergem na violência e na avassaladora caminhada ao consumo e no descarte da indústria, mas também na fúria avassalador que acomete a política: não é monstruosa a caminhada em direção aos fins dos direitos sociais básicos em nosso país? Não é monstruosa a atitude de governadores e prefeitos contra seus servidores, contra políticas públicas, contra o patrimônio público?

O que é monstruoso no capitalismo é sua caminhada vertiginosa na direção contrária a qualquer forma democrática e republicada de organização social. Esse movimento se faz apelando as características animais do ser humano, seu egoísmo e falta de solidariedade com o próximo, ao individualismo exacerbado, exatamente como primitivos animais que agora, na pós-historia, ou no fim da história, tomam a condução dos fatos sociais.

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

Comente

Comentários

  • (will not be published)

Comente e compartilhe