Coluna Direito da Família e Direito Sucessório
- Renata Vilas-Bôas
O Estatuto da Pessoa com Deficiência ingressou em nosso ordenamento jurídico em julho de 2015, por meio da Lei nº 13.146, contudo, por força do art. 127 da referida lei, somente entrou em vigor 180 dias após a sua publicação oficial.
Com o advento dessa norma, ocorreram diversas alterações em nosso sistema jurídico, e em especial no âmbito do direito civil.
Com o propósito de levar dignidade às pessoas com deficiência, várias normas foram alteradas, destacando-se a questão da capacidade, não sendo mais possível enquadrá-los como absolutamente incapaz, o que poderia ocorrer antes de sua entrada em vigor.
Contudo o que nos chama a atenção é com relação à questão de exercer direitos reprodutivos, de decidir sobre o número de filhos e ainda ter conservado a sua fertilidade, assim posto no art. 6º e incisos da referida lei.
Observa-se que o Estatuto nesse aspecto não fez qualquer distinção entre as diversas espécies de deficiência que existem e acabou colocando todas as pessoas com deficiência no mesmo patamar. E quando fez isso acabou criando uma igualdade onde não existe, em razão dos diversos tipos de deficiência existentes.
Dessa forma, não podemos comparar uma pessoa que tem como deficiência a perda de um membro, para exercer os seus direitos sexuais e reprodutivos de uma pessoa que tem deficiência mental no mais alto grau.

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Diante disso começa a surgir os impasses e como consequência, serão os diversos encaminhamentos ao Poder Judiciário para poder compreender a extensão dessa previsão normativa.
O art. 6º da Lei Nº 13.146 de 6 de julho de 2015 prevê que:
Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Nesse artigo iremos analisar apenas os incisos II, III e IV. Pois eles encontram-se interligados mas que precisam ser analisados levando em consideração dois princípios norteadores de nossa Constituição Federal, quando se trata de constituição de família e a opção ou não de ter filhos.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Assim, temos os princípios da paternidade responsável e do planejamento familiar, como sendo livre decisão do casal.
A Lei nº 9.263 de 12 de janeiro de 1996 veio regulamentar o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, retro transcrito, que versa sobre o planejamento familiar e com isso estabeleceu no seu artigo 2º que:
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
Ao que ainda informa, em seu artigo 1º. que o planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta Lei.
O artigo 4º da referida lei nos informa que o planejamento familiar irá se orientar por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.
Quanto mais lemos a referida lei, mais certeza temos que ela foi concebida para pessoas que tem o seu pleno desenvolvimento mental e que com isso tem capacidade para fazer as escolhas que desejam, em termos de ter ou não filhos, planejando quantos desejam ou se não desejam.
Apesar do artigo primeiro estabelecer que o planejamento familiar é direito de todo o cidadão, verificamos que a referida lei trata também de ações educativas, e que no caso de pessoas com deficiência mental, em decorrência do seu grau de comprometimento, não vão compreender o que significa, e com isso, não é possível imaginar que elas venham a ter discernimento para compreender o que vem a ser o planejamento familiar.
Se a pessoa não tem condição de compreender do que se tratar, como ela pode fazer escolhas ?
Além disso, precisamos conjugar o planejamento familiar com o princípio da paternidade responsável, em que novamente o discernimento e a compreensão são importantes para os cuidados e a criação de seus filhos.
Lembrando que o que o direito regula são os cuidados que os genitores tem que ter com a sua prole, e assim, se a pessoa com deficiência mental, não consegue exercer esses cuidados, não estará cumprindo o que vem a ser a paternidade responsável.
Por certo que existem diversas pessoas capazes que não exercem a paternidade responsável, contudo, as pessoas com deficiência mental, sem esse discernimento, com certeza, não conseguirão exercer a paternidade responsável, e sendo assim, serão os seus responsáveis legais, que ficaram cuidando de sua prole, passando aos avós o referido encargo.
E nesse momento, precisamos nos lembrar que permitir que incapazes de cuidar de si mesmo, ou que não tem responsabilidade para cuidar de outros, acaba sendo uma irresponsabilidade, eis que colocaremos essas crianças em situação de risco.
Dessa forma, o princípio da paternidade responsável, precisa ser levado em consideração quando estamos tratando dos direitos reprodutivos de pessoas com capacidade mental reduzida, para verificar se é possível ou não que eles sejam responsáveis por uma criança.
Se a resposta for não, então precisamos buscar uma solução para essa situação. Assim, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios se deparou com esse questionamento e decidiu, que naquele caso específico, deveria autorizar a realização de vasectomia no rapaz incapaz. Vejamos a reportagem divulgada no site do Tribunal:
Justiça autoriza cirurgia de vasectomia em jovem incapaz
A 3ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios autorizou, por unanimidade, a realização do procedimento cirúrgico de vasectomia em incapaz acometido pela Síndrome do Cromossomo “X Frágil”, uma alteração genética que compromete o desenvolvimento intelectual, do comportamento e da fala.
A mãe do jovem contou que, por causa da doença, o filho não tem condições de trabalhar nem de se sustentar financeiramente. Hoje, com 31 anos de idade, ele mantém um relacionamento afetivo com uma jovem, também incapaz. Com a finalidade de evitar os riscos de uma gestação não planejada, a genitora entrou com uma ação para autorização da vasectomia, na 1ª Vara Cível, de Família e de Órfãos e Sucessões de Ceilândia, mas teve seu pedido julgado improcedente.
Interposta apelação, o desembargador relator esclareceu que o artigo 10, § 6º, da Lei 9263/1996, prevê a autorização judicial de esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes. Destacou que, conforme parecer biopsicossocial, o curatelado possui desenvolvimento mental muito inferior à idade cronológica e limitações graves na capacidade de abstração.
Explicou, ainda, que a síndrome o torna vulnerável às situações que dizem respeito ao próprio corpo, à sexualidade, ao casamento e à saúde. “Uma gravidez indesejada traria problemas relacionados à educação e aos cuidados com o filho, além de transtornos ao próprio jovem e familiares”, declarou o relator.
Ao final, diante da análise do caso, o colegiado autorizou o procedimento cirúrgico de vasectomia por entender que o pedido não impõe restrições à dignidade do curatelado.