Entrevista: Direitos de Personalidade e outros

Artigo veiculado na 26ª edição do Jornal Estado de Direito, ano IV, 2010.

 

Foto: Carmela Grune

Foto: Carmela Grune

 

Carmela Grüne – Seria possível sumariar a evolução quanto ao reconhecimento da proteção jurídico-constitucional da personalidade e dos assim chamados direitos de personalidade?
Ingo Sarlet – Embora se possam identificar antecedentes remotos, especialmente em termos de algumas formas e ações (como dá conta a experiência do direito greco-romano, destinadas a tutelar aspectos que atualmente são referidos aos direitos de personalidade, foi apenas no Século XIX que a noção de direitos de personalidade, como direitos subjetivos atribuídos às pessoas nas relações entre particulares acabou sendo objeto de desenvolvimento doutrinário e jurisprudência, com destaque para o direito alemão do Século XIX, onde autores como Puchta, Carl Neuner, Joseph Kohler e principalmente Otto von Gierke, embora não de forma idêntica, sustentavam a noção de a pessoa ser titular de direitos de auto-afirmação e desenvolvimento, tendo sido von Gierke, o autor – já ao final do Século XIX – da teorização considerada por muitos a mais fecunda e influente sobre o tema, no sentido de afirmar que os direitos de personalidade (que se distinguem a personalidade enquanto um estatuto próprio da pessoa) são direitos que garantem ao seu titular o poder sobre sua própria esfera pessoal. Embora algum desenvolvimento posterior, especialmente na Alemanha sob a égide da Constituição de Weimar, foi apenas após a Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945) que os direitos de personalidade foram objeto de reconhecimento gradativo e cada vez mais intenso nos textos constitucionais, igualmente com destaque para a Lei Fundamental da Alemanha (1949), que consagrou, após afirmar a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana (Art. 1º), um direito ao livre desenvolvimento da personalidade (Art. 2º). A partir de então, também a legislação infraconstitucional, notadamente as codificações de direito privado, passaram a reconhecer os direitos de personalidade. Para ilustrar tal desenvolvimento, bastaria atentar para o fato de que o Código Civil Brasileiro anterior, projetado ainda ao final do Século XIX e em vigor desde 1916, não contemplava, a exemplo das codificações anteriores, direitos de personalidade, o que sofreu alteração apenas com a entrada e em vigor do atual Código Civil, em 2002.

CG – Qual o fundamento dos Direitos da Personalidade e como estão previstos e protegidos na ordem jurídico-constitucional?
IS – O fundamento dos direitos de personalidade é, em linhas muito gerais, o reconhecimento, pela ordem jurídica, da dignidade da pessoa humana e da necessidade de proteger as diversas manifestações de tal dignidade e personalidade. Antes do seu ingresso na esfera do direito constitucional e sob influência, ainda, da doutrina do Século XIX, os direitos de personalidade eram tidos como direitos privados, de caráter absoluto e por tanto oponíveis a todos, de qualquer modo não se tratando de um reconhecimento unânime. Todavia, como já referido, a partir da segunda metade do Século XX tanto as constituições, quanto diversas codificações se ocuparam do tema. Os direitos de personalidade, pela sua vinculação com a dignidade e aspectos essenciais à vida humana, passaram a assumir a condição de direitos humanos (notadamente pelo reconhecimento gradativo no plano do direito internacional dos direitos humanos) quanto de direitos fundamentais, aqui considerados os direitos de personalidade consagrados pelas constituições. Neste sentido, é possível afirmar que os direitos de personalidade são sempre direitos humanos e fundamentais, mas nem todos os direitos humanos e fundamentais são direitos de personalidade. No que diz com a forma de reconhecimento e proteção dos direitos de personalidade, há como afirmar que hoje é dominante o entendimento de que paralelamente a uma cláusula geral de proteção da personalidade (e dignidade da pessoa humana), a ordem jurídico constitucional assegura uma proteção ampla e em princípio isenta de lacunas, buscando cobrir todas as manifestações da personalidade humana. Ao contrário de algumas constituições contemporâneas, como é o caso da Alemanha, Portugal e Espanha, a Constituição Brasileira de 1988 não contempla cláusula expressa, mas há praticamente consenso quanto a existência de uma cláusula geral implícita (à dignidade da pessoa humana) de tutela e promoção da personalidade. Da mesma forma e especialmente por tal razão, também o elenco dos direitos de personalidade previsto no atual Código Civil não é tido como taxativo. Desde logo é preciso registrar que metodologicamente, o recurso à cláusula geral se justifica quando ausente um direito especial de personalidade desde logo e expressamente assegurado. De outra parte, verifica-se que o catálogo constitucional de direitos não é exatamente coincidente com os direitos elencados no Código Civil. Além disso, como bem demonstram os exemplos do direito ao nome e mesmo do direito a um funeral digno, ambos já reconhecidos pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, existem tanto direitos explicitamente protegidos, quanto direitos implicitamente consagrados, de certo modo já uma decorrência da noção de uma proteção isenta de lacunas e de que a dignidade e a personalidade não podem ficar a mercê do reconhecimento apenas mediante previsão (textual) constitucional ou legal específica. Outro aspecto relevante e objeto de intenso debate, diz respeito à proteção da personalidade antes do nascimento e após a morte. Se quanto à tutela post mortem em geral se admitem projeções merecedoras de tutela (inclusive indenização por ofensas à imagem, honra e memória do morto), como dá conta o nosso Código Civil (artigos 12 e 20) e os exemplos extraídos da jurisprudência (bastaria mencionar aqui o famoso caso Garrincha, apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça), a proteção da personalidade antes do nascimento é bem mais controversa, ainda mais quando se discute sobre eventual tutela na fase pré-embrionária. Sendo inviável adentrar aqui a polêmica, importa pelo menos relembrar que embora o Código Civil disponha que a personalidade se adquire com o nascimento com vida (e se extingue com a morte), são diversas as teorizações que questionam até mesmo a legitimidade constitucional de tal regramento. O nosso Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a questão relativa às pesquisas com células-tronco acabou, pelo menos de acordo com a posição do Ministro Relator, Carlos Ayres Britto, afastar a existência de pessoa antes do nascimento com vida. Embora a tese vencedora tenha sido a de autorizar as pesquisas para fins terapêuticos, também é verdade que a polêmica não acabou com o julgamento, de modo que se poderá aguardar ulteriores desenvolvimentos, ainda mais que diversas as questões nas quais uma tomada de posição, seja por parte da doutrina, seja por parte da jurisprudência, se fará necessária. Com efeito, na doutrina verifica-se crescente adesão ao entendimento de que pelo menos a personalidade do embrião e do nascituro hão de merecer alguma proteção e que a condição de pessoa e a dignidade não podem ser pura e simplesmente seccionadas no que diz com o processo evolutivo. Tanto é que existem decisões reconhecendo até mesmo indenização por dado moral ao nascituro, como direito próprio, apenas representado processualmente por terceiros.

CG – Como podemos avaliar na prática a proteção dos direitos da personalidade? Poderia citar alguns exemplos?
IS – Na prática a proteção da personalidade se revela complexa, seja em virtude da diversidade, quanto ao número de direitos, seja em função da combinação de aspectos materiais e processuais, em termos de técnicas processuais de tutela dos direitos. Além dos exemplos já mencionados quando da resposta à questão anterior, é de destacar o problema posto pela circunstância de que muitas vezes os direitos fundamentais e mesmo os direitos de personalidade de sujeitos diversos encontram-se em rota de colisão, dificultando sobremaneira a solução do caso. Dentre as hipóteses mais difundidas e polemizadas, situa-se o conflito entre a liberdade de expressão e comunicação, incluindo aqui a liberdade artística e científica, e os direitos de personalidade. Como não se admite uma hierarquização formal entre os direitos fundamentais e nem entre os direitos de personalidade e os demais direitos fundamentais, é evidente que no mais das vezes tal conflito entre direitos é objeto de composição pelo próprio legislador, o que não significa que a solução legislativa não possa ser – e não tenha sido – várias vezes ela própria questionada em Juízo, no âmbito do controle de constitucionalidade. Outras vezes, à míngua de regulamentação específica, se espera dos órgãos do Poder Judiciário que componham o conflito no caso concreto, situação na qual se recorre ao método da ponderação (harmonização) dos direitos conflitantes, atribuindo maior ou menor peso a um dos direitos, mediante aplicação dos critérios exigidos pela proporcionalidade. Aqui novamente se deve reconhecer a existência de fortes críticas às decisões judiciais, especialmente quanto o modo pelo qual, segundo alguns, operam com tais categorias, muitas vezes sem sequer examinar os meandros do caso e as pautas já postas pelo legislador. O certo é que Juízes e Tribunais não podem negar jurisdição e têm o dever de solver o conflito, existindo diversos exemplos de tal prática. Apenas para citar um caso clássico, relembra-se a discussão em torno da possibilidade de obrigar o suposto pai, requerido em ação de investigação de paternidade, a se submeter a exame de sangue para fins de testagem do DNA. Nesta situação, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a dignidade e integridade física e corporal do investigado deve ser tutelada, mas que para assegurar a proteção do direito do menor aos alimentos, neste caso a recusa (legítima) de se sujeitar ao exame, seria compensada pela redução proporcional do encargo do autor de provar a paternidade. Casos bem mais polêmicos são, contudo, os que dizem respeito a decisões que proíbem a publicação de obras, difusão de determinadas notícias, com o intuito de proteger, inclusive preventivamente, a integridade moral de determinadas pessoas.

CG – O direito ao ambiente ecologicamente equilibrado pode ser considerado direito da personalidade?
IS – Embora, especialmente de acordo com a Constituição Brasileira, posse se afirmar a existência, além de um dever do Estado e da sociedade, de um direito à proteção do ambiente, a sua inclusão no elenco dos direitos de personalidade se revela definitivamente mais polêmica, e, no nosso entender, insustentável, pelo menos no sentido da atribuição de personalidade aos bens ambientais. Isto, todavia, não significa que não se possa sustentar uma dignidade da vida não-humana, no sentido de um valor não instrumental desta vida. Até mesmo a atribuição de direitos (pois quanto a existência de deveres para com a natureza não há hoje contestação relevante) fundamentais se revela como uma alternativa possível, mas reitera-se aqui a noção de que direitos fundamentais e direitos de personalidade não são conceitos inteiramente coincidentes, pois o universo dos primeiros é mais amplo. De outra parte, é certo que danos causados ao ambiente podem sim afetar os direitos de personalidade de algum modo, como é o caso da integridade física e psíquica, entre outros, mas de qualquer sorte a questão é definitivamente controversa e mereceria um desenvolvimento em separado. Bastaria aqui apontar para o reconhecimento da possibilidade de condenar os agentes poluidores ao pagamento de danos imateriais, no sentido de danos punitivos, mas cujo reconhecimento não necessariamente coincide com uma proteção da personalidade e dos respectivos direitos no sentido convencional do termo.

CG – Recentemente (julho) o Senhor esteve na Alemanha e na Itália proferindo algumas conferências. O Senhor poderia falar um pouco do que foi abordado nos encontros e quais os aspectos mais polêmicos discutidos?
IS – Grato pela lembrança. Efetivamente foram três os encontros dos quais tive a oportunidade de participar. O primeiro consistiu em palestra proferida no Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional, sediado em Munique, Alemanha, versando sobre o direito à saúde no Brasil: evolução e desafios. Esta palestra acabou sendo em parte reiterada na Universidade La Sapienza, Roma, dia 12.07.10, atividade promovida pela cátedra de direito constitucional comparado regida pelo Prof. Dr. Paolo Ridola. Por ocasião da conferência no Instituto Max-Planck, além de apresentar uma visão evolutiva do reconhecimento e proteção do direito à saúde no Brasil, incluindo aspectos estruturais e organizacionais do sistema de saúde, o foco acabou sendo a questão da exigibilidade do direito à saúde como direito subjetivo a prestações e o papel do Poder Judiciário nesta seara, culminando com a identificação e discussão de alguns desafios e perspectivas. Por ocasião da discussão, que tomou mais de hora, vários dos presentes, pesquisadores do Instituto, professores e convidados, insistiram na necessidade de apostar fortemente na regulação independente e eficiente do setor, público e privado, bem como no devido processo administrativo. Um dos aspectos que causou maior espécie foi certamente a falta de regulamentação de questões absolutamente relevantes como a clara distribuição de recursos e atribuições entre os entes da Federação e das relações entre o setor público e os planos de saúde privados. Já quando da conferência em Roma, onde o direito à saúde foi apenas o exemplo trabalhado para ilustrar a problemática mais ampla da proteção dos direitos sociais, o cerne da discussão girou em torno da legitimidade do Poder Judiciário para efetivar tais direitos, da estruturação da Justiça Constitucional no Brasil, bem como na dogmática da eficácia das normas de direitos fundamentais, visto que pelo menos a convencional classificação das normas constitucionais difundida no Brasil por José Afonso da Silva e hoje objeto de crescente crítica (inclusive por mim, especialmente na obra sobre a Eficácia dos Direitos Fundamentais) foi muito inspirada em doutrina italiana. Por fim – embora não na ordem cronológica – , no que diz com a terceira conferência, cuidou-se de palestra de abertura de seminário sobre proteção da personalidade organizados por Professores da Universidade de Augsburg (Jörg Neuner) e Zurique (Bianca Dörr) nos dias 09 e 10 de julho, seminário este que teve lugar nas dependências do Mosteiro de Fraueninsel, situado num lago muito conhecido (Chiemsee) da Baviera, onde precisamente, em outra ilha (Herrenchiemsee) foi elaborado o projeto da Lei Fundamental da Alemanha, em 1949. A minha exposição teve como tema a proteção da personalidade antes do nascimento e depois da morte no direito brasileiro, ao passo que os demais participantes exploraram diversos aspectos do tema na perspectiva do direito alemão e europeu.

CG – Tendo em conta que o Senhor está intensamente envolvido com a temática dos direitos sociais e do direito à saúde, seria possível desenvolver um pouco a questão da judicialização da saúde no Brasil?
IS – Dentre os inúmeros aspectos que mereceriam uma abordagem, talvez seja o caso de chamar a atenção para o que se poderia designar de uma espécie de “mitificação” da assim chamada “judicialização” da saúde. Em primeiro lugar, o próprio termo “judicialização das saúde” ou mesmo a noção de uma “judicialização da política e das políticas” merece ser encarado com reservas. Em primeiro lugar, pelo fato de que a crescente demanda nesta seara enfrentada pelo Poder Judiciário, resulta da provocação da sociedade, seja por meio de demandas individuais, seja por meio de demandas coletivas e é, por um lado, resultante da garantia, hoje bem mais ampla do que tempos atrás, de acesso do cidadão ao sistema judiciário, com vistas à obtenção de uma prestação jurisdicional. Por outro lado, se observarmos a natureza da maioria das demandas que envolvem direitos sociais, com particular atenção para o direito à saúde, percebe-se que em geral não se busca estabelecer em si uma política pública, mas sim o cumprimento das políticas já estabelecidas, seja por lei, seja pela ação da administração pública. Mesmo casos como a concessão de um medicamento não previsto em lista oficial, podem ser vislumbrados como de correção na execução de políticas já determinadas, visto que se cuida de atos administrativos que complementam legislação específica. É claro que exatamente tais casos são mais complexos, mas de qualquer modo são a exceção. Outro fator a ser considerado diz respeito ao número de demandas. Uma pesquisa utilizando as expressões “direito e saúde”, nos mostrará que o número de demandas relacionadas ao tema é muito baixo em relação ao total, bastando uma pesquisa nos bancos de dados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Em geral o que se verifica é a busca de cumprimento da legislação e da política de atendimento integral e acesso universal prevista na Constituição Federal e na legislação do SUS. Embora se deva reconhecer que nem sempre as decisões se pautam pela proporcionalidade e razoabilidade, a possibilidade de acessar o Poder Judiciário é também um exercício de participação cidadã e um meio de efetivar a democracia participativa. Além disso, verifica-se uma clara tendência de superação do que se poderia designar de “era dos extremos”, pois nem se pode sustentar seriamente que as normas definidoras de direitos sociais sejam meras normas programáticas, inaplicáveis diretamente na esfera judicial, nem é possível aceitar o extremo oposto, onde por vezes se concede qualquer coisa a qualquer um que apresente um pleito em Juízo. A evolução mais recente revela uma busca do equilíbrio. Que ainda há muito a fazer, resulta evidente e a construção de critérios racionais e razoáveis tem sido almejada seja pela doutrina, seja no âmbito de uma série de decisões atuais e relevantes produzidas na seara judicial.

 

* Doutor em Direito pela Ludwig Maximillians Universität München. É Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado. Coordenador do GEDF (Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais – CNPq). Pesquisador do Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional (Alemanha), bem como no Georgetown Law Center (Washington DC). Autor de diversas obras entre as quais destacamos “Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais – na Constituição Federal de 1988 ” publicado pela Editora Livraria do Advogado.

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