Em defesa do sentido existencial da Justiça

Coluna Democracia e Política

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Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Violação dos direitos fundamentais

A sociedade brasileira tem visto estarrecida ações da Polícia, Ministério Público e Judiciários brasileiros violando os direitos fundamentais em prol do chamado “interesse público” com o objetivo de acalmar a população em relação a certeza da punição de responsáveis por crimes, da ampliação das penas imposta pelas leis  até para justificar sua participação  na cultura do espetáculo em ações protagonizadas recentemente pelo poder judiciário.

Os casos são conhecidos: do incêndio da Boate Kiss, passando pelo caso do cinegrafista da Band, até os dirigentes da Samarco, em decisões que implicaram desde o cumprimento de pena antes de trânsito em julgado, a acusação à pessoas de crimes graves através de subterfúgios utilizados para violar direitos individuais, o efeito é sempre trocar a culpa consciente por dano eventual, amplificando as penas para obter repercussão social.  A questão de base é: pode um juiz violar o direito individual da pessoa em prol da coletividade? Se as súmulas vinculantes, julgamentos de recursos e súmulas comuns começam a determinar o pensamento dos juízes caracterizando a exacerbação do judiciário, para onde recorrerá o cidadão?

A definição ontológica do direito

A questão é essencial para a democracia que vivemos. Se a Constituição de 1988 colocou os direitos individuais num plano superior foi com o objetivo de que não fossem violados como ocorria na ditadura militar, mesmo que sejam para servir ou atender o interesse ou demanda públicos. Mas num contexto de ascensão da direita, com inúmeras ramificações nos partidos e nas instituições, os exemplos mostram que existe mais formas de afetar a democracia: elas estão situadas no campo da definição do que o direito é, numa palavra, em sua definição ontológica. Estamos no campo da filosofia do direito. Para isso precisamos nos socorrer dos grandes filósofos.

Um dos grandes expoentes do pensamento filosófico foi Jean Paul Sartre.  Para Michel Contat, o maior estudioso do filósofo “ por volta de 1960, havia três franceses conhecidos em todo o mundo: Charles de Gaulle, Jean-Paul Sartre e… Brigitte Bardot “. Sartre foi um crítico das ilusões de grandeza da cultura francesa, que considerava burguesa. E ainda que tenha se notabilizado pela sua filosofia e literatura,  foi como grande defensor dos direitos das minorias na França, seu questionamento do republicanismo na defesa de argelinos, árabes e judeus, que o fez um notável defensor de minorias e da liberdade.

Por esta razão, o lançamento de Sarte, Direito e Política: ontologia, liberdade e revolução pela Editora Boitempo (wwww.boitempoeditorial.com.br), de autoria de Silvio Luiz de Almeida, é duplamente bem vinda. Primeiro por ser um estudo notável de filosofia do direito que reflete sobre a conexão do tema da justiça com o da ordem social e política. Segundo por vir a cena neste exato momento em que necessitamos de ferramentas teóricas para explicar, criticar e denunciar a posição que determinados operadores do direito assumem em relação as suas funções. Em tempos de judiciário exacerbado, é hora de refletir sobre o que é a justiça em si, uma das questões essenciais para Sartre.

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A obra é a versão da tese de doutorado de seu autor, defendida em 2011 na área de Filosofia e Teoria do Direito do PPG em Direito da USP, sob a orientação da Dra Jaeannete Antonios Maman, com a presença na banca do ilustre filósofo Franklin Leopoldo Silva, que assina  o Prefácio. Não é a primeira incursão de Silvio Almeida na filosofia do Direito: em sua obra anterior, O Direito no Jovem Lukács (Editora Alpha-Omega, 2006), o autor mostrou que aquilo que os juristas admitem como ciência nada mais é do que uma forma reificada de apreensão da realidade, naquilo que então Lukács, em sua obra “história e consciência de classe”, denominava de “antinomias do pensamento burguês”.  Almeida está comprometido com a crítica marxista da sociedade, que é também uma crítica do direito “o qual é indissociável dos rumos do capital”.

A era em que o capital domina

Se conceber uma teoria jurídica foi um dos grandes objetivos de Almeida em “O direito no jovem Lukács”, agora em Sartre , direito e política, Almeida chega a um novo patamar.  Com István Mészáros compartilha a ideia de que vivemos uma era onde o capital domina e não se vê alternativas, mas reconhece em Sartre um dos raros pensadores deste século que defendeu o oposto: “Há uma alternativa, deve haver uma alternativa, como indivíduos devemos nos rebelar contra esse poder, esse monstruoso poder do capital. Não há ninguém nos últimos cincoenta anos de filosofia e literatura que tenha tentado martelar isto com tanta pertinácia e determinação quanto Sartre”, diz Mészaros.

A obra analisa o pensamento de Sartre para inseri-lo na tradição da filosofia do direito marxista, e portanto, sua abordagem é um instrumento de crítica ao direito no campo do neoliberalismo. É um campo incomum para os operadores do direito  acostumados a tradição do cânone legal e a uma filosofia do direito que tem como eixo central o trabalho de Hans Kelsen.

A ontologia do pensamento sartriano

A obra é composta por três partes principais. A primeira é intitulada “Liberdade, direito e justiça”, onde Almeida retoma a ontologia do pensamento sartriano. Analisa seus fundamentos filosóficos no campo dos motivos centrais de sua filosofia  a partir do conceito de subjetividade, a consciência. Para Sartre, ela é produto do devir existencial, é movimento, a consciência é sempre “consciência de alguma coisa”. Almeida reconstrói o argumento sartriano porque quer buscar para a filosofia uma justificativa para se lançar em direção ao mundo que está aí, o que já anuncia a simpatia do autor pelo filósofo que acreditava que, além do fenômeno, “a consciência sempre será possível ultrapassar o existente, não em direção ao ser, mas ao sentido do ser”(p.32, grifo nosso). Por esta definição de base, o sentido de justiça dos atos de inúmeros atores no campo do direito pode ser submetido à análise, eis a questão.

Jean Paul Sartre - 1965 Fonte: Wikipedia/Materialscientist

Jean Paul Sartre – 1965
Fonte: Wikipedia/Materialscientist

A relação do pensamento de Sartre com o marxismo

Na segunda parte Almeida aprofunda a relação do pensamento de Jean Paul Sartre com o marxismo. A leitura de Hegel, mas também de Heidegger reconstruida pelo autor na obra sartriana é responsável por um vínculo que os operadores do direito tendem a rejeitar, o da ligação entre direito e capitalismo. É verdade que Pachukanis, outro estudioso de filosofia do direito de esquerda, à sua maneira, já tinha aberto o caminho, como mostrou o escritor Allyson Leandro Mascaro em O direito na filosofia de Slavoj Zizek (Editora Alpha – Omega, 2011). O sujeito de direito é o cerne da reprodução capitalista e este é o ponto de abertura para uma filosofia marxista do direito. Para Almeida, Sartre coloca a questão de uma que a “investigação ontológica sobre o direito requer a volta as condições históricas em que o fenômeno jurídico se revela, a compreensão da vida social é fato determinante para o entendimento do direito contemporâneo” (p. 75). É uma filosofia “que coloca a homens e mulheres a tarefa de construir o futuro”, diz .

Filosofia e política do pensamento de Sartre

A terceira parte trata de questões filosóficas e posturas politicas do pensamento de Sartre. A relação entre legalidade e violência , cultura burguesa e justiça e democracia e revolução põem ênfase no caráter político da definição do direito em Sartre. Essa concepção nasce no filósofo no momento da repressão do governo Charles de Gaulle na França ao periódico de esquerda La Cause du Peuple. A assunção de Sartre à direção do jornal pôs em evidência as contradições essenciais do sistema jurídico francês. Era uma época da presença maoista em França e sua defesa quase explícita da violência como forma de luta social foi colocada em xeque pela doutrina da coexistência pacífica divulgada pela União Soviética de Nikita Kruschev. O que há de similar no contexto sartriano do governo De Gaulle e a realidade brasileira atual é justamente a de que suas ideias, as ideias de Sartre, emergiram num contexto de retrocesso dos partidos de esquerda.

Mais semelhanças

As semelhanças continuam, já que Sartre recorda-se que a violência sentida pela esquerda era provocada pela própria burguesia. O enfrentamento entre direita e esquerda estava na ordem do dia na França dos anos 60 como no Brasil atual; a violência maoista, de certo modo, lembra as características do movimento Black Block no Brasil de 2013, ambos “conheciam e aceitavam as consequências de que, cedo ou tarde, seriam confrontados com a legalidade burguesa”(p. 180). E o mais avassalador, na França como no Brasil “no momento em que a contradição política se tornou mais aguda, o governo se colocou fora da legalidade”. (idem). A semelhança entre o governo Gaullista e o Governo de Michel Temer é evidente pois no atual, como no passado, as violações da legislação parecem não parar: o que foi a prisão exacerbada de Guido Mantega, criticada pelas redes, no exato momento de sua assistência a esposa doente do que um indicador de que algo de errado está acontecendo no judiciário brasileiro? Finaliza Almeida:“A  indiferença do jurista em relação a esse cenário é a demonstração de que uma sociedade livre ainda não vicejou entre nós, e isso não acontecerá até que a busca do justo vá além dos códigos ou dos discursos em defesa da Legalidade. É dessa busca que Sartre sempre falou: a ação politica libertadora”(p. 211)

O estudo de Almeida mostra, a partir do pensamento de Jean Paul Sartre, que a crítica é uma atividade do pensamento necessária para livrar a sociedade das prisões que o direito fabrica: se somos livres para dar sentido ao mundo, como diz Sartre, somos livres também para querermos uma justiça melhor  “A luta pelos injustiçados, assim, ‘não é somente nosso dever, mas nela está nosso interesse, nossa liberdade”, como defende Sartre.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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