Elementos para refundar o pensamento de esquerda

Coluna Democracia e Política

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Fonte: pixabay

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Baudrillard, renovador teórico

Em 6 de março deste ano, completou-se dez anos da morte de Jean Baudrillard (1929-2007). O fato passou batido, raros artigos lembraram a herança do filósofo. Isso é uma pena, pois justamente agora, às vésperas de mais uma eleição onde os meios de comunicação serão usados a exaustão, suas ideias revelam grande atualidade. Sua atenção dada aos signos, a cultura de massa, são essenciais para a compreensão dos novos caminhos da política e de seu uso da propaganda de massas como estratégia da conquista de consciências. Se há uma crítica a ser feita à esquerda, é ter desprezado o poder dos signos, aprendizado que a direita fez a todo o vapor.

Porque a esquerda deve ler Baudrillard? O autor de Simulacros e Simulações deu uma nova perspectiva aos estudos sociológicos. Antes de Baudrillard, a prática sociológica era formalista, isto é, muito restrita aos limites da disciplina e aos conceitos herdados da sociológica clássica a partir de Weber, Marx, Durhkeim, Parsons e cia. Havia pouco espaço para a interdisciplinaridade, para o ensaismo crítico e, principalmente, para a ironia na escrita. Baudrillard colocou de cabeça para baixo tudo isso, sua inspiração na linguística e na antropologia lhe possibilitou escrever um texto como um hieróglifo, que necessita tradução.

E só quem lê a sua obra do início ao fim é capaz de acompanhar a sua construção filosófica. A esquerda torce-lhe o nariz por sua recusa do marxismo, então hegemônico como teoria social, mais foi este gesto que levou-o a supera-la conceitualmente: Baudrillard forjou conceitos como cultura-imagética, espetáculo, valor-sinal, mercadoria- signo, lei do código, maioria silenciosa e muitos outros que fogem aos limites das disciplinas, permitindo, anos antes de Slavoj Zizek, este sim um marxista de cepa, dar uma perspectiva nova ao conceito de ideologia.

Alguns autores apontam que seu conceito de simulacro teria sido seu grande conceito explicativo para o capitalismo e a modernidade; para outros, a redefinição do conceito de sedução no universo social teria dado uma perspectiva totalmente nova ao capitalismo. Pessoalmente, prefiro a investigação sobre o papel da morte na sociedade capitalista, talvez um dos mais difíceis conceitos para a esquerda, como Baudrillard faz em sua obra A Troca Simbólica e a Morte: ali, na fusão da contribuição da teoria do simbólico, da antropologia e da sociedade de consumo, é o melhor de Baudrillard.

É que mais do que inovar com conceitos, Baudrillard codificou uma metodologia de construção de um sistema de pensamento. Nesse método original de reflexão era caracterizado pela inversão de perspectivas, sempre de modo original e instigante: no capítulo “Porque a teoria? ” de O Outro por si mesmo, Baudrillard apresenta o que entende por sistema teórico. Se o discurso teórico tem como objetivo desvendar o objeto, Baudrillard reivindica o contrário, que o discurso teórico deve proteger o objeto.  Ou ainda, não é o homem que faz aparecer o objeto, mas o objeto que faz desaparecer o sujeito.

Baudrillard muda os termos da relação sujeito-objeto, a teoria não tem mais o compromisso de revelar o real, desejo da era das Luzes. A realidade se afirma por si só, em sua dureza e a teoria deve seduzir o real, arrancar dele suas verdades. Baudrillard quer um discurso teórico que utilize as mesmas regras do objeto para ser construído “Tem de fazer-se excessiva e sacrificial para falar do excesso e do sacrifício“. O que é fascinante em seu pensamento é que não é pela revelação, pela descoberta, mas pela imitação, pelo efeito de espelho que o conhecimento revela o objeto. Fazer ciência é fazer literatura. Mas não uma literatura qualquer “O estatuto da teoria só poderia ser o de um desafio ao real”. Verdade invertida de um postulado que diz que a realidade desafia o cientista a revelá-la. Basta olha-la diretamente e narrá-la.

Por isso os acontecimentos políticos contemporâneos sempre foram o campo de onde Baudrillard tirou sua inspiração: terrorismo, ataque as Twin Towers, a cultura pop, tudo enfim era objeto de análise para Baudrillard. Mas havia uma forma especial de análise destes objetos. Baudrillard substituiu a obsessão materialista da produção de sentido pela obsessão pela semiótica do signo. Onde a esquerda vê o poder do trabalho, Baudrillard vê o poder dos signos, sugerindo à esquerda pensar o campo semiótico onde se movimentam seus adversários. Não é neste campo que se movimenta a propaganda do candidato Eduardo Leite (PSDB), numa notável manipulação dos signos, a defesa da pessoa, etc, que nada dizem de seu real projeto, o de desmonte da máquina pública no qual Nelson Marchezan é o principal exemplo? E não é notável a semelhança das propagandas entre os dois, na qual o sentido de proteção das pessoas substitui a o objetivo neoliberal  de entrega do estado ao capital privado?

A trama política, nos ensina Baudrilard, é sempre entre o signo – criador de necessidades – e a mercadoria – objeto que encarna as necessidades. Cada candidato tem vitória se maneja a sutil combinação dessas variáveis, na qual a mercadoria – o candidato – é entregue a um eleitor seduzido pela propaganda. Antes, um Marchezan moderno e ‘andante”, agora, um Eduardo Leite “protetor e sincero”. Não são a sua maneira, a versão política de Rodrigo  Hilbert, o marido de Fernanda Lima tido como o “marido perfeito”? Não é aí, justamente no imaginário do perfeito, do político perfeito que são construídas as candidaturas políticas? Ora, como não há marido perfeito, não há político perfeito e a mentira vendida que só a interpretação simbólica que o pensamento de Baudrillard permite é que tudo não passa de …enganação, de signos que visam conquistar as consciências. É onde deposita a magia que Mauss inspirou-lhe em sua juventude, para Baudrillard….o signo é mágico!. Michel Jackson, Madonna ou qualquer outro acontecimento da ciência, da cultura, da arte, da politica, de indivíduos particulares, são sempre fenômenos materiais a agentes que encarnam significados, eis o ponto de partida do autor. É curioso: acusado de abandonar o marxismo e a produção, Baudrillard justamente deu o passo impossível a Marx para a interpretação da sociedade em sua nova natureza, uma natureza baseada na imagem. Objetos são também produzidos, é verdade, e Marx estava certo. Mas eles adquirem um significado que jamais seria imaginado por ele, ao transformarem-se em imagem, incorporando toda a carga simbólica que uma sociedade é capaz de gerar. Não é um tênis, é um Nike. Não é um neoliberal, é Eduardo Leite. Ele levou a análise da produção ao seu limite, possibilitou inclusive sua negação, sua leitura por uma dimensão nova, pelo simbólico.

A crítica dos signos  

A crítica dos signos de comodidade e utilidade estão em dois momentos principais da obra baudrillardiana. O primeiro é a sua crítica a sociedade do consumo inscritas nas obras O Sistema dos Objetos e A Sociedade de Consumo. Considerada pelos teóricos de design sua magnum opus, “O Sistema dos Objetos” sistematiza o discurso da mercadoria, faz reflexões sobre o caráter simbólico dos objetos partindo do pressuposto de que os objetos mediam relações humanas “…hoje os objetos tornaram-se mais complexos que o comportamento do homem a eles relativo” (BAUDRILLARD, 2008, p. 62). Essa elevação dos objetos, do enfoque funcional para o simbólico supera as analisas tradicionais incapazes de revelar a capacidade de fazerem parte de uma rede de relações.

Toda a primeira parte de sua obra, que inclui ainda A sociedade de consumo e Para crítica da economia política do signo é uma leitura da sociedade de massas e de como os objetos e os signos dominam a vida das pessoas. E aí justamente está a infidelidade ao marxismo, já que transfere o protagonismo da esfera da produção para a esfera do consumo. A primeira parte do O Sistema dos Objetos é justamente a discussão da noção de objeto funcional, a correspondência entre forma e função. Que faz Baudrillard: define a “função” como mito de emancipação do homem do “O objeto funcional é ausência de ser” (BAUDRILLARD, op. cit., p. 89). Essa redefinição é que permite o autor a olhar todo o universo das mercadorias – é preciso lembrar que na França, nesta época, vive-se a explosão dos shoppings centers, esses tempos de consumo, lugares cômodos para nos colocar diante do êxtase da mercadoria. Mas que utilidade realmente ela tem para nós?

Quanto ao seu questionamento sobre a ideia de comodidade em seu pensamento, ainda que a evocação da crítica a sociedade de consumo seja a primeira lembrança, eu faria a sugestão da leitura a partir da obra A sombra das maiorias silenciosas, quando Baudrillard refere-se a determinados tipos de resistência das massas, nas estruturas passivas de comunicação e recepção de mensagens, essa aceitação de tudo “sem exigência de um outro código, sem exigência de sentido, na realidade sem resistência, mas fazendo com que tudo passe para uma esfera indeterminada que não é nem mesmo a do não-sentido, mas a da fascinação/manipulação de todos os azimutes”. E finaliza: “Paródia e paradoxo: é por sua inércia nos caminhos do social que lhes foram traçados que as massas lhes ultrapassam a lógica e os limites, e destroem todo o edifício. Hipersimulação destrutiva, hiperconformismo destruidor “.

Jean Baudrillard I Fonte: wikimedia commons

Jean Baudrillard I Fonte: wikimedia commons

Maio de 68

Esta perspectiva originou-se dos acontecimentos de Maio de 68. Existe duas formas de ver a relação de Baudrillard com os acontecimentos de 68. A primeira é em termos de carreira. 1968 assinala a publicação de O Sistema de Objetos. Em 1968 explodem os movimentos estudantis na França. Nesse ano Baudrillard é professor na Universidade de Nanterre, Baudrillard e está no centro dos protestos. Baudrillard vê a explosão do espírito renovador na academia, com o surgimento de novas teorias como o pós-modernismo e o pós-estruturalismo, convivendo com pelo menos, três pensadores chaves dessas correntes e que tiveram papel importante durante o movimento. O primeiro é Michel Foucault que publica logo em seguida Arqueologia do Saber em 1969, o segundo é Jean François Lyotard, que publica Economia Libidinal em 1974 e o terceiro, o sábio bicéfalo (a expressão é de Suely Rolnik) Gilles Deleuze e Felix Guattari, que publicam O Anti-Edipo – capitalismo e esquizofrenia também em 1974. Não dá para fixar a geração de 68, é claro, apenas em um ano, trata-se de uma geração. Eles inovam e introduzem os temas do pós-estruturalismo e do pós-modernismo pela defesa de dois conceitos fundamentais:  o de poder, que dilui a herança marxista, e o de desejo, que estabelece um novo o fundamento para pensar o social. Neste ponto, encontra-se outra abordagem essencial à política contemporânea, já presente nas obras de Renato Janine Ribeiro e Wladimir Safatle: de que é preciso refletir sobre os modos de apropriação do desejo das massas pela política.

A segunda forma de ver a relação de Baudrillard com 68 é ver o que ele pensa da data. Aí a coisa fica irônica. Para Jean Baudrillard existe uma relação inversamente proporcional entre a quantidade de informação e a presença do sentido daquele ano, porque para ele, 68 não possui mais sentido algum: “68 não é real, não sendo possível a construção de qualquer representação verdadeira a seu respeito; existe apenas como uma imagem, um simulacro, sendo o fruto de um processo de simulação” diz Claudio Coelho em um estudo sobre o autor. Para Baudrillard, 68 só teria hoje uma posição nostálgica, de vaga lembrança de tempos de grande agitação. A razão está no fato de que quaisquer desejos de ver no processo uma explosão revolucionária de esquerda perdem o sentido: ” a involução lenta do social, sobre um ponto determinado e a implosão consecutiva e súbita do poder, sem um breve lapso de tempo, mas que desde então nunca mais cessou – é mesmo isso que continua em profundidade, a implosão, a do social, das instituições, a do poder – e de modo nenhum uma dinâmica revolucionária impossível de encontrar. Pelo contrário, a própria revolução, a ideia de revolução, implode ela também e esta implosão tem consequências sérias, mais sérias que a própria revolução. (BAUDRILLARD, 1991, p.96). Revolução em 68? Nada disso, diz Baudrillard, é justamente o contrário! Essa interpretação não se ajusta como uma luva a nosso movimento revolucionário mais recente, o de junho de 2013, na qual as massas foram as ruas? E o que se viu? Um vertiginoso processo de direitização da sociedade, nossa revolução de 68, o 2013, também perdeu sentido porque sofremos, ao contrário do que desejávamos, uma involução e nesse sentido, a ideia de revolução se desagregou. Viram como Baudrillard é útil?

Hiper-realismo e política

A ideia de hiper-realidade foi criada por Baudrillard para vincular o conceito de realidade com o de simulacro. Como no exemplo tomado de Borges, onde cartógrafos construíram um mapa tão perfeito que podia substituir a realidade, a hiper-realidade alude a dimensão a mais da realidade, essa mais-realidade (não dá para negar, para mim, ainda que indiretamente, uma inspiração na noção de mais-valia de Marx) é o operador lógico da sociedade de consumo, sempre preocupada em estimular os nossos sentidos, sempre tentando apresentar algo mais – que não existe – para sacramentar a mercadoria.

Por exemplo, a dimensão hiper-realista do mundo é observável em vários produtos de televisão no Brasil. Foi na minissérie “Amazônia”, projetada pela Rede Globo que foram exibidas pela primeira vez duas cenas protagonizadas por um personagem humano inteiramente criado por computação gráfica. A época, foi comum referir-se à perfeição da representação, essa criação do personagem digital mais humano que o humano, a partir de uma combinação de dez programas de computador, onde o ator que interpretava o personagem do Coronel Firmino ficou com a aparência de um homem de 98 anos, idade em que o personagem morre na trama. Diz o produtor de efeitos gráficos/visuais Jorge Banda ”com esse trabalho, a caracterização ficou muito mais realista do que se tivesse sido feita com maquiagem. O próximo desafio é criar um ator com rosto e corpo virtuais”.

Para Baudrillard, esta é justamente a dimensão da hiper-realidade, esse espaço onde não há mais limites de representação. E continua Jorge Banda: “Considero o dia 15 de março uma data histórica: a estreia do nosso primeiro ator virtual. “ Diz Baudrillard a esse respeito: “Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real pelo seu duplo operatório”. Já temos, na propaganda comercial comum, com o Magazine Luiza, nossa primeira apresentadora virtual. Resta-nos esperar pelo nosso político virtual. Mas há ainda outra forma de ver a questão: a de que eles já estejam por aí, na figura de políticos perfeitos que se apresentam a população, certinhos em seu formato, claros em seu discurso, verdadeiros ‘modelos da política” que visam conquistar, agora pelo olhar o voto do eleitor.

“O normal é não estar morto”

O trabalho de Baudrillard em A troca simbólica e a morte é notável. Ali o autor persegue as manifestações da pulsão de morte como princípio de funcionamento soberano e superior ao princípio de realidade econômica. Aqui surge a conceituação que perseguirá Baudrillard ao longo de toda sua obra: a relação com a morte é a porta de entrada para campo simbólico “Todas as formas assumem ao final, a feição da exterminação e da morte. É a forma mesma do simbólico. Nem mística, nem estrutural: inelutável”, diz.

Em outro texto, escrevi que A troca simbólica e a morte são uma obra construída para demonstrar a revolução estrutural do valor, a descrição do estágio atual de nossa sociedade em relação ao simbólico e como as coisas que se aproximam de uma operacionalidade perfeita, que paradoxalmente, estão perto da ruína “Talvez a morte, e só ela, a reversibilidade da morte, seja de uma ordem superior”. Para Baudrillard, todos os sistemas (teóricos, fatos da vida, enfim) que são incapazes de inscrever em si sua própria morte são frágeis e são vítimas da carência do sentido. Fatalidade de todos os sistemas que aspiram a perfeição absoluta ”É preciso levar as coisas ao limite, onde, naturalmente, elas se invertem e se desfazem”, diz Baudrillard. A especulação sobre a generalização da morte é aqui o método leva a radicalização do pensamento de Baudrillard e, em certo sentido, produz a violência de que seu discurso é portador.

A política neoliberal vive de fazer desaparecer as coisas. O governo Sartori está fazendo “desaparecer” literalmente inúmeros órgãos públicos. Pois o neoliberalismo, em sua face perversa, hiperliberal, também é um “canto de morte” que poderia ser assim resumido: é preciso que o estado morra para que o capital possa proliferar. Essa fatalidade da vida capitalista, faz vítimas por todo o lugar, principalmente entre servidores públicos. Não foi exatamente da mesma forma que foi sentida pelos servidores estaduais as medidas de Sartori, não foi da mesma forma que foi percebida pelos servidores municipais as medidas de Marchezan, de que eram “sem sentido”, e que a reação a ela era, em parte, uma “recusa da própria morte?”

Foto: Joel Vargas/PMPA

Foto: Joel Vargas/PMPA

A questão do desaparecimento é tão central em Baudrillard como é em Paul Virilio. Só superamos um fato natural porque criamos o simbólico, isto é, representamos nossa relação com a morte e damos significado ao morto. Esse simbolismo transparece na religião, mas não transparence na política: a politica econômica não dá um verniz simbólico aos órgãos e instituições que extingue, não representa sua ação. A higienização, a ciência, o medo nos afastam do reconhecimento da morte como etapa natural da vida. Da mesma forma, a economia neoliberal não pensa nela. Excluí ela de nosso horizonte. Trata-se de uma aceitação negada pelo homem. Para onde ela irá? Perdemos a morte simbólica – a representação primitiva, o destino dado aos mortos pelas lendas, pela cultura primitiva – quando aceitamos a medicina ocupar o lugar real de algo que deveria ser ocupado pelo simbólico, pelas crenças. Perdemos a morte na política quando o destino dado a instituições produz sua morte, quando governos querem que aceitemos sem pestanejar o seu fim. Virilio também se deu conta disso em seus estudos.   Em Estética do Desaparecimento, Paul Virilio analisa a cultura contemporânea e suas formas. Ele chama de “arte picnoléptica” a capacidade de saber lidar com as ausências, com os desaparecimentos, com as ocultações, os espaços vazios, os buracos na memória. É uma arte pois implica uma aprendizagem de vida: podemos ser ensinados, mas ninguém desaparece por nós, ninguém nos desaparece senão a nós. Eis-nos diante, novamente, do enigma a morte. Poderíamos falar de uma “política picnoléptica”, essa (in)capacidade da política neoliberal em lidar com os desaparecimentos que produz?

O mais belo objeto de consumo

Baudrillard ao longo de sua vida escreveu muito, ainda que esparsamente, sobre corpo e sexualidade. Ele via, como o filósofo Georges Bataille a proximidade entre vida e morte, eros e tânatos e sabia que a sexualidade era o nó górdio da cultura, como também acreditava o filósofo Michel Foucault. A diferença é que enquanto para Foucault, a sexualidade era o elemento de práticas discursivas que formavam a identidade, para Baudrillard a sexualidade era o elemento que afirmava a vida inclusive na morte (Bataille). Não é possível falar da sexualidade (simbólico) sem falar do corpo (real).

Essa sexualidade não retorna na política? Nelson Marchezan Jr já foi ironizado nas redes sociais por expressões como “morder a fronha”. Mais recentemente, divulgou imagem com uma advogada com quem estaria de namoro, e a expressão de que estaria “estuprando”, com suas medidas, os servidores municipais também corre solta nas redes sociais. O que isso significa? Que formas da sexualidade, no caso, perversa, são metáforas para ações políticas. Ajudam a explicam a intenção dos promotores e a percepção das vítimas.

Baudrillard dedicou análises ao corpo e a sexualidade não apenas em sua obra a Sociedade de Consumo, mas principalmente em A Sedução e As estratégias fatais. O poder do corpo está na sua capacidade de inscrever o imaginário e o desejo. A elevação do corpo (Freud) será a porta de acesso ao erotismo (Bataille) superando a experiência genital (Finkielkraut) e submetido à ação do consumo (Guattari). Baudrillard leva adiante esta elevação do corpo, já que fala da sua morte na apropriação do corpo no imaginário do consumo, como o nascimento do imaginário pornô “Há real em demasia, cai-se no obsceno e no pornô”. O corpo quando se transforma em um objeto a mais de consumo (Finkielkraut) tem como consequência a produção de indivíduos narcisistas e vítimas da vulgarização do sexo, diz Baudrillard. Daí uma das grandes contribuições de Baudrillard, a de que o homo sexuais e o homo econômicus partem do mesmo princípio, o econômico como princípio de produção e acumulação. A sexualidade é esta dimensão humana repleta de significantes, mas que é vítima da banalização que da cultura de massa. Desejo, pulsão e sedução, noções psicanalíticas essenciais são apropriadas por Baudrillard para explicar, à maneira de Foucault, a razão pela qual por mais que os corpos sejam expostos na mídia, continuemos a viver um erotismo de fachada (belos corpos) desvitalizado nas profundezas, substituído por um consumo narcísico. Não se duvide da apropriação pela política de fragmentos destas estratégias.

O mundo após Baudrillard

Baudrillard não chegou a ver a ascensão as redes sociais e seria interessante ver o que pensaria delas. Essa capacidade de mobilização se distanciaria das maiorias silenciosas descritas pelo autor? Quem melhor analisou as redes sociais, num estilo que lembra muito Baudrillard, foi o filósofo coreano Byung Chul Han em sua obra O Enxame, onde compara as redes a…colmeias! de que esse é o enxame humano propriamente dito, como é o enxame para as abelhas no fabrico do mel (não é à toa que uma rede social se chama justamente Bebee).

Fonte: pixabay

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Por outro lado, seria interessante ver a posição política de Baudrillard em relação aos acontecimentos a partir de 2008, as revoltas pelo mundo afora. Baudrillard tinha uma crítica política aguçada, como fazia com o terrorismo e com os acontecimentos de 2001, as Twin Towers. É provável que tivesse escrito mais um volume de suas Cool Memories, que não foram poucas. E muito provavelmente, estaria fascinado com um pais onde Bolsonaro é chamado de “lindo” em uma propaganda política. Baudrilard, que já esteve no Brasil, estaria atento a estas manifestações, estaria muito interessado em nossos novos artefatos tecnológicos e políticos,  nossas estratégias de campanha, mas no fundo, no fundo, faria isso com algo de admiração.

O mundo do espetáculo político

Está tudo em A Sombra das maiorias silenciosas. Baudrillard dá nesta obra o exemplo de comportamento das massas: na noite da extradição de Klaus Croissant, a televisão transmitia um jogo de futebol em que a França disputava sua classificação para a Copa do Mundo. Enquanto poucas pessoas se manifestam diante da Santé, vinte milhões de pessoas passam sua noite diante da televisão. Quando a França ganhou, explosão de alegria popular. A crítica veio em seguida nas páginas do Le Monde, como escandalosa indiferença “Ora, é exatamente essa indiferença que exigiria ser analisada na sua brutalidade positiva, em vez de ser creditada a uma magia branca, a uma alienação mágica que sempre desviaria as multidões de sua vocação revolucionária”. A conclusão de que o poder não manipula nada, que nada há de mistificação, apenas de desejo coletivo. Nesse sentido, esvai-se a esperança da esquerda: os brasileiros estão em processo de direitização porque querem. Querem realmente?

Mas haveria análises diferentes para a política em Baudrillard distintas da ideia da lógica de massa? Programas de televisão são diferentes de jogos de futebol, e portanto, propaganda política difere da consciência eleitoral. Baudrillard já havia feito no passado uma crítica dos programas televisivos tipo Big Brother, e o que falta a esquerda é fazer uma crítica a trajetória da imagem das candidaturas de direita, de como conquistam o voto do eleitor,  tipo de análise que faria diferença. Hoje, talvez se Baudrillard se surpreendesse com a lógica das propagandas políticas de televisão e o fascínio que candidatos de direita exercem para as massas, e o trabalho da esquerda implicaria justamente, o descrever que tipo de passividade exploram no observador, que tipo de transferência de realidade promovem em sentido político. Nisso, a leitura  de Baudrillard pode ajudar.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

 

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