Eichmann, a Brigada Militar, o Judiciário e o Estado de Exceção

Coluna A Advocacia Popular e as Lutas Sociais

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Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Barbárie

Poderia escrever sobre diversos aspectos da noite fatídica do cumprimento da decisão judicial de reintegração de posse da Ocupação Lanceiros Negros, no dia 13 junho, no Centro de Porto Alegre-RS. A inconsistente e violadora decisão judicial, o terrorismo de Estado perpetrado pela Brigada Militar e Oficial de Justiça, desrespeito às instituições democráticas na agressão e prisão do Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, a desconsideração das prerrogativas profissionais, ou mesmo centrando na desumanidade de deixar famílias e crianças na rua, numa noite fria. A barbárie imperou naquela noite em diversas facetas.

Episódios como estes nos faz questionar para que serve o Estado e as suas instituições. As periferias das cidades, povos marginalizados, que sistematicamente são preteridos das políticas de promoção de direitos e sempre são foco das medidas repressivas, podem responder melhor esta pergunta. Para que serve esta ordem estabelecida? O progresso tão falado seria para quem? A história do Brasil de tantos genocídios esclarece tudo isso. Os vencedores, como é comum deles, ainda colocaram na bandeira do país tal mensagem, que percebendo todo este contexto, só pode se entender como escárnio.

Esqueceu-se, não se sabe se propositalmente, da palavra amor, constante do lema positivista de Auguste Comte. Claro, totalmente incoerente a presença da palavra amor, não apenas numa crítica a ideia formulada por Comte, mas também porque nada tem a ver com o Estado brasileiro. O amor não se estabelece numa determinada ordem, nem visa em si progresso. É sentimento, é doação, é cuidar, é busca da felicidade, é caritas, são todas as formas de amar. Não há amor em despejar sem-teto, não há amor em debochar dos manifestantes que ali prestavam solidariedade, nem muito menos repeli-los de forma gratuita.

Cumprindo ordens

Em certo momento naquela noite, em meio à violência, tensões e expectativas, circularam informações desencontradas. Uma delas era que sairia decisão suspendendo a reintegração. Ao se tentar falar com os brigadianos, um deles afirmou que a justiça que faz trapalhada, eles estavam cumprindo seu trabalho. Vários nazistas, no pós-guerra, alegaram tão só cumprir ordens. Adolf Eichmann, oficial alemão com destacado papel, é o mais famoso a utilizar esta “justificativa”. Mas se a ordem é flagrantemente ilegal, como foi a de reintegração da Ocupação Lanceiros Negros? No caso nazista, do ponto de vista legal, todas aquelas barbáries estavam legitimadas. Mas se violar direito à moradia via Judiciário estiver legitimado, mesmo assim, tais ações se justificariam?

“A afirmação monstruosa e, no entanto, aparentemente irrespondível do governo totalitário é que, longe de ser ‘ilegal’, recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua legitimidade final; que, longe de ser arbitrário, é mais obediente […]”[1]

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Muito deve se discutir não só sobre esta ação da Brigada, mas sobre toda a sua forma de agir, de se estruturar e existir. O deboche de brigadianos batendo com cacete na bota para intimidar manifestantes, ou mesmo a atitude de fotografar e filmar não podem ser naturalizados. Se não estamos num Estado de exceção, se existe o direito de livre expressão e manifestação, para que fazerem aquelas imagens? Se a resposta for a “simples” intimidação, já há um crime por parte destes agentes “públicos”. Isto precisa ser respondido, precisa ser esclarecido.

Alguns setores da sociedade vêm se manifestando de forma critica sobre o que ocorreu focando na execução da ordem judicial, como se eximisse o Poder Judiciário sobre tudo o que aconteceu naquele despejo. O oficial de justiça é representante do Judiciário lá no local. Mas para além disto, muitas questões precisam ser respondidas e responsabilidades assumidas.

Legitimação da violência

A mediação, o CEJUSC, foi instrumentalizado para legitimar a violência por parte do Judiciário. Observando a decisão da 7ª Vara da Fazenda Pública esta cita mais de uma vez a tentativa de mediação, criminalizando a ocupação:

“Em suma: não foram poucas as oportunidades de conciliação oportunizadas, contando, inclusive, com apoio do CEJUSC; porém todas as tentativas foram inexitosas.”

Alguma pessoa desavisada, que leia esta decisão poderá entender que as famílias ocupantes estavam intransigentes, que não queriam discutir propostas e saídas. Contudo, o que houve foi justamente o contrário, a intransigência se deu por parte do Estado do Rio Grande do Sul. Por que então a mediação? Para criminalizar o lado mais vulnerável, mesmo quando este está aberto ao diálogo? Válido lembrar a Recomendação CEDH/RS Nº 02/2016, que, dirigindo-se ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul, colocava:

“a)       Seja estabelecido real e efetivo diálogo com as famílias ocupantes, tomando conhecimento e buscando meios reais de acolher suas reivindicações, priorizando sua inclusão em programas habitacionais, caso não seja encaminhado a regularização fundiária do local;

  1. b) Seja avaliada a proposta de cedência do prédio para implantação da Casa de Acolhimento, voltada a acolher transitoriamente pessoas em situação de vulnerabilidade durante o período em que aguardam a moradia definitiva;
  2. c) Seja observada, além de todas as normas do direito pátrio, bem como a legislação internacional referidas, o disposto na Recomendação n. 1 do CEDH/RS.”

Como visto, o diálogo não se estabelecia por culpa das famílias ocupantes. Para fazer justiça a quem prolatou a decisão, num aspecto ela não foi observada pelos executores, incluindo seu próprio oficial de justiça. A reintegração foi efetivada sem a presença de conselheiro tutelar, que chegou bem depois do cumprimento. Todavia, outro trecho merece destaque na decisão:

“Dada a excepcionalidade da medida, que, envolve imóvel no centro da Capital, onde há muito movimento durante semana, autorizo o cumprimento da ordem aos feriados, finais de semana e fora do horário de expediente, se necessário, evitando o máximo possível o transtorno ao trânsito de veículos e funcionamento habitual da cidade.”

Foto: Ederson Nunes/CMPA

Foto: Ederson Nunes/CMPA

Ah, poderia aqui se argumentar que a Ocupação no Centro trouxe maior segurança para área, pois famílias viviam ali, deixando menos deserta a região e suscetível a crimes que se cometem aproveitando-se desta circunstância. Poderia dizer do transtorno que é ataques deliberados do Batalhão de Choque com suas viaturas, bombas, spray de pimenta, balas de borracha, cassetetes, viaturas, etc. Ou mesmo falar de direitos sociais, como à moradia (art. 6º, da CF) em relação a um imóvel vazio, ou mesmo da prioridade absoluta de crianças e adolescentes (art. 227, da CF), inclusive, frente aos veículos referenciados pela decisão judicial. Mas apenas pode-se restringir à Constituição Federal e ao Código de Processo Civil, para quem estiver lendo possa tirar suas próprias conclusões:

“Art. 5º […]

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; 

Art. 212.  Os atos processuais serão realizados em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas.

  • 1o Serão concluídos após as 20 (vinte) horas os atos iniciados antes, quando o adiamento prejudicar a diligência ou causar grave dano.
  • 2o Independentemente de autorização judicial, as citações, intimações e penhoras poderão realizar-se no período de férias forenses, onde as houver, e nos feriados ou dias úteis fora do horário estabelecido neste artigo, observado o disposto no art. 5o, inciso XI, da Constituição Federal.”

Mesmo com a norma assim positivada, a criatividade para fundamentar tal violação não encontra limites. O representante da Promotoria da Ordem Urbanística entendeu que tudo se deu na legalidade, pois o prédio público ocupado não poderia ser considerado moradia, por não haver norma para tanto[2]. Mais uma vez a abstração do direito servindo para negar a realidade de que famílias ali moravam desde 2015. Se não, o que seriam as camas, fogão, roupas, brinquedos das crianças retirados de lá, como demonstram as imagens do ataque realizado? Para não se distanciar dos ditames do debate jurídico, havia um fato que realizava a função social de um prédio público abandonado. Negar o direito social à moradia, as possibilidades de concessão de uso (art. 4º, V, h, da Lei Nº 10257/2001) ou de mudar a destinação do bem para casa abrigo, não condiz com a imparcialidade propagandeada sobre o Judiciário, para realizar o bem comum, dentro das possibilidades do ordenamento jurídico. Percebe-se, então, que vontade política não é algo restrito ao Poder Executivo ou Legislativo. É custo acreditar que se queira entender que aquele prédio não servia de moradia para aquelas famílias, criminalizando a luta social por este direito. Porque se assim for, o Estado de exceção estará formalizado.

Conclusão

Muito são descrentes de responsabilizações dentro das instituições do sistema de justiça, diante do corporativismo das mesmas. Apesar deste ceticismo encontrar certo fundamento, a sociedade não pode se resignar frente a esta situação dada. Uma última coisa sobre o Judiciário foi a demora e fundamentos da declinação de competência no plantão do 2º grau, bem como de ratificação da decisão da Fazenda Pública. Mereceria um artigo só para isto.

Por fim, ressaltar que nesta ação criminosa aqui descrita, chegaram ser presas 8 pessoas por desacato e resistência. O desacato não deve ser considerado crime, inclusive, o STJ já assim decidiu[3], baseando-se no artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos[4].  O direito de resistência constitucional[5] é algo permitido frente a violações como as perpetradas contra a Ocupação Lanceiros Negros. Numa conjuntura de criminalização da política, das esquerdas, válido também lembrar que o direito de resistência possui um fundamento liberal:

“Por isso, se o rei demonstrar um sentimento de ódio, não apenas a determinadas pessoas, mas se colocar contra todo o conjunto da comunidade civil, de que ele é o chefe, e, com um mau uso intolerável do poder, cruelmente tiranizar todo o povo ou uma considerável parte dele, neste caso o povo tem o direito de resistir e se defender da injúria.”[6]

O ódio de classes, ou mesmo desprezo ou descaso há muito demonstrado pelas elites governantes do país repetiu-se semana passada no Centro de Porto Alegre, como se repete, cotidianamente, para diversos segmentos da sociedade brasileira. Assim foi há quase dois séculos, quando se marcou a Batalha de Porongos para chacinar os Lanceiros Negros. E em pleno sec. XXI, novamente se deu o ataque de forças estatais aos Lanceiros Negros, agora a Ocupação. O Governo Estadual e sua milícia, chancelados por uma ordem judicial fizeram, nesta oportunidade, o papel do Exército de Caxias e do Comando dos Farrapos.

Resistir diante desse curso da história, diante destas injustiças é ato de coragem, legítima luta por direitos. Se não existissem estas pessoas que resistem, que lutam, não haveria esperança de se construir sociedade justa e solidária (art. 3º, I, da CF). Como a palavra de ordem Guarani assevera: Aguyjê (obrigado) pra quem luta!

Referências

[1] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 613.
[2] Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2017/06/mp-cobra-criacao-de-protocolo-para-reintegracao-de-posse-no-rs-9817065.html. Acesso em: 19 de jun 2017.
[3] Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Quinta-Turma-descriminaliza-desacato-a-autoridade. Acesso em: 16 de jun 2017
[4] Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em : 16 de jun 2016.
[5] BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência Constitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.
[6] Disponível em: http://www.filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/133.txt. Acesso em: 16 de jun 2016.

 

Rodrigo de MedeirosRodrigo de Medeiros Silva é Articulista do Estado de Direito – formado em Direito pela Universidade de Fortaleza, especialista em Direito Civil e Processual civil, pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural (Porto Alegre-RS) e mestrando em Direito, pela Uniritter. É membro da Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares-RENAP, Fórum Justiça-FJ e Articulação Justiça e Direitos Humanos-JUSDH.
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