Efetividade da execução trabalhista e presunção de inocência

Coluna Valdete Souto Severo

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Presunção de Inocência e a execução trabalhista

Cumprir decisões trabalhistas após a prolação de sentença de primeiro grau, ou de sua confirmação/alteração pelo tribunal regional, não depende de analogia alguma com a recente decisão proferida pelo STF, acerca da presunção de inocência.
Tenho ouvido de advogados que patrocinam causas de trabalhadores, o argumento de que a decisão do STF, ao permitir o cumprimento de pena ainda antes do trânsito em julgado, deve ser utilizada como fundamento para que se determine a execução dos créditos trabalhistas, antes do trânsito em julgado.
O raciocínio já foi também adotado por alguns colegas e parece animador, mas em realidade é uma tremenda cilada.

Foto: U.Dettmar/SCO/STF

Foto: U.Dettmar/SCO/STF

Em primeiro lugar, qualquer uso que façamos de uma decisão judicial que nega norma expressa em texto legal (especialmente quando esse texto é o da Constituição) ou elimina direitos (tal como o direito fundamental de liberdade e de presunção de inocência), chancela a compreensão ali expressada. Ao chancelá-la, estamos concordando com um raciocínio que, além de apartar-se do que dispõe o ordenamento jurídico, compromete a efetividade do pacto social que compomos em 1988.
Ainda que o uso seja um modo de evidenciar a flagrante diferença de tratamento que diferentes direitos e diferentes réus possuem em uma realidade de exceção como a que vivemos atualmente no Brasil, o fato é que o pressuposto será sempre o mesmo. O de que aceitamos, como razoável e passível de ser imitada, uma tal decisão.
No caso da execução trabalhista, existe ainda um problema de fundo.
Não temos necessidade alguma de invocar qualquer fragilização da ordem constitucional, para compreender que uma sentença trabalhista deve ser imediatamente cumprida.
O artigo 899 da CLT estabelece que, ao contrário da lógica presente no processo comum, os recursos de decisões trabalhistas “terão efeito meramente devolutivo”. E ainda acrescenta, para que não reste dúvida, ser “permitida a execução provisória até a penhora”. Essa regra, na época em que editada, constituiu um avanço extraordinário. O CPC então vigente ainda previa a realização de processos distintos, para a fase de conhecimento e para a execução. Logo, a execução, mesmo que de modo provisório, da decisão de primeiro grau, era a exceção no procedimento comum. Na CLT, foi estabelecida como regra.
Há, inclusive, no § 1º desse mesmo artigo 899, ordem expressa para imediata liberação do depósito recursal tão logo transitada em julgado a decisão, mesmo antes de sua liquidação, deixando evidente o pressuposto ideológico de uma racionalidade comprometida com a efetividade do direito.

Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil

Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil

Note-se que a possibilidade expressa de executar de imediato a decisão trabalhista vai muito além da analogia pretendida por aqueles que viram na recente decisão do STF argumento para justificar a efetividade do processo do trabalho. Não se trata de permitir execução após decisão em sede de recurso e, pois, em segundo grau de jurisdição. O comando expresso na CLT é de cumprimento imediato da sentença de primeiro grau. O uso de outra decisão como parâmetro para a atuação da magistratura trabalhista na promoção da efetividade processual implicaria, aqui, compreensão ainda mais restritiva do que aquela que decorre da pura e simples aplicação do texto da CLT, que uma vez mais prova, com esse exemplo, tratar-se de legislação atual e comprometida, em larga medida, com a eficácia do direito fundamental do trabalho. Não é por razão diversa que legislações mais recentes como o Código Civil, o CDC e mesmo o CPC foram se abeberar de normas trabalhistas para atualizar suas disposições e se apartar, ainda que de modo parcial, da raiz privatista e patrimonialista que os identifica em sua origem.
Para aqueles que estão insatisfeitos com o argumento, pois o art. 899 da CLT trata de execução até a penhora, o que evidentemente não permite que o trabalhador ou trabalhadora tenham acesso aos valores reconhecidos como devidos pelo Poder Judiciário, observo que a aplicação subsidiária das atuais regras do CPC sobre execução provisória resolvem o problema. E o fazem de modo mais simples e direto, dispensando-nos da necessidade de aderir a argumentos que fragilizam a ordem constitucional vigente.
A teoria das fontes formais do Direito do Trabalho determina a aplicação da norma mais favorável a quem trabalha, como decorrência lógica da proteção que informa esse ramo do direito. No caso, trata-se exatamente de uma das hipóteses de aplicação da norma mais favorável, decorrência direta da noção de proteção que está no princípio do Direito do Trabalho. A regra da CLT, mesmo que avance ao determinar, como regra, a execução imediata das decisões de primeiro grau, pelo menos até a penhora, foi ultrapassada pelo CPC, desde sua atualização em 2005, quando inserida a regra do art. 475-O estabelecendo a possibilidade de liberação de dinheiro em execução provisória, inclusive com a dispensa de qualquer garantia. A regra foi mantida no CPC de 2015, nos artigos 502 e 521 do CPC:

Art. 520.  O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime:

IV – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos.

Art. 521.  A caução prevista no inciso IV do art. 520 poderá ser dispensada nos casos em que:

I – o crédito for de natureza alimentar, independentemente de sua origem;
II – o credor demonstrar situação de necessidade;

Os créditos trabalhistas tem caráter alimentar. E nossos credores, via de regra, estão em situação de necessidade, pois o reconhecimento da possibilidade de despedida sem motivação os impede, na realidade concreta da vida, de ajuizarem demandas trabalhistas enquanto ainda estão empregados. A maioria absoluta dos reclamantes está desempregada e, portanto, enfrentando o desafio da própria subsistência física.
A execução trabalhista, portanto, não pode ser tardia, sob pena de perda completa de sua função: manter a subsistência de quem trabalha e de sua família.
O compromisso com a ordem constitucional vigente é indispensável, sobretudo em períodos sombrios como aquele que hoje atravessamos. Buscar na exceção a justificativa para a efetividade do direito é um jogo perigoso demais. E desnecessário, especialmente quando temos regras que garantem essa efetividade.
Talvez o que se necessite, com urgência, em tempos de “deforma” da legislação trabalhista, seja conhecê-la ainda mais e utilizá-la, notadamente em tudo quanto garante efetividade e proteção a quem trabalha.

 

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Valdete Souto Severo é Articulista do Estado de Direito – Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.
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