Autoria
Cesar Zucatti Pritsch [1]
Fernanda Antunes Marques Junqueira[2]
Ney Maranhão [3]

Foto: TST/Divulgação
O acesso à justiça constitui, entre outros aspectos, em garantia fundamental de direitos[4], remetendo à ideia de que a efetivação de um direito somente se concretiza se garantido o pleno e amplo acesso ao Poder Judiciário. O benefício da justiça gratuita aos economicamente frágeis apresenta-se como mecanismo essencial à garantia de acesso à justiça, notadamente em um país que convive com congênita e estrutural desigualdade social, recrudescida pelos marcos desregulamentadores, incluindo, neste rol, o acirrado debate quanto à cobrança do beneficiário condenado em honorários sucumbenciais (art. 791-A, § 4º, da CLT, com redação pela Lei 13.467/2017).
A prolação de alguns primeiros acórdãos turmários pelo Tribunal Superior do Trabalho sobre a matéria tem incrementado o debate sobre a sua constitucionalidade[5], bem como sobre qual a melhor interpretação de sua dinâmica e aplicabilidade.
No primeiro e segundo graus não há consenso. Por exemplo, os Tribunais Regionais do Trabalho da 4ª, 14ª e 19ª Regiões, em decisões plenárias proferidas em incidentes de arguição de inconstitucionalidade, declararam a inconstitucionalidade da referida disposição legal, ao passo que o TRT da 18ª Região declarou a constitucionalidade do trecho “desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa“.
Já na Corte Suprema, pende de julgamento ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5766). O trâmite processual foi suspenso em 10/05/2018, com pedido de vista do Min. Fux, após os votos do Min. Fachin, entendendo pela inconstitucionalidade, e do Relator Min. Barroso, para dar interpretação conforme a Constituição, mantendo a possibilidade de condenação da parte autora beneficiária de gratuidade, mas restringindo a dedutibilidade ao proveito econômico obtido em ação judicial[6].
Apenas recentemente foi a matéria enfrentada pelo TST. Esses primeiros julgados, ainda que sem força obrigatória (art. 927 do CPC), gozam de elevada eficácia persuasiva, seja em razão da autoridade prolatora (órgãos fracionários da mais alta Corte trabalhista, de função uniformizadora), seja em razão da novidade do tema (case of first impression). Ademais, a jurisprudência, quando invocada pela parte, enseja ônus argumentativo para o julgador, o qual, sob pena de nulidade por ausência de motivação, deve “demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” (art. 489,§1º,VI, do CPC), ou, ao menos, explicitar as razões de sua discordância.[7] Em se tratando de órgãos fracionários do TST, a existência de precedente persuasivo ainda os confronta com o dever de evitar a criação de dissenso. Assim, caso não concordem com o precedente firmado, ao invés de proclamarem um julgamento conflitante, deveriam suspendê-lo, para provocar a uniformização através do incidente apropriado (IRR ou IAC, conforme o tema seja repetitivo ou não), dada a obrigação de manter a jurisprudência “estável, íntegra e coerente” (art. 926 do CPC).[8]
Nos processos AIRR-10184-51.2018.5.03.0074 e AIRR-11689-84.2017.5.03.0180 (respectivamente da 8ª Turma, Rel. Min. Dora Maria da Costa, e da 3ª Turma, Rel. Min. Alberto Bresciani), a fundamentação apresentada foi deveras sucinta. No primeiro, foi arguida a “violação direta à Constituição Federal” (art. 896, §9º, da CLT) no acórdão do TRT da 3ª Região que reformou a sentença para condenar o autor a pagar honorários advocatícios de “5%, sobre o valor dos pedidos julgados improcedentes”. A 3ª Turma do TST confirmou a inadmissibilidade do recurso de revista, entendendo não demonstrada a violação ao art. 5º, XXXV (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”) e LXXIV (“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”).
Aduziu que o Pleno do TST, através do art. 6º da IN 41/2018, entendeu pela aplicabilidade da referida norma, a qual, “por óbvio”, não violaria o art. 5º, XXXV e LXXIV da Constituição. Já no AIRR-11689-84.2017.5.03.0180, a 3ª Turma do TST concordou com o Regional no sentido de que a regra promove a atuação responsável e leal das partes no processo, impactando em sua qualidade e celeridade, e destacou a posição do Pleno na IN 41/2018, também concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade.
Finalmente, no AIRR-2054-06.2017.5.11.0003, a mesma 3ª Turma do TST (Rel. Min. Alberto Bresciani, 28/05/2019), mais uma vez confirmou a constitucionalidade do art. 791-A, § 4º, da CLT, mas lhe acresceu um condicionamento hermenêutico bastante importante. Asseverou que a imposição de cobrança “a beneficiários da Justiça gratuita requer ponderação quanto à possibilidade de ser ou não tendente a suprimir o direito fundamental de acesso ao Judiciário daquele que demonstrou ser pobre na forma da Lei”, em alusão à proibição de esvaziar “direitos e garantias individuais” (cláusulas pétreas, art. 60, § 4º, IV, da Constituição), como o acesso à justiça gratuita (art. 5º, LXXIV, da Constituição). Nesse encalço, firmou que somente se deverá exigir “do beneficiário da Justiça gratuita o pagamento de honorários advocatícios se ele obtiver créditos suficientes, neste ou em outro processo, para retirá-lo da condição de miserabilidade”, caso contrário, penderá, “por dois anos, condição suspensiva de exigibilidade”.
Deveras, da literalidade do § 4º poder-se-iam extrair duas interpretações. A primeira, levando à conclusão de que o autor poderia ter os honorários descontados do proveito econômico obtido da ação, ainda que de valor baixo e insuficiente para lhe retirar da condição de miserabilidade. Esse raciocínio o discriminaria em relação aos autores cíveis, além de afrontar as garantias constitucionais mencionadas.
Entretanto, à vista da presunção de constitucionalidade da lei, deve o intérprete buscar “salvar a norma de leituras constitucionalmente desastrosas”.[9] Nesta perspectiva, optou-se pela leitura do § 4º em sua inteireza, confrontando-o com a sistemática constitucional e harmonizando-o com a análoga regra do CPC. Assim, “créditos capazes de suportar a despesa” são aqueles que, por seu vulto, transformariam a condição socioeconômica do beneficiário da justiça gratuita[10], semelhante ao que sempre ocorreu no âmbito do processo civil, seguindo opção jurídico-política fundante de nossa República, no sentido de que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV). Aliás – e não poderia ser diferente –, no mesmo sentido é a tradicional jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
- Sendo assim, na liquidação se verificará o “quantum” da sucumbência de cada uma das partes e, nessa proporção, se repartirá a responsabilidade por custas e honorários, ficando, é claro, sempre ressalvada, quando for o caso, a situação dos beneficiários da assistência judiciária gratuita, que só responderão por tais verbas, quando tiverem condições para isso, nos termos do art. 12 da Lei n 1.060, de 05.02.1950. 4. Agravo improvido (STF, 1ª Turma, AgRg-AgIn nº 304693, Rel. Min. Sidney Sanches, julgamento em 9-10-2001, DJU 1º-2-2002).
Ou seja, o próprio STF já decidiu que a simples obtenção de verbas numa ação judicial não autoriza automaticamente o desconto dos honorários de sucumbência recíproca impostos ao beneficiário da justiça gratuita. Reitere-se: mesma diretriz prestigiada no recente CPC (art. 98, § 3º), produzido em cenário pós-88.
Nessa senda, digna de nota é a referida decisão do TST, porque reconhece que tais limitações hermenêuticas “restauram a situação de isonomia do atual beneficiário da Justiça gratuita” e estabelecem que “a constatação da superação do estado de miserabilidade, por óbvio, é casuística e individualizada”.
Ainda que o julgado não ostente eficácia vinculante ou obrigatória, não há dúvidas de que carrega elevada eficácia persuasiva em razão da autoridade prolatora e de sua novidade, tendo potencial para influenciar futuras decisões. Qualquer órgão fracionário do TST que julgar em sentido contrário gerará incoerência jurisprudencial (art. 926 do CPC), a desafiar o recurso de embargos para a SDI (art. 894 da CLT), cujo acórdão será obrigatório (art. 927, V, do CPC), ou a instauração de incidente de recursos repetitivos (IRR) ou de assunção de competência (IAC), vinculantes em sentido estrito, sujeitos a reclamação (art. 988 do CPC).
O prognóstico é que tal decisão, embora ainda não seja vinculante, servirá de baliza para a produção de precedente qualificado na forma do CPC (art. 927), com o potencial de pacificar a jurisprudência trabalhista em tal sentido, salvo se overruled pela decisão final do STF na ADI 5766.
[1] Cesar Zucatti Pritsch – Juris Doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), Juiz do Trabalho (TRT4). E-mail:cesarpritsch@yahoo.com.br
[2] Fernanda Antunes Marques Junqueira é Doutoranda em Direito pela USP. Juíza do Trabalho (TRT14). E-mail:femarques81@gmail.com
[3] Ney Maranhão é Doutor em Direito pela USP. Professor da UFPA. Juiz do Trabalho (TRT8). E-mail:ney.maranhao@gmail.com
[4] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988.
[5] TST-AIRR-10184-51.2018.5.03.0074, 8ª Turma, Rel. Min. Dora Maria da Costa, 19/03/2019; TST-AIRR-11689-84.2017.5.03.0180, 3ª Turma, Rel. Min. Alberto Bresciani, 08/05/2019; TST-AIRR-2054-06.2017.5.11.0003, 3ª Turma, Rel. Min. Alberto Bresciani, 28/05/2019.
[6] ADI/5766, 10/05/2018, ver <http://stf.jus.br/portal/diarioJustica/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=AP&classe=ADI&numero=5766>.
[7] PRITSCH, Cesar Zucatti. Manual de prática dos precedentes no processo civil e do trabalho. São Paulo: LTr, 2018, p. 85.
[8] PRITSCH, Cesar Zucatti. O Art. 926 do novo CPC e a vedação à criação de jurisprudência conflitante. Revista Consultor Jurídico/CONJUR, 3/7/2018, <https://www.conjur.com.br/2018-jul-03/cesar-pritsch-cpc-vedacao-criacao-jurisprudencia-conflitante>.
[9] SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto de; SOUZA, Fabiano Coelho de; MARANHÃO, Ney; AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. Reforma trabalhista: análise comparativa e crítica da Lei n. 13.467/2017, Ed. Rideel, São Paulo, 2017, p. 386.
[10] Ibidem.