A sociedade vai inventando novos sistemas de casamento e a Justiça vai se adaptando, para abrigar a todos sob o manto da lei, ou, pelo menos, amenizar aquela hora muito pouco civilizada em que uma parte só pensa em sair da relação, nem que seja com a roupa do corpo, e a outra conspira para que aconteça exatamente isso.
A frase é de Luis Kignel, e foi extraída da obra dos notáveis civilistas Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. E ela traduz bem o que vamos discutir aqui.
O STJ decidiu há pouco mais de um mês, em julgamento paradigmático, uma questão que vem se tornando corriqueira: casais de namorados têm buscado o Judiciário para ver reconhecida a existência de união estável, e obter a partilha de bens adquiridos na constância da relação.
A questão que aqui se busca esclarecer é: quais são os limites, muitas vezes tênues, entre a existência de um namoro e de uma união estável?
No julgamento do recurso que chegou à Corte Superior, decidiu-se que para que uma relação se caracterize como união estável não basta que ela seja duradoura, pública e que haja, ainda, coabitação; é preciso que, além desses elementos objetivos, exista um subjetivo: a vontade ou o compromisso pessoal e mútuo de constituir família.
Trata-se, a toda evidência, de uma questão difícil de ser decidida, e isso porque o julgador, para concluir pela existência, ou não, de uma união estável, precisa penetrar no íntimo dos amantes e verificar se havia a intenção e o objetivo de constituição de uma família, ou se existia apenas um sentimento ainda descompromissado de não formação de um vínculo matrimonial ou equiparado, como a união estável.
A questão se torna ainda mais complexa quando, por descuido, isto é, não intencionalmente, a namorada/companheira vem a engravidar. O nascimento de um filho, ainda que não planejado, seria uma exteriorização da intenção de constituir família?
Essas são, inegavelmente, questões complexas e que não encontram uma resposta pronta na lei, dependendo, portanto, da interpretação do julgador no caso concreto.
Por essa razão, muitos casais, para fugir da caracterização da união estável, vêm celebrando contratos de namoro, chamados de contratos de intenções recíprocas, em que ambos manifestam publicamente que sua relação não passa de um namoro, fato este que, em princípio, afasta o elemento subjetivo caracterizador da união estável. Ora, se as partes, livres de qualquer vício de consentimento, expõem que não desejam constituir família, por óbvio a intenção da formação do vínculo familiar não existe.
Não obstante, por ser tratarem de situações de fato, haja vista que nem o namoro, e nem a união estável, tem as formalidades de um casamento, parece evidente que, mesmo celebrado tal contrato, a situação pode se modificar ao longo do tempo, sem que seja rescindido ou modificado, formalmente, aquele negócio jurídico.
Nesse caso, caberá ao magistrado, a partir da prova dos autos, verificar em que momento a intenção das partes se modificou e, mesmo estando em vigor o contrato de namoro, concluir pela existência de uma união estável, e assim determinar a partilha de bens adquiridos na constância da relação.
O que se quer dizer é que, embora exista esse instrumento, ele não pode, por óbvio, servir de artifício e ser utilizado indefinidamente como forma de burlar a existência de uma relação duradoura que vise a constituição de uma família e, assim, fraudar o regime de bens da união estável, prejudicando o companheiro de boa-fé.
Como é possível perceber, a questão é, do ponto de vista prático, difícil de ser solucionada. E não poderia ser diferente. Quando estamos lidando com as complexidades do coração, o homem vestido de sua toga precisa se despir das suas mais frias convicções. Só quem conhece o amor e até mesmo sofreu com a indiferença da pessoa amada pode ser capaz de compreender o que se passa na mente de namorados ou companheiros. É preciso sensibilidade e uma capacidade de compreensão que vá além da mera interpretação de normas jurídicas. Até porque para o amor não há regras e princípios, que não seja tão somente amar.
Autor – Thiago Ferreira Cardoso Neves – Possui Pós-graduação em Direito Público e Direito Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e do Curso Jurídico online Ius Premium, do qual também é coordenador. É advogado – Sylvio Capanema de Souza Advogados Associados especialista em Direito Civil, Direito Empresarial e Direito do Consumidor. É, ainda, membro associado da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC.