Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Título original – É LIVRE: o Direito Achado nas terras coletivas de Quebradeiras de Coco Babaçu, de Quilombolas e de assentados da Reforma Agrária em Monte Alegre
Carlos Henrique Naegeli Gondim. É LIVRE: o Direito Achado nas terras coletivas de Quebradeiras de Coco Babaçu, de Quilombolas e de assentados da Reforma Agrária em Monte Alegre – Olho d’Água dos Grilos, Maranhão. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2023, 199 fls.
Sob a direção da Orientadora Professora Talita Tatiana Dias Rampin e dividindo a arguição com Givânia Maria da Silva, na qualidade de avaliador (membro externo), meu colega e co-autor Professor Antonio Sergio Escrivão Filho, e ainda na suplência Maira de Sousa Moreira; participei, na Faculdade de Direito da UnB, da Banca Examinadora, perante a qual o Autor Carlos Henrique Naegeli Gondim defendeu a sua Dissertação de Mestrado.
A Dissertação é o resultado do projeto apresentado ao Programa de Pós-Graduação então, com o título: “O Direito Achado no Campo: a terra coletiva como direito socialmente construído, sua positivação e as tentativas de restrição das políticas públicas que promovem a propriedade e o uso coletivos da terra pós-2016”.
O título, na sua forma originária ou na que tomou para redesignar no trabalho final, responde ao que formulou a voz do próprio sujeito da ação política que realizou o direito e que expressou sua consciência de afirmação, conforme o modo literário que o Autor da Dissertação estabeleceu para a sua narrativa, considerando que o cuidado formal de aplicação do instrumental acadêmico, se incorporou do sentir-pensar da modelagem participativa que seu trabalho assume, conforme ele próprio indica, enquanto pesquisa-ação.
Com efeito, ainda às vésperas de enviar os originais do trabalho, o Autor me escrevia, pedindo desculpas e justificando: “Desculpe. Não consegui te responder ontem porque estou no interior do Maranhão. Vim apresentar os resultados do trabalho para a comunidade com que pesquiso. Envio abaixo a dissertação em PDF. Na terça-feira estarei de volta a Brasília e entrego ao senhor a versão final, já impressa”.
Considero que essa atividade, a meu ver, integra o trabalho na sua completude, até porque, já antecipava o texto, a comunidade é sujeito da pesquisa e também a constrói p. 13):
De tudo o que tenho a agradecer a Seu Cassiano, a primeira coisa será ter me oferecido o título deste trabalho. Havia rascunhado mais de duas dezenas de títulos e nenhum foi tão curto e tão preciso. O título que acabou indo para o projeto de dissertação, depois de várias tentativas, ocupou três linhas da folha de rosto: “O Direito Achado no Campo: a terra coletiva como direito socialmente construído, sua positivação e as tentativas de restrição das políticas públicas que promovem a propriedade e o uso coletivos da terra pós-2016”. Com olhar de Mãe, de professora e de pesquisadora, Lucia escreveu ao lado: “A Academia pede que se conte a história toda no título. Mas será necessário contar tudo? De qualquer forma, adorei o ‘Direito Achado no Campo’.”
Em O Olhar Etnográfico e a Voz Subalterna, José Jorge de Carvalho (Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 7, n. 15, p. 107-147, julho de 2001), elabora um sofisticado processo de tradução de vozes subalternas. Nesse artigo propõe, em primeiro lugar, uma revisão teórica da Antropologia, avaliando seu lugar no rol das teorias atuais das Ciências Humanas, por meio da construção de metáforas das metamorfoses do olhar etnográfico, para detectar momentos importantes da recepção e reprodução de saberes subordinados. Coincidentemente, nessa parte, ilustra essas discussões com a apresentação de uma narrativa extraordinária de uma quebradeira de coco de babaçu do Maranhão, exatamente da Comunidade e da situação examinada por Gondim, em texto que o próprio antropólogo erige como “emblemático da condição contemporânea de desenraizamento e perplexidade a que estamos submetidos, tanto os nossos supostos nativos como os etnógrafos e intelectuais dos países periféricos”, e para cuja redação muito se valeu, ele confessa, da mesma fonte utilizada por Carlos Gondim para desenvolver a sua leitura do empírico que baliza as suas narrativas – a Professora Noemi Sakiara Miyasaka Porro, antropóloga, docente da Universidade Federal do Pará (UFPA) e autora da peça técnica que é a fonte de consulta dos dois textos (p. 137):
Há ainda um último texto, que é na verdade um pretexto, um subtexto, um motivo, uma evocação de um ato que marcou a vida da comunidade (e em alguma escala, marcou também minha vida após conhecê-lo), o qual foi não apenas narrado por uma mulher, porém serviu também para inscrever uma sensibilidade que podemos qualificar de feminina a esse movimento social. No momento da queima de todas as casas, executada pelo oficial de justiça, veio a juíza de Monte Alegre exigir que as mulheres abandonassem o povoado destruído. Aí, uma das mulheres se aproximou da juíza e lhe deu um coque na cabeça, um golpe leve, de punho fechado. Isso foi feito para acordá-la da injustiça que ela estava contribuindo para perpetuar. A quebradeira de coco cobrou da juíza que tivesse mais simpatia pelas mulheres: ela, uma mulher que também pariu, deveria entender o sofrimento daquelas mulheres pobres e injustiçadas. A juíza então chorou ao receber o coque e mudou: instantaneamente determinou que medidas fossem tomadas para cessar as hostilidades contra a comunidade e afastou do horizonte qualquer ameaça de despejo e de legalização da grilagem. No final da luta, Olho D’água dos Grilos alcançou o estatuto, há tanto sonhado por seus habitantes, de reserva extrativista.
A Dissertação de Carlos Gondim agrega conhecimento a um conjunto de estudos desenvolvidos na Faculdade de Direito (Programa de Pós-Graduação em Direito) e no CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidiciplinares (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania) que se orientam a partir dos pressupostos político-teóricos de O Direito Achado na Rua.
Assim, a Dissertação de Vilma Francisco e mais ainda seu livro Direitos Humanos para Quilombolas. Coleção Caminho das Pedras, vol. 1. Vilma Francisco. Rio de Janeiro, 2006. Sobre os trabalhos de Vilma conferir em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-para-quilombolas/, a recensão que elaborei.
Nela, ponho em relevo o fato de que Vilma Maria Santos Francisco antecede seu exercício autoral, no forte engajamento que imprimiu na UnB – Faculdade de Direito, na realização de seu mestrado, concluído em 2005, sob a minha orientação. Então, como disse acima, ela desenvolveu com mérito a dissertação intitulada Olhares de Ébano. Ensino Jurídico no Brasil, Fendas para a Diferença: condições e possibilidades para práticas inclusivas.
A dissertação, cujo inteiro teor pode ser encontrado no Repositório de Teses e Dissertações da Universidade de Brasília foi a base a partir da qual Vilma pode desenvolver a abordagem pedagógica tão bem construída em seu livro. Com efeito, na Dissertação, ao analisar o ensino jurídico e a questão da discriminação racial no Brasil, contra os afro-descendentes, Vilma enfatiza a presença social desse segmento, para discorrer sobre os aspectos conceituais inerentes ao racismo, de modo a evidenciar os elementos emblemáticos que estruturam na prática cotidiana, situações concretas de preconceito e discriminação racial.
No seu acumulado teórico-epistemológico, Vilma em situação de gestora de políticas públicas para inclusão racial, deslocou com familiaridade suas preocupações educadoras para fundamentar as lutas sociais por reconhecimento de direitos humanos, conforme a agenda política de fortalecimento da consciência, da defesa e das atitudes de apoio à causa quilombola no Brasil.
Seu trabalho precede a vertente acadêmica que se debruça sobre o tema e que começa a oferecer reflexões valiosas para a afirmação dos direitos humanos das Comunidades Quilombolas. É o caso da dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UnB) em elaboração, também sob minha orientação, de Emília Joana Viana de Oliveira: Mulheres quilombolas na luta pelo direito à água: uma reflexão a partir do conflito do Quilombo Rio dos Macacos – BA.
No centro de sua pesquisa se vai constatar a água como elemento central para a produção e reprodução da vida humana, e, também para a manutenção do modo de vida da Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos-BA, pela identidade quilombola pesqueira e agricultora no espaço rural. A dissertação apresenta a água como um componente central na disputa pelo território no conflito com a Marinha do Brasil, que executa uma gestão territorial de controle, proibição, violências e restrição do acesso à água, com diversas violações de Direitos Humanos desde a chegada da instituição no território onde já vivia a comunidade e se iniciaram as atividades que envolvem o complexo da Base Naval de Aratu-BA na década de 50.
A partir do conflito, vê-se a práxis de mulheres quilombolas para a manutenção do modo de vida quilombola, que é atravessada pelo racismo e ao sexismo, tem o papel anunciar que o território também é água, na medida em que lutam para que o processo de regularização fundiária quilombola no contexto de conflito com o Estado, por meio de uma instituição militar, garanta também o acesso aos rios, fontes sagradas e a possibilidade de uso da água de todas as formas necessárias para a garantia do modo de vida quilombola.
A disputa pela compreensão da água como parte do território e como um Direito Fundamental, surge da percepção de mulheres negras nesse conflito e visa a efetivação deste diante do Estado e se aplica a esse, mas também a tantos outros conflitos fundiários no Brasil, marcados pelo racismo desde a colonização, de modo que o olhar para a experiência quilombola, no passado e no presente, evidencia um dos modos de disputa pelo acesso à terra da população negra brasileira, como continuidade da Diáspora Africana. Ao mesmo tempo, amplia a percepção do acesso a água como dinâmica essencial para a manutenção dos modos de vida de acordo com as identidades e as territorialidades.
Nesse diapasão, localizo a pesquisa de Áurea Bezerra de Medeiros Entre a Ocupação, a Certificação e a Titularidade da Terra: a Luta pelo Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN. Dissertação de Mestrado, apresentada e defendida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília – UNB. Brasília, 16/08/2019.
O estudo de Áurea apreende uma realidade em processo, pondo em evidência o conjunto de ameaças que pairam sobre o direito reivindicado. Para a autora, “no caso da Comunidade, a garantia jurídica de seus direitos esteve todo o tempo sendo tolhida, conseguir a efetivação deste direito tornou-se uma luta desleal, observa-se o período que o processo ficou parado na primeira instância sem ter prosseguimento, e o prazo que não foi concedido a Comunidade para apresentar manifestação sobre o terceiro interessado que iria fazer parte do processo”.
Se bem possa parecer uma constatação pessimista, a autora confia na mobilizadora das expectativas utópicas e se apoia “nos dizeres de (Joaquín Herrera Flores, A reinvenção dos direitos humanos; tradução de: Carlos Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias – Florianópolis: Fundação Boiteux 2009), o problema não é de como um direito se transforma em direito humano, mas sim como um “direito humano” consegue se transformar em direito, ou seja, como consegue obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade”.
A dissertação de Áurea Bezerra de Medeiros acaba assumindo mais que o resultado como artefato de um percurso acadêmico, um requisito para a obtenção de um grau universitário. Ela é isso sim. Mas é, principalmente, um instrumento para documentar uma luta em curso, importante para a Comunidade de Macambira que tem uma agenda para realizar, em relação a sua titularidade, e a revisão dos itens lesivos de um acordo impeditivo à transformação do direito. Espero que Áurea volte à Comunidade, apresente a sua dissertação em seus espaços associativos e a ofereça como uma referencia singular para que o “direito humano” consiga se materializar em direito, ou seja, logre obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade, realizando finalmente o Direito à Terra da Comunidade Quilombola de Macambira – RN. A esse respeito, conferir minha coluna Lido para Você na qual examinei o trabalho de Áurea: http://estadodedireito.com.br/entre-a-ocupacao-a-certificacao-e-a-titularidade-da-terra-a-luta-pelo-direito-a-terra-da-comunidade-quilombola-de-macambira-rn/.
Nesses estudos, uma nota distintiva, é a relevância das categorias de O Direito Achado na Rua, utilizadas com pertinência e entendimento preciso, para dar alcance ao protagonismo de movimentos sociais, tendo o Direito Achado na Rua como instrumento de luta, molas propulsoras para aquisição de direitos humanos, cidadania e democracia. É o que se encontra também em EMMANOEL ANTAS FILHO. MOVIMENTO SOCIAL QUILOMBOLA E O DIREITO ACHADO NA RUA: UMA ANÁLISE DA ORGANIZAÇÃO E LUTAS DO QUILOMBO AROEIRA EM PEDRO AVELINO-RN. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Serviço Social e Direitos Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Maria Ivonete Soares Coelho; Coorientador: Prof. Dr. Lauro Gurgel de Brito, Mossoró, 2020.
No trabalho de Emmanoel, a análise conceitual e histórica “mostrou que o quilombo deixou de ser somente um aspecto negativo, ilícito e até criminoso, para, diante de uma ressemantização, ser analisado por outros prismas, levando em conta aspectos sociológicos e políticos que passaram a fundamentar as razões da reunião dos negros descendentes de escravos e essa territorialidade que os ligam à terra vindicada”. Assim, “foi trazido um conceito de quilombo que envolve categorias como união, identidade étnica, luta, preservação de valores, sujeito coletivo de direito, resistência e territorialidade. Com essas categorias conceituais veio à baila uma nova percepção de quilombo, com nova interlocução com a sociedade e com o aparato estatal, que passa a se afigurar como o que se denomina de movimento social quilombola”. Ver: http://estadodedireito.com.br/movimento-social-quilombola-e-o-direito-achado-na-rua/.
Eu poderia dizer que a Dissertação de Carlos Gondim segue essa vertente descortinadora da questão quilombola e extrativista que marcam os trabalhos que acabo de referir centrados na afirmação de uma subjetividade coletiva que reivindica a titularidade de direitos socialmente construídos.
Uma subjetividade, aliás, que se transporta para a própria escrita do Autor, arrebatado e encantado com o apelo telúrico dos sujeitos de sua pesquisa:
Os quatros dias de Teia [referência à roda de conversa comunitária que resgata memória e orienta o sentido de suas ações e lutas] me ajudaram a melhor compreender a relação dos povos com as lutas pelo território. Sob o tema “Na força das retomadas, tecemos nossa união”, ouvi depoimentos muito fortes de Indígenas, Quilombolas, Quebradeiras de Coco Babaçu, ribeirinhos, pescadores, camponeses e membros de povos tradicionais. Ouvi muitos relatos de violência, de ameaças, de opressão. Histórias impressionantes de resistência, e de resiliência se misturaram na Teia, nutrindo a luta dos diversos movimentos sociais. Mesmo com tantos relatos de tragédias, os povos ocupavam todo o tempo entre uma atividade e outra com a música, com a dança, com o tambor, com a religiosidade, mostrando que a luta dura pode ser sempre temperada com alegria e entusiasmo.
Uma subjetividade, contudo, convertida em rigor teórico-metodológico, que não se deixa refletir em subjetivismo enviesado. Mas que repercute todo esse enlace de saber-sentimento tecido por racionalidades sensíveis (Maffesoli) ou poéticas (Martha Nussbaum), que possam animar compromissos de solidariedade, em linguagem inclusive pastoral própria dos seus engajamentos com a ação emancipatória, libertadora, agora se reencontrando depois de um purgatório pontifício, com a teologia poética do Papa Francisco, que a mim também me tem tocado, não fosse eu membro ativo da Comissão Justiça e Paz de Brasília, para preservar a formação pastoral e missionária que o Autor revela, numa referência a sua adesão a uma teologia posta a serviço do mundo e da história, feita de libertação.
Epistemologicamente preservado o distanciamento que o científico positivista tanto valoriza, mesmo num campo de conhecimento que admite juízos de valor e não somente juízos de fato, a Dissertação felizmente mantem, no estilo, na estrutura, nas metáforas, o arranjo co-razonado, senti-pensante (Fals Borda), de forte aplicação nas abordagens de O Direito Achado na Rua. Para uma referência de aplicação, ver PEÑA AYMARA, Shyrley Tatiana. A Subjetividade do Sujeito Coletivo de Direito: Senti-pensar e Co-razonar, in FIGUEIREDO, Ana Cláudia Mendes de et al (organizadores)O Direito Achado na Rua: sujeitos coletivos. Só a luta garante os direitos do povo! Coleção Direito Vivo volume 7. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.
Assim, pois, o capítulo 1 – Nossa História é um Romance, uma licença autorizada para literalizar a narrativa, inserindo biografia e projeto de vida, afetos que trazem amorosidade para o enredo da Dissertação, com histórias, em primeira pessoa (Boaventura de Sousa Santos. Sociologia na Primeira Pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 49, São Paulo: Editora Brasiliense, primavera/1988), de amizades suas e algumas minhas (como o primeiro ator externo que se fez presente foi o deputado estadual Haroldo Saboia, com quem convivi na UnB e na Constituinte, então filiado ao PMDB do Maranhão. Militante das causas populares, Haroldo Saboia estava em Peritoró, cidade próxima, e soube, por acaso, do que estava acontecendo na comunidade) e de seu encontro com Natália.
Afinal, a literatura não é um delírio, mas como lembra Eduardo Lourenço, falando dos heterônimos de Fernando Pessoa, aliás, também referido (Pessoa), por Carlos, é a apropriação do real por meio de outra linguagem (Eduardo Lourenço. A Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999). Não é essa a mediação que aparece em Itamar Vieira Junior, em seu Torto Arado, tomando o mesmo tema? Sobre esses sujeitos que ele diz ser: “gente forte que atravessou um oceano, que foi separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e iluminada. Gente que atravessou tudo, suportando a crueldade que lhes foi imposta” (VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. [s.l.]: Leya, 2019, p. 261). Gente que, “graças as suas crenças [fez vigorar] uma ordem própria, [para] atravessar o tempo até o presente” p. 196.
Diviso na abordagem de Carlos algumas singularidades marcantes. A primeira delas é a de que seu arranque teórico-político deriva de sua identificação com O Direito Achado na Rua, seus fundamentos e sua práxis. Com efeito, diz Carlos:
Sob a ótica do Direito Achado na Rua, decidi me debruçar sobre as formas coletivas de uso e apropriação da terra praticadas pelos movimentos sociais do campo, das águas e das florestas. Considerei que, em meio à hegemonia capitalista que tem como fundamento a propriedade privada da terra, seria importante dar ênfase a arranjos jurídicos diversos da propriedade privada, individual e exclusiva praticados por comunidades quilombolas, indígenas, camponeses e comunidades tradicionais.
Entendendo que as terras vinculadas a indígenas, quilombolas, camponeses e povos tradicionais, as terras coletivas e as terras inalienáveis estão impermeáveis ou menos permeáveis aos novos processos de colonização do sistema capitalista que tem na propriedade privada um importante instrumento de sujeição e subordinação, optei por reunir todas estas relações com a terra diversas da propriedade privada na categoria terra livre. Quando utilizar o termo terra livre, estarei me referindo às terras que não estão plenamente incorporadas ao mercado global de produção de commodities, podendo o arranjo jurídico específico exprimir uma terra comum, uma terra coletiva, uma terra com título de propriedade condominial ou emitido em nome de uma associação que congregue assentados da Reforma Agrária, Quilombolas, Indígenas ou outros povos tradicionais e, ainda, as terras de propriedade estatal destinadas à agricultura familiar, aos povos indígenas e a outros povos tradicionais.
Assim, estarão reunidas no termo terra livre as relações jurídicas diversas da propriedade privada; que em geral são criadas pelas práticas sociais e podem ser reconhecidas ou não pelo Estado. O fator distintivo da categoria terra livre é o fato de a terra estar livre da propriedade privada, fora do campo de atuação direta do mercado de terras, podendo tal condição se dar em caráter permanente – como as Terras Indígenas, os Territórios Quilombolas, os Projetos de Assentamento ambientalmente diferenciados e as Unidades de Conservação com populações tradicionais –, ou temporário, como os Projetos de Assentamento comuns titulados com Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e os Projetos de Assentamento comuns que, com qualquer espécie de título, são parcialmente coletivos ou totalmente coletivos. Ao contrário da propriedade privada, cuja destinação essencial é a reprodução do capital, a terra livre se coloca como meio de vida e de proteção aos povos tradicionais e a seus modos próprios de fazer, criar e viver, servindo de instrumento de garantia das múltiplas identidades compartilhadas por um povo, identidades estas que constituem o vínculo com a terra e, ao mesmo tempo, são determinadas por este vínculo.
As terras livres, em quaisquer de seus arranjos jurídicos, são relações com a terra mediadas por direitos criados por camponeses, quilombolas, indígenas, quebradeiras de coco babaçu e por outras comunidades tradicionais. Organizados em múltiplos movimentos sociais do campo, das águas e da floresta, diversos atores sociais assumiram e assumem a categoria de sujeitos coletivos instituintes de direitos que exprimem e informam as relações jurídicas com a terra diversas da propriedade privada.
O Direito Achado na Rua utiliza o seguinte modelo de investigação: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade.
Sendo a “rua” a metáfora do espaço público, nosso trabalho examinará os Direitos Achados no Campo tendo como base a Comunidade Quilombola Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos, situada em São Luís Gonzaga do Maranhão, na microrregião do Médio Mearim, centro do Estado do Maranhão, macroterritório das Quebradeiras de Coco Babaçu. Atualmente o Território Quilombola Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos coincide com o Projeto de Assentamento Monte Alegre – Olho d’Água dos Grilos, criado pelo Incra em 25 de agosto de 1986. Referido Projeto de Assentamento fora criado para dirimir um longo conflito fundiário, assentando quilombolas, quebradeiras de coco e outros posseiros da área.
Desde o início, o Projeto de Assentamento assumiu a forma coletiva, congregando cerca de 109 (cento e nove) famílias que já habitavam e usavam a área em regime de terras comuns. Trinta anos depois de sua criação, o Projeto de Assentamento se vê envolvido em um conflito interno: de um lado, a Associação Novo Tempo, congregando um grupo de assentados que reivindicam a divisão do Projeto de Assentamento em lotes individuais a serem titulados sob a forma de propriedade privada. De outro, a Associação Unidos Venceremos, que reúne assentados que se reconhecem como quilombolas e demandam a titulação das áreas do Projeto de Assentamento como Território Quilombola – coletivo, indivisível e inalienável.
Essa adesão convicta aos enunciados de O Direito Achado na Rua é diretamente estabelecida pelo Autor revelando seu percurso e o ponto de convergência com os fundamentos da corrente teórico-crítica que nos reúne. Diz ele, na Dissertação, que
Estimulado pelo Professor José Geraldo de Sousa Junior, escrevi sobre os camponeses de Marapicu, com quem tive oportunidade de colaborar enquanto servidor público do Município de Nova Iguaçu em artigo publicado nos anais do Seminário Internacional “O Direito como Liberdade: 30 anos de O Direito Achado na Rua” intitulado “O Direito Achado no Campo: A Luta dos Camponeses de Marapicu pelo Primeiro Projeto de Assentamento Municipal do Brasil”, do qual extraí a breve explicação introduzida nesta parte da introdução. (GONDIM, Carlos Henrique Naegeli. O Direito Achado no Campo: A Luta dos Camponeses de Marapicu pelo Primeiro Projeto de Assentamento Municipal do Brasil. Anais do Seminário Internacional“O Direito como Liberdade: 30 anos de O Direito Achado na Rua”. Brasília, 2019.)
Esse texto está, de fato na bibliografia da Dissertação. Assim como está, em relevo, outro texto mais próximo da própria Dissertação, ainda que co-autoral, mas que foi desenvolvido para realizar um exercício de atualização e de emergência de temas e questões que adensam a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua. Refiro-me ao ensaio O Território Achado na Aldeia e no Quilombo: a Antítese da Mercantilização Neoliberal, que o Autor elaborou com seus colegas Joanderson Gomes de Almeida (Indígena do Povo Pankararu), Luís de Camões Lima Boaventura (Procurador da República que atua e desenvolve pesquisas em justiça socioambiental e direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, tendo defendido recentemente dissertação sobre esse tema aqui na Faculdade de Direito sob a orientação da professora Talita Rampin) e Vercilene Francisco Dias (quilombola do povo Kalunga, assessora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ e da ONG Terra de Direitos, que desenvolve tese de doutorado na Faculdade de Direito da UnB).
O ensaio foi publicado em obra que co-organizei – O Direito Achado na Rua. Questões emergentes, revisitações e travessias. Coleção Direito Vivo. Volume 5. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021) e nele, Gondim e seus colegas co-autores cuidaram de “analisar como os direitos territoriais são positivados e moldados, entre avanços e retrocessos, a partir das lutas empreendidas por povos indígenas e quilombolas. São apresentadas percepções nativas de uma quilombola e de uma indígena acerca de seus territórios tradicionais, para deixar claro, a partir de suas narrativas, o quão paradoxal com o capitalismo é a relação estabelecida entre esses grupos étnicos e a terra, razão pela qual as conquistas obtidas estão sendo alvo da sanha neoliberal [e como] indígenas e quilombolas têm ativado suas capacidades de agência e, vencendo desafios, têm apresentado à sociedade homogênea o caminho para um futuro possível”.
Um tanto desse roteiro está presente na Dissertação de Carlos Gondim. Conforme ele propõe:
No primeiro capítulo, faremos o relato da história da Comunidade Quilombola Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos, destacando as relações de poder e as resistências que atravessam o Território Quilombola, construídas ao longo de mais de 150 (cento e cinquenta) anos. As práticas coletivas, o uso comum, as resistências e os conflitos vividos por aquela comunidade marcaram a terra – ou geografaram – de um jeito próprio, criaram direitos e organizaram os quilombolas em diversos movimentos sociais. A compreensão do Território Quilombola enquanto espaço-tempo que condensa tempos vividos em comunidade auxilia na compreensão da importância de que o Território Quilombola Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos permaneça coletivo, de uso comum e que avance para a forma jurídica permanentemente coletiva e inalienável.
No segundo capítulo, trataremos da terra livre enquanto Direito Achado no Campo, enquanto instrumento de resistência à ideologia capitalista que prega como única forma de relação com a terra a propriedade privada. Veremos como a comunidade de Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos criou o atual Projeto de Assentamento coletivo, sobreposto a um Território Quilombola e a um Território Tradicional de Quebradeiras de Coco Babaçu.
Transitando para as escalas regional e nacional, vamos passar por algumas políticas públicas agrárias, étnicas e ambientais que promovem a terra livre no Brasil – Territórios Quilombolas, Projetos de Assentamento comuns, Projetos de Assentamento Ambientalmente Diferenciados, Unidades de Conservação vinculadas a comunidades tradicionais e Territórios das Quebradeiras de Coco Babaçu.
No terceiro capítulo, trataremos da importância de o Território Quilombola Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos se consolidar como terra livre. Examinaremos o conflito com o Grupo do Corte, que pretende cortar a terra e, também, os vínculos e a história da comunidade, obedecendo a uma lógica privatizante que tem hegemonizado as políticas públicas agrárias e fundiárias. Antes voltadas para a distribuição de terras e para a produção familiar, a Reforma Agrária e a Regularização Fundiária se tornaram mecanismos de privatização de terras públicas, alimentando o mercado de terras. Em contraposição a essa redução individualista e privatista da terra, os Quilombolas de Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos lutam pela terra livre.
Mais do que um ponto de partida ou um fio condutor para a temática com a qual escolhi trabalhar, Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos é quem nos ensina sobre as novas e tradicionais formas de se relacionar com a terra, formas estas diversas da propriedade privada. Como Projeto de Assentamento Coletivo, como Comunidade Quilombola, como Território de Quebradeiras de Coco Babaçu e como sujeito coletivo de criação e manutenção de Direitos, Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos é a protagonista da luta pela superação de modelos excludentes que o capitalismo tenta nos impor em permanentes movimentos de expansão e colonização.
Nesse processo diz Carlos Gondim:
Entendi, então, que muitas comunidades rurais do Maranhão, sejam os quilombos, sejam as comunidades de quebradeiras de coco babaçu, sejam os projetos de assentamento, vivenciam com muita força a terra coletiva. Nessas comunidades há terra livre, há direito achado no campo, há direitos criados pela práxis instituinte e pela luta dos movimentos sociais, no contexto dos conflitos com a propriedade privada, com o capital, com formas colonizadoras de imposição de um único modo de viver e de se relacionar com a terra.
Encontrei, em Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos, a terra livre com os direitos achados no campo que vão se reproduzir em outros Territórios Quilombolas, em outros Projetos de Assentamento, em outros territórios de Quebradeiras de Coco Babaçu. Por isso, neste capítulo, quero tratar de alguns dos direitos territoriais, institucionalizados ou não, que podem ser encontrados em Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos – em escala local – e em Territórios Quilombolas, Projetos de Assentamento coletivos e em territórios de Quebradeiras de Coco Babaçu – em escalas maiores.
Percorrendo as diferentes escalas, vamos utilizar o método de investigação de O Direito Achado na Rua, determinando os espaços políticos no qual se desenvolvem as lutas, os conflitos, as reivindicações e as práticas sociais instituintes de direitos, identificaremos os sujeitos coletivos instituintes de direitos e descreveremos os novos direitos criados nas práticas e lutas dos movimentos sociais, apontando, quando possível, os direitos que foram incorporados pela legislação formal, p. 64-65
Forte na Dissertação, a caracterização do instrumento [que] garantiu a propriedade coletiva e inalienável das terras tradicionalmente ocupadas e tituladas em nome das comunidades quilombolas, bem como incorporaram-se as principais demandas desses grupos, como o critério do autorreconhecimento e a utilização da desapropriação como instrumento de regularização fundiária dos territórios p. 77.
E que vai encontrar amparo na Convenção nº 169 da OIT, para ultrapassar a ideia de terra como propriedade privada, individual e exclusiva, reconhecendo territorialidades e relações com a terra plurais e, eventualmente, com usos sobrepostos, p. 78. Fator que, para o Autor vem a se constituir
O aspecto mais importante sobre a titulação de Territórios Quilombolas diz respeito às características do título outorgado à comunidade e que são fundamentais para garantia e preservação da terra livre vivenciada por tais comunidades. O título expedido em favor da associação de quilombolas se dá sempre em caráter coletivo e indivisível e ostenta cláusulas de impenhorabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade.
As características da titulação de Territórios Quilombolas afastam, oficialmente, as terras tituladas aos quilombos do conceito de propriedade privada, individual e exclusiva. Esse foi um dos motivos que ensejaram o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239 pelo antigo Partido da Frente Liberal – PFL
Contra essa afirmação de subjetividade coletiva titulável, contradita pela reação do latifúndio e do privatismo, não só patrimonialista, mas também societal no chão do popular, se pensarmos a demanda cooptada do antagonismo entre a tese emancipatória do assim chamado pelo Autor Território Quilombola e a expectativa divisionista do denominado Corte da Terra, é que vai demarcar o espaço de manifestação das subjetividades posicionadas entre “A negação do direito à terra e do direito de a comunidade ter assentadas as cerca de 30 (trinta) mães solteiras impulsionou o sujeito coletivo a criar um Projeto de Assentamento coletivo, criando um novo direito a partir do conflito com a institucionalidade. [Quando então] Foi criado, naquele momento, um Direito Achado na Rua, ou seja, no espaço do território de Monte Alegre – Olho D’Água dos Grilos, o sujeito coletivo se organizou e criou um novo direito, não previsto na legislação formal” p. 90.
Para o Autor da Dissertação, do que trata o seu estudo é compreender que o social institui direitos, porque reconhece que “há regras escritas e regras não escritas para a utilização dos frutos da Mãe Palmeira. Todas elas são criadas pelas práticas sociais e, eventualmente, acabam inscritas em regulamentos de associações de camponeses ou mesmo em legislações locais e estaduais. Há regras que garantem o uso comum e igualitário dos frutos do babaçu, como a regra que não permite o corte do cacho de coco que pende da palmeira, sendo permitida apenas a coleta dos cocos que estão no chão” p. 120.
São essas perspectivas derivadas de uma juridicidade plural que vão interpelar o Direito, na acepção que lhe atribui O Direito Achado na Rua, conferindo achados que ampliam o catálogo de enunciados legitimados e funcionais.
É disso que trata José Heder Benatti, instigado pelas normas de Anilzinho Baião, no seu Pará, com seringueiros escrevivendo duas normas em seus cadernos de leis. Em UMA TRAJETÓRIA ACADÊMICA: DO AGRARISMO AOS DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS. JOSÉ HEDER BENATTI MEMORIAL ACADÊMICO. Concurso para Professor Titular da UFPA. Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará. Belém, 2021 (http://estadodedireito.com.br/uma-trajetoria-academica-do-agrarismo-aos-direitos-socioambientais/), Benatti vai expor essa clivagem que traz para a centralidade de sua reflexão e para inferências estratégicas de reconhecimento das reivindicações operadas pelos movimentos sociais, a noção de propriedade coletiva, pedra angular dessa reflexão.
Pois, como ele afirma (p. 62, do Memorial), “ao analisar a diversidade de institutos fundiários que asseguram os direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais, as diferentes normas administrativas que foram elaboradas para definir os procedimentos de reconhecimento do direito ao território tradicionais, os diferentes órgãos responsáveis para responder às demandas surge o questionamento se: se tratava de distintos institutos jurídicos que possuíam a mesma legitimação para o reconhecimento dos direitos territoriais? O que é a propriedade coletiva ou comum que está sendo reconhecida no Brasil?”.
A segunda ordem de elaboração se refere a redesignar, para efeitos de reconhecimento das reivindicações, o conceito de dominial. A partir de estudos para fornecer subsídios à formulação de políticas públicas para a regularização fundiária e manejo dos recursos naturais na várzea a questão da dominialidade da terra de várzea, as possibilidades de regularização fundiária e o manejo dos recursos naturais realizados pelas comunidades tradicionais ribeirinhas, o Autor constata que a dominialidade está intrinsecamente ligada à questão de quem é titular da terra que de cada quatro a seis meses fica submersa na água. Portanto, para verificar se a várzea pode ser enquadrada como um bem público ou privado e se pode ser apropriada privadamente. Ligada a essa discussão está a definição de sua natureza jurídica e seu conceito.
Assim, ele considera que “definindo a dominialidade, pode-se discutir o aspecto da regularização fundiária e os instrumentos jurídicos mais adequados para superar a indefinição da situação jurídica de quem se apossou dos recursos naturais da várzea, ou seja, quais são os direitos de quem ocupa a terra de várzea e dos lagos. Por ser pública e de uso comum, não ocorre a transferência da dominialidade da várzea, que somente translada a cessão de uso do solo com permissão de utilização dos recursos naturais. O acesso jurídico ao solo e aos recursos naturais da várzea se dará por meio de institutos publicísticos, tais como concessão de uso ou concessão de direito real de uso. Outra forma de transferência é a afetação da área em unidade de conservação ou assentamento”. Daí a conclusão de que “o processo de regularização fundiária deve levar em conta duas premissas básicas para minimizar os impactos ambientais: a) considerar a integridade ecológica do conjunto de ambientes da várzea (solo, cobertura vegetal e recursos hídricos); e b) os diferentes padrões de agricultura e manejo da floresta empregados pelos ribeirinhos, ou seja, a forma de apossamento e uso dos recursos naturais”.
Com o apoio em Carlos Frederico Marés, o Autor vê “a necessidade de superar os problemas causados pelo confronto entre o direito de propriedade e a proteção dos recursos naturais, como se fossem dois aspectos separados e independentes”. Para ele, “a estrutura tradicional do direito de propriedade está fundamentada na concepção produtivista que exclui os aspectos sociais e ambientais. A propriedade rural não foi utilizada como um instrumento de inclusão social; pelo contrário, excluíram todos aqueles que não estavam “próximos” ao poder governamental”.
Radica aí a novidade que se coloca como uma virada constituinte para a reposição de todos os fundamentos teórico-políticos que devem ser considerados no enquadramento dominial observado sob o ângulo da função socioambiental. Para o Autor,
é preciso entender que a concepção do direito de propriedade pode ser um importante instrumento para assegurar a proteção ambiental. Por conseguinte, será necessário rever as premissas advindas dos séculos XIX e XX. É indispensável superar a visão conservadora do direito de propriedade, que privilegiou os poderes absolutos e exclusivos em detrimento das novas bases de legitimidade e funcionalidade da propriedade, previstas nos mandamentos constitucionais. Os poderes dominicais que estamos buscando não se fundamentam no conceito individualista, mas no conteúdo do direito que comunga com a função socioambiental da propriedade. A função social e ecológica da propriedade é efetivada quando os serviços ambientais do ecossistema estão assegurados e o desenvolvimento das atividades agrárias mantém em um grau satisfatório as funções ecológicas.
Trata-se de encontrar rastros de democracia, justiça e juridicidade que imprimam no chão pisado por povos e comunidades que buscam reconhecimento de seus usos e tradições para aí inscreverem, com essa demarcação viva, territórios hermenêuticos para a validação desses usos e tradições. Trata-se de elaborar o que estamos chamando de Constitucionalismo Achado na Rua conformem sustentam Marconi Moura de Lima Burum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira em seu texto O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709 (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. Coleção Direito Vivo. Vol. 5, 2021,p. 153:
Como elaborar um Constitucionalismo Achado na Rua sem que pensemos também na demolição de uma rede patriarcal, colonial e capitalista que sustenta toda uma rede ontoepistemológica? Esses são entraves muito sérios que demandam aquilo que Boaventura denomina ‘alternativas de alternativas’. Um CANR deve, pois, ser mais uma força de defesa da própria Rua como espaço democrático e plural, em que a liberdade possa ser buscada concretamente, seja por meios informais, seja pelos canais institucionais já construídos nesse processo.
Somente como “prática de encantamento epistemológico no campo do Direito e do constitucionalismo tornando viáveis iniciativas desenvolvidas junto às comunidades que continuam resistindo e reinventando permanentemente suas práticas de luta e de encantamento da vida como forma de vencer a morte, firmando uma justiça cognitiva e, portanto, de justiça social, oportunidade de tensionar os limites lineares dos discursos colonializados levando-os a repensar e reconstruir seus paradigmas”, conforme sugerem Andréa Brasil, Célia Bernardes e Jonas Tavares, no mesmo livro, p. 45, no texto Povos Indígenas, Quilombolas e Demais Povos e Comunidades Tradicionais. Direitos dos povos indígenas, educação judicial e ODANR. E de modo ainda mais convocatório para as travessias paradigmáticas que o tema reclama, toda a Seção VII – O Direito Achado nos Rios e Florestas: Conflitos Socioambienatais. Direitos Indígenas e de Povos e Comunidades Tradicionais, que foram discutidos no Seminário Direito como Liberdade 30 Anos de O Direito Achado na Rua, constante do vol. 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al orgs. Brasília: Editora da OAB/Editora da UnB, 2021), especialmente os artigos que integram a Seção, a começar por Carlos Marés – O Direito Impuro: achado na floresta, na terra e no mar; Sérgio Sauer, Acácio Zuniga Leite, Luís Felipe Perdigão de Castro – Disputas por terra e direitos no campo; Luiz Henrique Eloy Amado – O direito que nasce da aldeia; Adelar Cupsinski, Alessandra Farias Pereira, Cleber Cezar Buzatto, Íris Pereira Guedes, Rafael Modesto dos Santos, Roberto Antônio Liebgott – Terra tradicionalmente ocupada, direito originário e a inconstitucionalidade do marco temporal anre a proeminência do art. 231 e 232 da constituição de 1988; e Clarissa Machado de Azevedo Vaz e Renata Carolina Corrêa Vieira – Sujeito coletivo de direito e os novos movimentos sociais: a luta por direitos de acesso à terra e território.
Com a mesma disposição e inteligência conclui o Autor da Dissertação Carlos Gondim:
De tudo o que apareceu para mim no trabalho de campo, talvez a Lei do Babaçu Livre tenha sido o achado mais surpreendente. Tem sido um privilégio inserir em uma pesquisa sobre Direito Achado na Rua as práticas sociais das Quebradeiras de Coco Babaçu que invertem a lógica da propriedade privada, segundo a qual as acessões e benfeitorias de um imóvel pertencem ao proprietário do imóvel. Práticas sociais que foram reconhecidas em legislações locais a partir da luta de um sujeito coletivo de mulheres que fez da Mãe Palmeira um sujeito de direitos.
Recolhi, em minhas pesquisas, relatos de que a positivação da Lei do Babaçu Livre nas legislações locais não tem sido instrumento suficiente para garantir o babaçu livre a a preservação das palmeiras. As Quebradeiras de Coo com quem conversei sempre falam que o Babaçu Livre foi construído “na lei e na marra”. Alguns relatos, no entanto, têm sido enfáticos no sentido de que a lei tem sido menos eficaz que a marra, p. 147
Ele identifica na Teia dos Povos uma roda de conversa (assembleia) “organizada por movimentos sociais e entidades de apoio às lutas dos povos tradicionais como o CIMI e a CPT. Em geral, as atividades diurnas da Teia aconteciam sob um grande galpão coberto com palhas de babaçu. Uma enorme rede de pesca sob o telhado carregava mensagens, fotografias e frases que animavam a resistência. À noite, um cinema a céu aberto trouxe filmes que inspiravam os debates sobre o latifúndio, o trabalho escravo e o racismo. Nas manhãs, nas tardes e nas noites, rodas de tambor inundavam de cultura e religiosidade o evento”, p. 151-152, o reconhecimento que Selma dos Santos Dealdina – Quilombola, Assistente social, Secretária Executiva da CONAQ e Luiza Viana Araújo – Assessora jurídica na Conaq e Ecam, expressam em um texto – ADPF 742: o reconhecimento do direito à vida quilombola frente à Covid- 19 – como disposição para “Reconhecer o valor da vida quilombola [considerada] sua dimensão individual e coletiva. Esta última expõe a diversidade de um povo que desenvolveu suas próprias relações com o território e estabeleceu entre si, modos de bem viver, se organizar e se expressar representativos de uma resistência que já atravessa três séculos e mantém sua identidade viva” (http://ecam.org.br/blog/adpf-742-o-reconhecimento-do-direito-a-vida-quilombola-frente-a-covid-19/).
Com autenticidade inquestionável é o que se divisa em Quilombos e quilombismo: uma luta permanente. Eduardo Fernandes de Araújo, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Givânia Maria Silva e Vercilene Francisco Dias (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs) Direitos Humanos & Covid-19. Grupos Sociais Vulnerabilizados e o Contexto da Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021); e em Direitos Emergentes: violações a preceitos fundamentais dos Povos Quilombolas e luta pela humanização da população quilombola em contexto de pandemia. Vercilene Francisco Dias (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs) Direitos Humanos & Covid-19. Respostas Sociais à Pandemia, volume 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022).
A Dissertação de Carlos Henrique Naegeli Gondim – É LIVRE: o Direito Achado nas terras coletivas de Quebradeiras de Coco Babaçu, de Quilombolas e de assentados da Reforma Agrária em Monte Alegre – Olho d’Água dos Grilos, Maranhão – é um acréscimo de alto valor teórico e político para a fundamentação de uma concepção humanista de direito que emancipe, se revelando, como direito achado na rua, compeendido como enunciação dos princípios de legítima organização social da liberdade (Roberto Lyra Filho). Como estou de pleno acordo com os pressupostos, os fundamentos da dissertação, e dada a conjuntura em que esse tema provoca para nos desafiar a recuperar nossas reservas utópicas de realização da democracia e dos direitos sob o impulso de um projeto de sociedade que inclua e distribua a riqueza socialmente produzida e poder que só será legítimo se compartilhado, pergunto ao Autor, com suas próprias palavras, o que significa e quais as ações “para… não esquecer, nem por um minuto, para quem … trabalho e por quem tudo isso vale a pena”?!
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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
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