A Justiça do Trabalho tem reconhecido, cada vez mais, a legitimidade dos juízes do trabalho para, de ofício, aplicar penalidade pela prática de dano social nas relações de trabalho. O fundamento está especialmente no artigo 652, d, da CLT. Isso, porém, é o que menos importa. “Enquadrar” a possibilidade de atuação jurídica dentro dos termos de uma norma é sem dúvida o que acalma os “operadores do direito”, fazendo com que a tese se torne palatável. O raciocínio, porém, demanda uma compreensão mais profunda do fenômeno social e da função que o juiz do trabalho assume no contexto de uma sociedade que se quer inclusiva e solidária. O dano social se impôs como uma triste realidade nas relações de trabalho e reflete diretamente a circunstância de o não cumprimento dos direitos fundamentais trabalhistas haver se tornado um “bom negócio” para quem os descumpre. Daí a necessidade de atuação judicial. Os exemplos se multiplicam: o não pagamento sistemático de horas extras aliado à exigência de jornadas exaustivas; a prática de assédio estrutural através de mecanismos, por vezes sutis e outras tantas ostensivos, de controle de produção e cobrança de metas; o repasse da força de trabalho potencializando a escravidão contemporânea por meio do eufemismo da terceirização, várias são as formas pelas quais o capital explora o trabalho humano de modo a retirar de quem trabalha as mínimas condições de vida digna. E o faz, dentro de um ambiente capitalista de produção, menos por perversidade individual do que por estímulo, tanto econômico quanto burocrático.
Nesse contexto de desrespeito institucionalizado àquilo que deveria constituir – se levássemos a sério a Constituição de 1988 – o objetivo principal da vida em sociedade, a tese da possibilidade de condenação por dumping social, em demanda individual, surge como uma das respostas possíveis à ineficácia do próprio sistema. Não se trata, portanto, de usurpar a função do Ministério Público ou surpreender as partes, causando aos empregadores um mal desproporcional, como resultado da demanda trabalhista. Ao contrário, trata-se de somar esforços para coibir práticas de contumaz desrespeito à ordem constitucional, reconhecendo-as como nocivas à efetividade do projeto de sociedade com o qual estamos ou devíamos estar comprometidos e, ao fim, nocivas inclusive à possibilidade de concorrência leal e de desenvolvimento “sustentável” na lógica de uma sociedade de trocas.
A terceirização constitui uma das maiores perversidades contra a ordem constitucional, e, portanto, um dos maiores crimes contra a sociedade organizada, conduzindo-a para o sentido oposto daquele em que passa a ser possível pensar numa convivência boa para (quase) todos.
Em razão das discussões travadas por conta da tramitação do PL 4330 (hoje PLC 30/2015) que pretende regulamentar a terceirização, mais de doze milhões de terceirizados saíram do anonimato. Todas as consequências lesivas da prática da intermediação da força de trabalho sob o eufemismo da terceirização, mencionadas em discursos, artigos e audiências públicas, atingem trabalhadores cuja situação real de vida, a despeito da aprovação ou não de qualquer legislação sobre a matéria, já é de segregação e miséria. Os números acerca de acidentes e doenças profissionais, de exploração de trabalho infantil, de trabalho em situação de escravidão contemporânea, de assédio estrutural, de supressão de direitos básicos, como a irredutibilidade de salário e as férias, constituem realidade dos trabalhadores em serviços de vigilância, limpeza, tele-marketing, ou seja, daqueles já atingidos pela absurda tolerância de um entendimento jurisprudencial como o da súmula 331. Em claras palavras, para esses trabalhadores a aprovação ou não de uma lei que regulamente a terceirização não fará qualquer diferença. A barbárie vem sendo produzida nas relações de trabalho no Brasil há décadas. E tudo a partir de uma máscara jurídica que não resiste a uma análise mesmo que superficial, do fenômeno.
É só olhar e ver, como diz a música gaúcha. Se olharmos com atenção para essa relação de trabalho, veremos quem efetivamente toma o trabalho, quem realmente paga o salário, quem realmente conduz o empreendimento. E descobriremos, sem surpresa, que a tomadora dos serviços é na realidade a empregadora da força de trabalho. Emprega-a através de prepostos (prestadores), que por vezes também se aliam na exploração para obtenção de lucro, com ela formando verdadeiro grupo econômico para os efeitos da relação de emprego (artigo 2 da CLT) e por outras figuram como meros empregados, também eles alijados da condição que lhes deveria ser garantida em face da ordem constitucional vigente. Essa percepção que, repita-se, não exige esforço de raciocínio: é só olhar e ver, nos leva à necessária conclusão de que a terceirização constitui o boicote sistemático e extremamente nocivo, à ordem constitucional que busca o pleno emprego, o bem de todos, o primado do valor social do trabalho e a preservação da dignidade humana. Constitui, portanto, prática de dumping social.
O que a terceirização concretamente produz é o exato contrário do projeto de sociedade que instituímos em 1988. Então, para além do necessário e urgente cancelamento da súmula 331 do TST, com a consequente vedação de qualquer forma de terceirização, é preciso atuar inibindo essa prática predatória. Tal atuação passa, sem dúvida, pelo reconhecimento de que a intermediação de força de trabalho (marchandage) praticada sob o eufemismo da terceirização, constitui crime contra a ordem social, que promove o rebaixamento das condições sociais dos trabalhadores, potencializando a ocorrência de doenças, acidentes e de miséria na realidade de vida de milhões de brasileiros. A opção empresarial de terceirizar, em lugar de cumprir a Constituição contratando diretamente seus empregados, promove dano que atinge toda a sociedade.
É certo que a possibilidade da compreensão da função do juiz como agente de concretização dos direitos sociais e, em contrapartida, agente de coibição das agressões à ordem jurídica de um Estado Social passa pela superação do caráter individualista e patrimonial do direito burguês. Da perspectiva da racionalidade liberal, a condenação por dumping social, de forma incidental, em uma demanda individual, é, no mínimo, desafiadora. É preciso superar o compromisso velado com o capital e adotar a racionalidade constitucional solidária, para reconhecer a essa parcela de poder de Estado a condição de agente de transformação, e não apenas de manutenção das desigualdades sociais.
A aplicação de condenação por dumping social em face da lesão concreta à sociedade, pela prática da terceirização, é apenas um dos caminhos possíveis nessa estrada de retomada da fundamentalidade dos direitos sociais trabalhistas e de construção de um convívio social que respeite o Outro: um caminho urgente e necessário, para que se evite a perpetuação da barbárie.
Valdete Souto Severo – Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Européia de Roma – UER (Itália), Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (UDELAR), Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS