O GOLPE NEOLIBERAL NO BRASIL
O presente estudo será publicado em três partes. 2ª parte. Dos fundamentos filosóficos que ligam o neoliberalismo ao fascismo ou pós-fascismo e o golpe parlamentar no Brasil
Autor Marcelo José Fernandes da Silva, Procurador do Trabalho e mestrando em Filosofia pela UFRJ
Terminamos a primeira parte afirmando que, em relação aos antecedentes históricos, os governos de esquerda, ao aderirem ao neoliberalismo, passaram também, mas não só os de esquerda, a colher a rejeição de suas próprias bases políticas de apoio.
Manuel Castells, sociólogo e professor universitário espanhol, na obra Ruptura, aponta que:
esse desmoronamento da confiança se refere tanto a governos socialistas quanto a populares. De fato, a maior queda foi a de 80% de desconfiança em 2011, precipitando a debandada do governo do Psoe (Partido Socialista Operário Espanhol) com Rodriguez Zapatero. (CASTELLS, 2018, p.10).
No mesmo sentido, aponta Cláudio Pereira de Souza Neto, em Democracia
em Crise no Brasil – Valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional:
Os partidos socialistas e trabalhistas europeus, nada obstante, suas origens sindicais, a partir da década de 1980, passaram a patrocinar o aprofundamento do processo de globalização, além de promoverem a revogação de benefícios sociais com vistas à preservação do equilíbrio fiscal. Com isso, perderam, em parte, a capacidade de representar trabalhadores que se sentiam vitimados pela exportação de seus postos de trabalho. (SOUZA NETO, 2020, p. 24).
Em Do transe à vertigem, assevera Rodrigo Nunes:
A crise de legitimidade do neoliberalismo tem um aspecto simbólico e outro material. O simbólico decorre da maneira como a resposta estatal ao colapso financeiro, que protegeu aqueles que o causaram e transferiu os custos do resgate econômico para a população em geral, escancarou a convertibilidade do poder econômico em poder político que torna as promessas de uma ordem estritamente meritocrática e autorregulada inevitavelmente falsas… Essa crise de legitimidade, no entanto, não implica necessariamente um recuo do neoliberalismo… Dado que a crise de legitimidade não gerou um desafio suficientemente forte à ascendência do capital financeiro e corporativo, esses setores continuam capazes de impor sua vontade à população em geral… (NUNES, 2022, p. 8/9).
Além disso, a esquerda passa a colher represálias (característica renovada do fascismo), como também aponta Castells:
Porque, como sabemos, aprendendo da neurociência mais avançada, a política é fundamentalmente emocional, por mais que isso pese aos racionalistas… Assim, a forma de luta política mais eficaz é a destruição dessa confiança através da destruição moral e da imagem de quem se postula como líder. As mensagens negativas são cinco vezes mais eficazes em sua influência do que as positivas. Portanto, trata-se de inserir negatividade de conteúdo na imagem da pessoa que se quer destruir, a fim de eliminar o vínculo de confiança com os cidadãos. Daí a prática de operadores políticos profissionais no sentido de buscar materiais prejudiciais para determinados líderes políticos… Tal é a origem da política do escândalo… (CASTELLS, 2018, p.18/19).
O golpe no Brasil, por conseguinte, começa com a instrumentalização das instituições, na ação penal 470, cujo delator disse: “isso sempre existiu, mas teria passado a ser mensal”, daí o nome mensalão.
O problema, portanto, não era a compra de votos, se é que isso é um problema, diante da sua institucionalização com as emendas parlamentares e as emendas do relator (orçamento secreto), mas a habitualidade que isso passou a ter, ou melhor, os ocupantes do poder na época.
Processo esse (ação penal 470) sobre o qual recaem diversas controvérsias, inclusive, a aplicação da teoria do domínio do fato¹ e, recentemente, a declaração do ministro Dias Toffoli que afirmou ter convicção da inocência de José Genoíno, mas, mesmo assim, votara pela sua condenação.
O estado da política brasileira se dá em um ambiente de grandes perdas sociais e polarização, nos últimos 23 anos. As informações são afirmadas como verdades e, logo depois, descartadas, tornando o ambiente cada vez mais intenso, obrigando-nos a rebobinar o filme, para se reescrever os fatos até então tidos como inegáveis. Exemplo disso são as provas que dizem ter delatores como Tacla Duran, Tony Garcia4 e as gravações feitas por Walter Delgatti Neto. Em razão do ambiente conturbado e repleto de reviravoltas, deve ser cobrado das instituições garantes da democracia, cada vez mais, cuidado em seus julgamentos, sob pena de não atentarem para direitos importantes de toda a população, que são olvidados e cassados, sem que a sociedade tenha tempo de reagir.
Há que se dar ao cenário mais tranquilidade política, pois esse movimento vertiginoso é uma das características típicas de estados fascistas, que como aponta Hanna Arendt se estabelecem como um movimento incessante ao qual as pessoas se tornam incapazes de fazer frente, conforme descreve Arendt, em As origens do Totalitarismo.
É o absolutismo dos movimentos que, mais eu qualquer outro elemento, os separa das estruturas e da parcialidade dos partidos, e serve para justificar sua pretensão de invalidar todas as objeções da consciência individual (neste artigo, entendemos que as aspirações coletivas transversais também são ignoradas, como a consciência de classe). A realidade particular do indivíduo (repita-se, neste artigo, também para as coletividades, minorias, todas as transversalidades e seus direitos) é posta contra o pano de fundo da realidade espúria do geral e do universal, reduz-se a uma quantidade insignificante ou desaparece na corrente do movimento dinâmico do próprio universal. Nessa corrente, a diferente entre os fins e os meios evapora-se juntamente com a personalidade (as consciências coletivas transversais), e o resultado é a monstruosa imoralidade da política ideológica. Tudo o que é pertinente é encarnado pelo próprio movimento em ação; toda ideia e todo valor desaparecem na confusão da imanência pseudocientífica e supersticiosa. (ARENDT, 1979, p. 326).
É indene de dúvidas que, em seu período de governo, FHC, com um “engavetador geral da República”, participou ativamente da montagem de consórcios, inclusive com a participação criminosa de planos previdenciários de empregados públicos, para dar andamento às privatizações (conversas divulgadas pelo jornal A Folha de São Paulo)6, assim como teve o auxílio do hoje ministro Gilmar Mendes para consecução das diversas construções jurídicas em que se amparou para vender o patrimônio brasileiro, sem que tenham sido prestadas contas de um só centavo dessas vendas.
Entretanto, a olhos vistos, a mesma instituição que ajuizou a ação penal 470, nada fez durante o governo FHC (nem entre 2019 e 2022, no governo Bolsonaro) e nem se ateve ao fato de que o delator daquela mencionada ação, um inominável, disse: “sempre ocorreu”. Entretanto, essa instituição instrumentalizada, resolveu colocar em prática a sua sistemática seletividade.
Lula ganha, consegue interromper a sanha neoliberal, mas cede em diversos pontos. Dilma é eleita e para manter o humor do mercado, compra brigas com diversas categorias, não reajustando salários, o que para muitos foi um dos motivadores dos movimentos de junho de 2013. Para os neoliberais, o ambiente começou a ficar propício, pois a não atuação contra os governos de FHC começou a criar um ambiente hostil à esquerda e à política de forma geral.
Como rescaldo da ação penal 470, novamente, a mesma instituição seletiva dá asas a uma trupe de direita e a um juiz já conhecido por sua injurídica atuação (SOUZA NETO, 2020), dando sequência a um discurso que favorecia a duas correntes: os neoliberais e os pós-fascistas.
Pós-fascistas é um termo que alguns historiadores usam para os fascistas modernos que se escondem atrás de partidos, erodindo a democracia usando os seus próprios instrumentos.
Enzo Traverso, historiador italiano, em As novas faces do fascismo, esclarece:
Como a nova direita radical se assume como um bastião contra esse “fascismo islâmico”, a palavra fascismo é mais um obstáculo do que uma categoria de interpretação. Daí porque o termo pós-fascismo ser mais apropriado. Sem desconsiderar seus limites evidentes, esse termo nos ajuda a escrever um fenômeno em transição, um movimento ainda em transformação e ainda não cristalizado. Por essa razão, o pós-fascismo não tem o mesmo status do conceito “fascismo”. O debate historiográfico sobre o fascismo ainda está aberto, mas ele define um fenômeno cujas fronteiras cronológicas e políticas são bastante claras. Quando falamos de fascismo, não há ambiguidade sobre o que falamos, mas as novas forças de direita radical são um fenômeno heterogêneo e composto. (TRAVERSO, 2017, p. 8).
Os neoliberais ressuscitam diversas práticas fascistas, como o pensamento único, não passível de questionamento, apresentando-se como algo atual e contemporâneo, mas que para desmontar estruturas de proteção social tão consolidadas, acaba por precisar de um estado forte, fórmula essa que já haviam descoberto com Pinochet, ou seja, ligarem-se, até mesmo à extrema direita, como ocorreu no Brasil na aliança entre Bolsonaro e Paulo Guedes, ministro da Economia. Como afirma Arendt (1979, p. 236), “Nessa corrente, a diferente entre os fins e os meios evapora-se juntamente com a personalidade (as consciências coletivas transversais), e o resultado é a monstruosa imoralidade da política ideológica”.
A principal prática fascista adotada pelos neoliberais é a dos “movimentos acima dos partidos”, de tal forma que, como identificou Arendt (1979), o neoliberalismo passou a ser um pensamento incontestável, nesse sentido diz Souza Neto:
Nos anos 2000, havia a percepção de que o ciclo de reformas neoliberais não podia ser contido. Era democrático que o povo elegesse candidatos comprometidos com a adoção desse programa. O problema estava na heteronomia com que era imposto. Nos mais diversos países, as “políticas de austeridade” se apresentavam como inevitáveis. Há 30 anos, a legislação mundial vem se “padronizando” para se adequar aos limites de intervenção do Estado no domínio econômico preconizados pelo neoliberalismo.
Se políticas diferentes eram adotadas, o mercado retraia investimentos, e a crise se agravava. (…) Em muitos países, a profecia acabava por se autorrealizar: se os governos se afastassem da austeridade, os empreendedores privados não investiam, e a economia não reagia. (SOUZA NETO, 2020, p. 24).
Entretanto, não mais estimulavam golpes com tanques nas ruas, mas se utilizavam, como já dito, de instrumentos da própria democracia como o instituto do impeachment, contribuindo mais uma vez as palavras de Souza Neto:
Na atual crise da democracia, a derrocada dos regimes, cada vez menos, produzida por golpes de Estado. Hoje, elementos autoritários vão pouco a pouco se estabelecendo, e convivem, por períodos de duração variável, com instituições democráticas. Na maior parte dos países, verificam-se processos “incrementais” de “erosão” da democracia. (SOUZA NETO, 2020, p. 28).
A filósofa americana Wendy Brown, em Nas ruínas do neoliberalismo, destaca:
O ataque neoliberal ao social, que estamos prestes a examinar mais de perto, é fundamental para gerar uma cultura antidemocrática desde baixo, ao mesmo tempo em que constrói e legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima. (BROWN, 2019, p. 39).
No Brasil, com o clima contra a esquerda (antipetismo) e antipolítica já criados, conforme fatos que a mídia brasileira repete exaustivamente, nas eleições de 2014, o PSDB, inicialmente, começa com o expediente de questionar o resultado das urnas, apresentando uma ação de investigação eleitoral, sob o argumento de que se houve desvios na Petrobras, essas verbas teriam irrigado a campanha da chapa Dilma e Temer.
Essa ação de investigação recebeu da ministra Maria Thereza de Assis Moura do TSE um voto pelo arquivamento (vide relação de matérias jornalísticas).
Entretanto, surge novamente um personagem já citado anteriormente, que chegara ao STF pelas mãos de FHC, ministro Gilmar Mendes, capaz de impedir o arquivamento da investigação no TSE.
O TSE então estipula um mapa de trabalho que tinha como principal meio de prova ouvir como testemunhas, pessoas que figuravam como delatores, embora sabidamente, a palavra de delator não vale sem provas, o que torna a saída questionável juridicamente.
O impeachment de Dilma, entretanto, que começa com o então presidente da Câmara não pautando as mudanças legislativas que a presidenta tentava implantar para, principalmente, reverter o déficit público criado com múltiplos incentivos fiscais concedidos anteriormente.
Dilma é afastada.