Discurso proferido pelo professor Newton De Lucca por ocasião do recebimento do Prêmio Santo Ivo

Coluna Pensando Poeticamente Direito e Política

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Newton De Lucca

Discurso proferido por ocasião da outorga do Prêmio Santo Ivo em 19 de maio de 2017, no CEU

Sejam minhas palavras iniciais de agradecimento aos responsáveis máximos pela minha presença aqui, nesta noite de hoje: ao nosso Cardeal-Arcebispo Dom Odilo Scherer, ao eminente bispo Dom Carlos Lema Garcia; ao querido Prof. Ives Gandra da Silva Martins, presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo; ao estimado Padre Rodolpho Perazzolo; aos diretores todos da nossa UJUCASP; e, enfim, a todos aqueles que, de forma excessivamente generosa – e espero explicar, mais adiante, o emprego deste advérbio excessivamente ?,  propuseram, aquiesceram ou sufragaram a outorga do Prêmio Santo Ivo a este que, agora, constrangidamente vos dirige a palavra, sabedor de que muito pouco fez para merecer tão honrosa láurea…

Aristóteles — grande inspirador de Santo Tomás de Aquino, que, por sua vez, tanto inspirou nosso Padroeiro Santo Ivo — dizia que a grandeza não está em receber homenagens, mas em merecê-las…

Não sem uma ponta de constrangimento, já confessei não merecer tal prêmio, quando dele fui comunicado, pois em vão consegui fazer alguma coisa em minha vida que pudesse me distinguir da mediocridade ordinária…

Resta-me o consolo, é verdade, de que poderei ao menos tentar, neste entardecer de meus dias aqui na Terra, fazer algo a mais, que me aproxime, ainda que minimamente, da vida santificada de Santo Ivo e, consequentemente, da divindade representada por Nosso Senhor Jesus Cristo…

Ajusta-se adequadamente a mim aquela passagem do Livro do Eclesiástico 11:

Não te glorie nunca de tuas vestes,

não te engrandeças no dia em que fores homenageado,

pois só as obras do Altíssimo são admiráveis,

dignas de glória, misteriosas e invisíveis.”

Poucas palavras serão suficientes para vos ilustrar o que acabo de dizer…

Santo Ivo, com sua extraordinária vocação para o exercício de uma vida santificada, percorria incansavelmente os campos distantes, fazendo-o pela simples e boa razão de gostar de socorrer e de dar apoio, material e espiritual, aos desfavorecidos pela sorte, tornando-se conhecido como “Pai dos Pobres” ou “Advogado dos Pobres”.

Dizem os belos versos de João Gualberto de Oliveira sobre Santo Ivo:

“Nas suas horas mais belas

Mergulha na solidão

Buscando antigas capelas

Para repouso e oração.

 

Entre choupanas singelas

Luta o campônio bretão

Estas são nuas; aquelas

Vêm brotando à flor do chão.

 

Meu filho: ‘Tu te descuidas,

Voltando à noite a teu lar.’

Nas fontes há rosas fluidas

 

Que IVO quisera apanhar;

Onde outrora houvera druidas

Ele se encontra a rezar”.

 

Já meus vinte e cinco anos de advocacia, exercidos antes do ingresso na magistratura federal, segundo quiseram os fados, eu os exerci exatamente em defesa dos interesses dos mais ricos, empresários e banqueiros, num polo diametralmente oposto ao que fora seguido por Santo Ivo.

Apenas nos meus pouco mais de vinte anos de magistratura federal, tive a oportunidade de socorrer aos miseráveis, aos idosos, aos doentes, muito amiúde desprezados pela nossa precária seguridade social, mas isso representa muito pouco, na verdade, diante do sofrimento ainda hoje existente em parte significativa da nação brasileira…

Resta-me o consolo, ao menos, de que numa singela franja da minha vida, pude me aproximar um pouco do modo superior de ser de Santo Ivo.

Sabe-se, pelo relato de Arthur de Castro Borges, na obra intitulada “Santo Ivo – Patrono dos Homens da Justiça”, que Santo Ivo foi o criador da conciliação, tendo sido ele o fundador da primeira Cooperativa Estudantil. Profundamente humano e amigo de todos, sabia como ninguém aplicar os ensinamentos dos ditados populares, sendo de autoria sua, talvez, o velho adágio:

Un mauvais arrangement vaut mieux qu’un bon procès.” Ou, se se preferir em vernáculo: “Mais vale um mau acordo do que uma boa demanda”…

Quando presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, abracei entusiasticamente a ideia da conciliação, como método alternativo na resolução de conflitos, tendo obtido quatro prêmios do Conselho Nacional de Justiça, durante meus dois anos de mandato…

Sempre acreditei e lutei, também, pela radical igualdade de direitos de todos os seres humanos, tal como vem assoalhando, desde 1947, o art. 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nisso me aproximando de Santo Ivo…

No plano religioso, encontro-me infinitamente distante da santidade obtida por Santo Ivo. Se cheguei a ser ministro da Eucaristia, por alguns anos, participando ativamente da vida religiosa, e procurando ajudar a meus irmãos mais necessitados, hoje não passo de um pecador empedernido que, absolutamente consciente da sua extrema dificuldade para perdoar, alterou por conta própria uma frase da oração “Pai-Nosso”, dizendo “perdoai as nossas ofensas, assim como temos tentado em vão perdoar a quem nos tem ofendido”.

E, além disso, nas minhas orações diárias, por que não confessar que, após a prece: “Meu Senhor e meu Deus, eu creio, mas aumentai a minha fé”, sinto-me no indeclinável dever de acrescentar, lembrando-me do meu grande mestre Drummond: “E fazei com que eu me esqueça da parcela de incredulidade que me atinge, Amém”!

Mais avisado do que discorrer sobre meus pecados, porém, cuja extensão só perde por aquela ocupada pelas virtudes de Santo Ivo, será recordar a sua extraordinária trajetória de vida… Ainda que o faça a voo de pássaro, como a ocasião exige…

Há 714 anos, exatamente no dia 19 de maio de 1303, morria Ivo Hélory de Kermartin, Santo Ivo, Padroeiro dos Advogados e da Magistratura, conhecido, como já frisei, como sendo o “Pai dos Pobres”.

Morria, efetivamente?… Seu corpo físico, sim, mas a sua palavra e a sua ação permanecem absolutamente vivas no quotidiano daqueles que têm por missão pensar o Direito e, por vocação natural, cultivar o amor à Justiça, tanto a humana, quanto a divina. Razão assistia, por certo, ao nosso grande Guimarães Rosa, ao dizer que “não morrem os mortos, que, nos vivos, vivem.”

Com efeito, os valores propostos por Santo Ivo, mesmo apregoados numa distância de mais de sete séculos, impressionam pela sua surpreendente atualidade, pois a preocupação que ele sempre demonstrou, tanto pela promoção de uma justiça efetivamente equitativa, quanto pela salvaguarda dos direitos dos mais pobres, fez dele o mais luminoso exemplo de homem bom e justo, além de totalmente embevecido pela fé cristã.

Como bem salientou o Papa João Paulo II, no dia 13 de maio de 2003, na mensagem enviada a D. Lucien Fruchaud, então Bispo de Saint-Brieuc e Tréguier, em comemoração ao VII centenário do dies natalis (assim chamado, na linguagem litúrgica, o dia da morte dos santos ou o dia do nascimento para o céu), Santo Ivo, quando juiz eclesiástico, na sua maneira de administrar a justiça, “recorda-nos inclusivamente que o direito foi concebido para o bem das pessoas e dos povos em geral, e que a sua função essencial consiste em salvaguardar a dignidade inalienável do indivíduo em cada uma das fases da sua existência, desde a concepção até a morte natural”, destacando, igualmente, que Santo Ivo “preocupava-se em defender a família nas pessoas que a compõem e nos seus bens, mostrando que o direito desempenha um papel importante nos vínculos sociais, e que o casal e a família são fundamentais para a sociedade e o seu porvir”.

Como recipiendário do Prêmio que leva o grande nome de Santo Ivo, penso que jamais poderei olvidar-me de suas lições de humildade, para mim muito significativas, pois vivo num meio impregnado de pequenas vaidades pessoais das quais sempre procurei me afastar…

E, para finalizar estas singelas palavras, recorro, uma vez mais, aos  versos de João Gualberto de Oliveira:

 

“Patrono dos advogados

SANTO IVO, a bem da verdade,

Fez pelos injustiçados

O que só pede a bondade.

 

Sofreu pelos desgraçados

Sua santa atividade

Defendeu os condenados

Lutou pela liberdade.

 

Sua vida verdadeira

Foi pelejar com certeza

Por Cristo e sua bandeira

 

Pela causa da pobreza

Advogou a vida inteira

Pelo amor, pela beleza!

 

Seus milagres foram tantos

Que a Igreja o canonizou

E há preces, votos e cantos

Nos sítios por onde andou.

 

É o mais humilde dos santos.

Seu verbo, quando pregou,

Tinha a frescura e os encantos

Dos roserais que plantou.

 

Em tudo seguira o Mestre

A cada passo que deu

Para que a nós nos adestre

 

Perdura o exemplo, que é seu,

Como o perfume silvestre

Da terra onde ele nasceu.

 

Ao cabo desta minha singelíssima oração, resta-me fazer alguma profissão de fé. “Para onde vai o Brasil?” perguntou-se nosso Cardeal-Arcebispo Dom Odilo Scherer, em primoroso artigo dado à estampa no Estadão do último sábado, dia tão especial para nós, católicos, que acreditamos na aparição de Nossa Senhora em Fátima, no dia 13 de maio de 1917…

Mencionou Dom Odilo a declaração emitida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), segundo a qual nossa população acha-se perplexa diante da “delicada conjuntura política, econômica, social e moral por que o Brasil vem passando”, decorrente, por certo, do “desprezo dos referenciais éticos e dos princípios morais nas relações pessoais e sociais e nas instituições públicas”, concluindo que “a retomada urgente dos caminhos da ética e da moral é condição indispensável para que a sociedade consiga lutar contra os males mais evidentes que a afligem”.

Seja-me permitido trazer à baila, igualmente, a feliz passagem de nosso presidente Ives Gandra, segundo a qual, “a ignorância é a homenagem que a estupidez presta ao populismo”…

Com efeito, a corja pintada de escarlate, que assaltou o Brasil durante os treze anos que esteve no Poder, tenta agora impedir que o País retome seu desenvolvimento com as necessárias reformas trabalhista, previdenciária, tributária e política. Todas elas, porém, só terão êxito assinalável se fizermos com que o Brasil volte a ser governado pelas leis, pela Constituição da República e por homens verdadeiramente justos… Não por homens (ou mulheres…) que elegeram a cleptocracia como forma natural de governar uma nação.

Santo Ivo, que tanto leu Aristóteles, deu exemplo para nós do que deveria ser considerado um homem justo: aquele que busca realizar antes o bem do próximo do que o seu próprio, tal como apregoara o estagirita, em seu famoso “Ética a Nicômaco”, dedicado a seu filho.

Precisamos, acima de tudo, de homens justos para governar o Brasil. Que Santo Ivo nos ajude a escolhê-los…

Muito obrigado a todos…

 

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Newton De Lucca é  Articulista do Estado de Direito – Mestre, Doutor, Livre-Docente, Adjunto e Titular pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde leciona nos cursos e graduação e pós-graduação; Desembargador Federal do TRF da 3a. Região – presidente no biênio 2012/2014; Membro da Academia Paulista de Magistrados. Membro da Academia Paulista de Direito. Presidente da Comissão de Proteção ao Consumidor no âmbito do comércio eletrônico do Ministério da Justiça. Vice-Presidente do Instituto Latino-americano de Derecho Privado.
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