Discricionariedade administrativa e sua judicialização

Coluna Reflexões sobre Direito Público e Democracia, por Felipe Bizinoto Soares, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2019), o Brasil tem extensão territorial superior a 8 milhões de quilômetros quadrados e uma população de pouco mais de 210 mil habitantes. Apesar de toda a tecnologia, é desafiador, tanto em escala geral quanto em escala local, gerir a coisa pública, ainda mais sob o advento do Estado Constitucional, que tem como uma de suas pilastras a legalidade, a determinação de que os atos estatais sejam orientados por manifestações específicas e racionais, com particular ênfase para a Lei (PÁDUA, 2020).

Em consulta à base de dados digital do Planalto, vê-se que diversos diplomas legais foram emitidos pelo Legislativo brasileiro, chegando-se a um número de mais de 14 mil leis, as quais regem diversas espécies de relações intersubjetivas juridicamente relevantes, p. ex., civis, comerciais, tributárias.

Foto: PixaBay

Ocorre que não é só de leis (nem de Leis) que vive o Poder Público e muitas escolhas não estão de forma unívoca nos textos legais. Essa margem de atuação que nasce em determinadas previsões jurídicas e que permitem ao Estado, especialmente o Estado-Administrador, atuar tem um nome específico, que é discricionariedade.

Um desafio que se deve construir em razão dos chamados espaços jurídicos ou de conformação, ou, nos dizeres de Robert Alexy (2014), dos espaços dogmáticos, remete a uma generalização que foge da seara do Direito administrativo, que rege, essencialmente, a gestão pública pelo Executivo. A generalização é o desafio das próximas gerações, que enxergam não apenas a discricionariedade administrativa, mas uma teoria geral da discricionariedade, porquanto o legislador e o magistrado também atuam com certa liberdade de conformar os desideratos constitucional e legal.

Feita a digressão, o foco deste artigo é a espécie denominada discricionariedade administrativa, que é a liberdade de escolha deixada pelo legislador ao Estado-Administrador para que este decida, de acordo com critérios de oportunidade e conveniência, sobre determinado caso concreto em relação a determinadas opções (DI PIETRO, 2019, p. 481).

A gestão da máquina pública tem como norte a proporção de meios para que a coletividade, na figura de cada indivíduo, tenha uma vida digna. Para não haver engessamento dual é que há finalidades que são atingidas mediante atos administrativos vinculados e atos discricionários. Os primeiros atos são de caráter atrelado aos estritos ditames legais, sem a liberdade de escolha de opções pelo Administrador, enquanto os segundos são dotados de liberdade de escolha pelo gestor (DI PIETRO, 2019, p. 481).

Dentro desse quadro de ato vinculado e discricionário que se permite um maior manejo dos instrumentos públicos para gestão da res publica, deixando diversos espaços que permitem ao Estado-Administrador concretizar as decisões políticas fundamentais: é por meio da discricionariedade que se realiza, p. ex., a saúde, educação, transporte, fiscalização e arrecadação de tributos.

Conforme leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2019, p. 488 e ss.) leciona sobre duas correntes nascidas na relação entre funções administrativa e judiciária. A primeira é de cunho mais remoto e reconhece a intervenção judicial no ato administrativo discricionário no que diz respeito tão somente à forma do ato, excluindo da apreciação judiciária o mérito (= o que escolhido). Uma segunda corrente é mais recente e se destaca em razão da crescente intervenção judicial na atribuição administrativa, particularmente quanto aos chamados direitos sociais (art. 6º CRFB), e tal vertente nutre a ideia do controle de forma e do mérito dos atos discricionários emanados pelo Executivo.

Duas perspectivas surgem desse embate de correntes sobre o mérito do ato administrativo discricionário. A primeira é jurídica e diz respeito à tripartição funcional (ou de ‘’Poderes’’), cf. art. 2º CRFB, e que mostra um movimento de expansão da zona de atuação judicial para contornos não-judiciários e que dizem respeito ou ao papel do legislador ou ao papel, para este artigo, à Administração Pública. Elival da Silva Ramos (2015, p. 123-131) critica essa expansão exacerbada do Estado-Juiz em áreas de outras funções estatais e mostra que há um certo perigo de um Governo de Juízes dizer toda a política brasileira.

A segunda perspectiva é de caráter político e mostra que o Brasil, desde a Constituição (art. 3º, III e IV), é um país com múltiplas desigualdades, com especial destaque às desigualdades sociais e financeiras. Essa desigualdade, em razão do crescente movimento de assoberbamento judicial, envolve casos que mostram certa inanição ou ação inefetiva do Legislativo e do Executivo quanto a posições jurídicas fundamentais, especialmente aquelas que exigem gastos vultosos, como é, p. ex., a educação e a saúde, que não geram um retorno financeiro – mesmo considerando que o Estado não tem como finalidade o lucro, e sim o bem estar de todos.

Cada vez mais se vê um predomínio da segunda perspectiva sobre a primeira, a qual, também, sofre diversas mudanças ou deturpações para se adequar ao quadro fáctico em voga (o de ascensão ou governo de juízes). A discricionariedade administrativa perde muito com essa situação de intensa (e até inconstitucional) intervenção judiciária, pois contorna escolhas cujos contornos não advêm do juiz, e sim da Lei.

Como consequência do risco da discricionariedade administrativa está o risco da gestão pública, pois há chancelas de sub-rogações do gestor pelo juiz, que passa não apenas a decidir casos pontuais, mas decide sobre casos dotados de maior amplitude, que chegam até a transbordar os limites subjetivos da relação processual e alcançam terceiros. A discricionaridade do Executivo começa a ser substituída pela discricionariedade do Judiciário, o que é um perigo à estrutura estatal como os defensores da democracia e das liberdades conhecem, o que resulta em mudanças profundas de cunho vertical, na estrutura do Estado, e de cunho horizontal, no que diz respeito às posições jurídicas de cunho fundamental.

 

Referências.

 ALEXY, Robert. Formal principles: some replies to critics. In International Journal of Constitutional Law. Vol. 12, I. 3, Ju. 2014.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades e Estados (2019). https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados. Acesso em 01 jan. 2021.

PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Teoria da lei complementar em sentido formal. Revista Âmbito Jurídico, São Paulo, n. 198, ano XXIII, Jul.2020. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/revista-ambito-juridico/revista-ambito-juridico-no-198-ano-xxiii-julho-2020/. Acesso em 01 jan. 2021.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

* Felipe Bizinoto Soares de Pádua é Articulista do Jornal Estado de Direito, Advogado, Pós-graduado em Direito Constitucional Material e Processual, Direito Registral e Notarial, Direito Ambiental Material e Processual pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É monitor voluntário nas disciplinas Direito Constitucional I e Prática Constitucional na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

 

SEJA  APOIADOR

Valores sugeridos:  | R$ 20,00 | R$ 30,00 | R$ 50,00 | R$ 100,00 |

FORMAS DE PAGAMENTO

 
Depósito Bancário:

Estado de Direito Comunicação Social Ltda
Banco do Brasil 
Agência 3255-7
Conta Corrente 15.439-3
CNPJ 08.583.884.000/66
Pagseguro: (Boleto ou cartão de crédito)

 

R$10 |
R$15 |
R$20 |
R$25 |
R$50 |
R$100 |
Picture of Ondaweb Criação de sites

Ondaweb Criação de sites

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit, sed do eiusmod tempor incididunt ut labore et dolore magna aliqua. Ut enim ad minim veniam, quis nostrud exercitation ullamco laboris nisi ut aliquip ex ea commodo consequat. Duis aute irure dolor in reprehenderit in voluptate velit esse cillum dolore eu fugiat nulla pariatur. Excepteur sint occaecat cupidatat non proident, sunt in culpa qui officia deserunt mollit anim id est laborum.

Notícias + lidas

Cadastra-se para
receber nossa newsletter